Algumas semanas atrás, nos dias com clima menos propício para ir a um festival na história dos festivais da cidade de São Paulo, eu e boa parte dessa cidade estivemos cobertos de lama até o joelho vendo umas bandas no lugar mais longe possível. Eu sou uma grande fã de festivais, da ideia deles, do rolê, de ver música ao vivo. Desde que aconteceu o primeiro Lolla, uns 12 anos atrás, eu normalmente estou lá.
Eu me lembro inclusive, dessa vez, de como eu quase não vi o palco do Foo Fighters, de como o som era ruim e o lugar não comportava. Mas eu estava feliz. Porque a Joan Jett tinha subido no palco, porque eu tinha ouvido — ainda que mal — o Dave Grohl tocar bateria. Porque esse tipo de coisa passava a ser possível na minha vida.
Eu me lembro com uma nitidez peculiar dos dois anos seguintes. Em 2013, quando eu fui com um menino que tinha voltado para minha vida, vindo de um passado tão distante, nós dois tão parte dos sonhos adolescentes um do outro que tudo parecia frágil, parecia como se pudéssemos realmente ser as pessoas que tínhamos imaginado em uma cidade modorrenta quando tínhamos 15 anos. Eu me lembro de segurar a mão dele e pensar que aquilo, bem ali, era todo o motivo para tudo que tinha acontecido entre nós dois. Nós não estávamos nem mais juntos, nem pela primeira, nem pela segunda, nem pela terceira vez, aquilo era só um dia, um momento, a concessão a uma experiência que nós precisávamos ter antes de deixar a coisa ir.
E 2014, talvez o ano mais intenso da minha vida, o ano em que tudo se refez e se desfez mil vezes e em que eu me desfiz e me refiz mil vezes. Da primeira vez que eu vi uma das minhas bandas preferidas, da antecipação que eu senti o dia todo como se tivesse um primeiro encontro com o Trent Reznor. E do show do Vampire Weekend, o pôr do sol dourado na colina, todas as pessoas que hoje tem 35 anos lá, com essa mesma memória, esse mesmo dia, a gente jovens e felizes. Eu aos 25 anos, uma sainha que balançava quando eu dançava, tendo recém entregue um mestrado que tinha tirado tudo de mim, me refazendo de uma paixão velha, na onda mais nova de uma paixão nova, emocionada com a luz bonita e que a vida pudesse ser assim, ser aquilo.
Toda vez que eu falo desse show, dessa luz, com alguém que estava lá é como se eu e a pessoa compartilhássemos um segredo, algo incomunicável. A mesma coisa para aquele show do Radiohead, Aquele, que todo mundo estava (também coberto de lama, aliás), aquela memória compartilhada por uma geração inteira de um tipo muito específico de millenial paulistano, mas a sensação de que estávamos todos lá talvez o que faça a gente ser a mesma coisa.
Todas essas lembranças marcadas por uma sensação profunda de ESTAR ALI.
Nesse primeiro Lolla, o que eu não vi direito o Foo Fighters, eu estava esperando na fila do banheiro com uma amiga e a gente ouviu a mulher da frente dizer que aquilo não era para ela, que no ano seguinte ia ver na TV. Nós trocamos um olhar que reconhecia o quanto nós nunca seríamos aquela pessoa, o quanto nós éramos pessoas que precisavam ESTAR ALI.
Eu sou, sigo sendo, uma pessoa muito apegada à música ao vivo. Minhas experiências mais transcendentais, os dias em que eu mais estive feliz de estar no meu corpo, de ser um corpo que existe, é em meio a uma multidão de gente, vendo alguém tocar ao vivo. Da primeira vez que eu tomei ácido eu me lembro de ficar encarando a água que caía na pia e achar que o reflexo exato da luz na corrente era muito bonito, que o mundo era muito bonito. Toda vez que eu estou diante de um palco eu sinto essa mesma coisa. Como se todo show fosse a primeira vez que eu tomo ácido.
Um pouco é a minha história com a música como uma linguagem, com ela ter sido o que me ensinou que as coisas que eu sentia, mesmo o isolamento em uma cidade chata, não eram únicas. Que eu estava menos sozinha pelo simples fato de que alguém, algum dia, já tinha se sentido tão sozinho quanto eu. Ler A Redoma de Vidro mudou minha vida. Mas ouvir o If You're Feeling Sinister mudou muito mais.
