Um dos ensaios em Rastejando Até Belém se chama em inglês Notes from a Native Daughter. Na edição brasileira ele ficou como Notas de uma Nativa, uma tradução que eu não gosto (não é o lugar pra isso, mas tem muitas, muitas mesmo, coisas que eu não gosto na tradução desse livro) porque perde a principal referência que Didion está fazendo nesse texto, a um ensaio do James Baldwin chamado Notas de Um Filho Nativo.
O ensaio de Baldwin é importante porque entre as muitas coisas que fazem dele um pensador absolutamente singular, uma delas está na ambivalência que ele retrata em relação ao Harlem. Ao falar da experiência de ser negro nos Estados Unidos, Baldwin olha para ela de todos os lados e não hesita em apontar o achatamento da experiência que a resistência também criou. A exuberância e a “força” da identidade minoritária excluem ele, Baldwin, o menino afeminado e hesitante. O Harlem não é, para ele, esse porto seguro, esse lar, o lugar em que ele pode viver plenamente sua cultura. O Harlem é seu lugar de formação, mas não de encontro.
O dia do enterro do meu pai foi também o dia em que completei dezenove anos. Quando o levamos ao cemitério, estávamos cercados pelos detritos da injustiça, da anarquia, do descontentamento e do ódio. Para mim, era como se o próprio Deus tivesse preparado, para marcar a morte de meu pai, a mais prolongada e mais brutalmente dissonante das codas. E parecia-me também que a violência que nos cercava no dia em que meu pai partiu desse mundo tinha sido pensada como um corretivo para o orgulho de seu filho mais velho.
Notas de Um Filho Nativo - James Baldwin
Didion, como é seu hábito, toma o mote central de Baldwin - que alguém possa ser ao mesmo tempo estrangeiro e nativo de um lugar - e o desradicaliza. Ela é, afinal, uma mulher branca e heterossexual. Ela é também pouco ligada às políticas feministas da época que permitiram uma leitura mais acusatória de sua Sacramento natal. Nada em Didion é incendiário como em Baldwin. Mas ainda assim, ele está lá.