Mas um pouco é essa consciência de estar ali que um show ao vivo trás, essa luz jogada sobre a experiência, o momento, a sensação. Esse ano, no terceiro dia desse Lolla lamacento, eu estava exausta até os ossos, mas quando o Gilberto Gil parou o show meio emocionado por uma plateia (relativamente) jovem estar tão emocionada com ele eu pensei que eu não queria estar em mais nenhum lugar. E mais que isso, eu não queria ser uma das pessoas que não sente essa necessidade urgente de estar ali.
Em A Obra de Arte na Época de Sua Reprodutibilidade Técnica (o que? essa newsletter é tipo a Taylor Swift citando o Dylan Thomas e o Charlie Puth na mesma letra, tem que ficar esperto) o Benjamin centra boa parte do argumento geral na ideia da perda da aura. A aura é um dos conceitos mais difíceis de explicar que tem e eu sempre falho um pouco nisso, mas aqui é um texto de internet e você só precisa entender o suficiente para eu seguir com meu ponto, então pega minha mão.
A aura, para o Benjamin, é algo conectado ao aqui e agora da obra, ao poder da presença dela. É uma dimensão quase mítica, algo que não está no quadro em si, mas na sua relação com ele. Um deslumbramento, mais ou menos. Aquela sensação de que você está na presença de alguma coisa que é mais que uma imagem bidimensional. O ponto dele no texto é que a reprodutibilidade técnica nos torna hiper-familiar com as imagens, nós as vemos demais, elas são acessíveis demais e isso faz com que não exista mais esse fascínio do aqui e agora, em parte porque não existe mais aqui e agora de obra nenhuma, ela está em todo lugar o tempo todo. There is no there there.
Quem sou eu, mas eu discordo um pouco do Benjamin na ideia de que a reprodutibilidade técnica retirou toda aura de todas as obras. Eu acho que de fato a Mona-Lisa a aura foi com deus e a fila da selfie, mas um Rothko ou um Pollock, quadros cuja apreciação é muito relacionada a uma consciência da materialidade da mão do pintor ainda te dão esse encanto. Ver um Pollock é também ter a consciência muito aguda do corpo do artista ali. Talvez seja uma aura diferente, mas é uma experiência do aqui e agora, do você tem que ESTAR ALI.
E talvez muito dessas experiências que se tornam geracionais, muito da coisa que a gente persegue quando sai de casa para andar com lama até o joelho é isso. Que não é uma aura, mas tem algo da presença mítica e do deslumbramento dela.
O Adorno, o homem mais chato que já existiu, está tendo cinco mil convulsões no túmulo com eu dizendo que um evento de música pop tem aura. Ele que acha que a música pop é o próprio representante de satã no mundo, o fim de toda arte autêntica. Mas essa é a beleza de ser ensaísta e mais ainda de ser ensaísta em um meio que vira papel metafórico de pão em algumas horas: eu posso fazer o que eu quiser. E a aura não é um conceito do Adorno, a beleza do Benjamin também é que ele é uma criatura muito mais fugidia.
(Porém a gente pode abrir as apostas de se um homem vai vir me ensinar o que é aura ou não. Eu voto sim)
De qualquer forma, eu também não sei se onde quero chegar é uma proposta de que a aura na época da reprodutibilidade técnica está no festival de música. Meu ponto é muito mais que sempre existiu esse desejo por uma experiência que possuía algo de incomunicável e que esse incomunicável estava ligado a uma experiência do tempo e do espaço, que nós sempre tivemos essa comoção interna, esse deslumbramento por algo que não pode ser vivido ou explicado sem que você estivesse lá. E que em parte é esse deslumbramento que a gente busca quando sai de casa para ver um show e que a galera que não sai de casa para ver show nenhum porque perrengues talvez não entenda que a balança nunca vai fechar porque estamos falando de algo um pouco inefável. Acho que o ponto é esse. A beleza de ser ensaísta é que eu também nunca sei bem qual é o ponto.
Outra coisa que com certeza não é o ponto desse texto é alguma defesa meio ludita meio boomer, que enquanto escrevia eu quase consegui ver aparecendo nos comentários, de que a gente devia ir a shows fixado na experiência do momento e parar de ficar no celular. Porque enquanto eu pensava nas coisas que eu queria escrever a respeito dessa experiência, dessas memórias, dessa sensação muito profunda de momento eu desejei ter vídeos desses dias. Desse show do Vampire Weekend, da gente coberto de lama no show do Radiohead.
Eu tenho algumas fotos desses primeiros Lollas, mas não tantas quanto eu teria agora. Em uma época pós-iphone, mas pré nuvem eu perdi muitas fotos em backups, transferências e coisas assim. Tem um conjunto de fotos que foi uma perda dolorida, todas elas tiradas com câmera. Mas essas cotidianas, as milhares de fotos diárias do meu iphone, eu mesma sou bastante displicente. Eu gosto do registro, mas eu também gosto da casualidade que permite que ele se perca. Eu gosto, talvez, da nostalgia de não ter essa imagens. Mas eu queria te-las.
Até porque uma das grandes críticas idiotas à nossa geração é que a gente fica tão obcecado com registrar o momento que esquece de vive-lo e eu nem sei se uma coisa dessas é possível. Você está lá quando registra e o registro em si, sozinho, é uma imagem sem significado, ele depende diretamente do repertório de ter estado lá. Explico: nós não fazemos, ainda mais hoje, todos esses vídeos e fotos de show porque queremos registrar o show em si. Antes mesmo de ter ido à Eras Tour eu já tinha visto mil vídeos no tiktok, o show inteiro está no Disney+ em detalhes que eu nem notei quando estava lá. Ainda assim, eu tenho uma coleção de vídeos e eu os vejo sempre. Porque eles não registram o show, eles registram que EU estava no show.
Já que essa newsletter está toda Teoria da Comunicação I, uma das primeiras coisas que eu lembro de aprender é que uma fotografia não era uma imitação perfeita do objeto real, mas um índice, um tipo de signo semelhante à pegada. Ela não é a coisa, mais um sinal da ocorrência da coisa. A fotografia não é a mímeses do objeto, mas a indicação de que o objeto foi olhado por alguém. O vídeo de show é a prova de que eu vi, de que eu estava lá, a pegada da minha experiência.
Nós somos uma geração que documenta obsessivamente nosso cotidiano porque nós somos também uma geração muito aflita com a passagem do tempo e com as possibilidades de perda de nós mesmos. Registrar não resolve, mas cria a ilusão de que essa ansiedade pode ser aplacada.
Eu não falo aqui de influencers, mas da gente, pessoas físicas, que de vez em quando voltam no arquivo de stories do instagram de um determinado mês ou viagem. Que lembramos assim o que estávamos fazendo em tal dia. Que postamos Be Real e Um Segundo Por Dia. Nenhum de nós faz isso para exibir (outra leitura antiquada e idiota desse comportamento), mas para guardar. É para nós, mais do que para o outro, é um gatilho da experiência e da memória. Nós estamos todos, todo dia, colecionando pequeninas madaleines do Proust.
Outro dia eu vi uma foto analógica desse show do Vampire Weekend. Eu estou sorrindo pra alguém fora de quadro, olhando para cima, um braço meio erguido. Eu não sei qual era a música, mas eu sei a sensação. Eu quase consegui sentir nos meus ossos. A luz no meu rosto, o cheiro de com quem eu falava. Ano passado, quando eu estava revendo Girls, as vezes alguma delas usava uma roupa que me causava uma sensação quase física de ter usado algo parecido, que me devolvia um pouco para a materialidade dos meus 24 anos.
Eu não sei o que tudo isso vai fazer conosco conforme o tempo passa e essas madeleines se acumulam. Quantos gatilhos, quantas memórias físicas ou o quanto isso vai alimentar uma nostalgia pouco produtiva. Eu sou uma pessoa muito nostálgica por certas épocas da minha vida e eu não sei bem o que isso me dá. Mas eu continuo indo, porque a hiper documentação também me lembra que ela só faz sentido se eu um dia estive lá.
Também amo ter pequenos registros de shows que fui e momentos do cotidiano. Não penso que atrapalha em nada a experiência, se a pessoa souber como fazer.
Uau, que leitura boa foi essa! Esse ano calhou d'eu ir no lolla e passei os dias declamando o quanto eu adoro a tal da aura que um evento desse pode provocar no ambiente e na gente. Consigo adorar até a lama. É um tipo de visão e som ambiente que pra mim compõem e tornam a experiência especial tanto quando os shows em si.