De vez em quando (no caso, nesse mês de agosto) eu dou um curso de organização acadêmica em que um dos objetivos é ajudar a galera a estruturar projetos para entrar nos programas de pós-graduação. Isso inclui ensinar a fazer “objetivo” e “justificativa” e a chegar na frente de um monte de professor velho e explicar por que raios seu projeto é importante. Eu começo falando que essa ideia de demarcar um objetivo, criar uma justificativa e aí vender seu peixe não quer dizer que seu projeto precise Servir Para Alguma Coisa pro mundo, ele só precisa servir pra alguma coisa ali, naquele programa. Ele só precisa justificar o dinheiro que aquele pedacinho minúsculo do mundo vai gastar com você, ele não precisa realmente construir nada, não precisa mudar o mundo, só precisa mudar a forma como aquelas pessoas ali, naquele departamento, produzem conhecimento. Elas não precisam se justificar para o tuiteiro que fica reclamando do uso de dinheiro público em coisas que não dão resultado concreto. E não porque elas dão. Porque as vezes não dão mesmo. Mas o ponto não é esse. O ponto é o conhecimento em si.
As pessoas me olham intrigadas, mas quanto mais eu reforço que a coisa é o conhecimento pra produzir conhecimento, a pesquisa porque nós acreditamos que pesquisar é digno em si, pode até ser que elas não acreditem de todo, mas a coisa começa a soar algo libertadora.
Eu jogo uma resposta parecida para os meus alunos que com muita frequência me perguntam por que raios eles precisam ler A Metamorfose (a resposta real é porque eles são judeus e o judeu vem ao mundo pra sofrer, mas enfim). E eu falo que precisar, ele só precisa por que vai cair na prova, mas a minha proposta é ser um meio para pensarmos a experiência judaica no século 20. O que ok, eles consideram, mas pra que eu preciso fazer isso? Honestamente? Não precisa. Eles não precisam investigar a própria identidade, ou ampliarem conhecimentos literários. Eu gosto de achar que tudo isso torna a vida deles mais interessante. Mas precisar? Não precisa.
Eu digo isso porque cada vez mais eu vejo na internet uma linguagem que relaciona ler literatura com algo que precisamos fazer, com um passo necessário no aperfeiçoamento pessoal. Influencers e leitores argumentando que tal livro é “importante” porque “te abre os olhos”, ou porque ele é “anti-racista”, “anti-misoginia”. Posts com estatísticas de como ler te torna uma pessoa mais empática ou o que quer que seja. Como se ler de repente fosse parte desse projeto de auto-otimização estilo Vale do Silício que todos nós deveríamos estar. Todo mundo tentando se tornar a melhor versão de si mesmo.
Eu tenho pavor de ser a melhor versão de mim mesma. E pavor de uma literatura que sirva para alguma coisa.
Eu não estou dizendo com isso que o mundo não seria um lugar pior se livros não existissem. Eu sou uma leitora compulsiva, todas as formas desconjuntadas através das quais eu pago minhas contas se relacionam com a literatura. Eu obviamente acharia o mundo um lugar pior e minha vida em particular muito mais infeliz sem a literatura, nesse sentido, ela serve para a melhora egoísta da minha própria existência. Mas tal qual as pesquisas esdrúxulas de humanas, a ausência da literatura tornar o mundo um lugar pior não tem como consequência óbvia que a literatura Serve Para Alguma Coisa. Que ler é um ato utilitário que leva para algum lugar. O mundo seria um lugar pior pelo simples e claro motivo de que ler é prazeiroso.
Vejam, os livros me foram em diversos momentos da vida uma importante janela para o mundo e para mim mesma. Eu tive algum acesso a camponeses da Albânia quando li Abril Despedaçado e eu entendi que tudo que eu sentia era só parte de ser uma mulher jovem quando descobri A Redoma de Vidro. Eu poderia daí concluir que eles cumpriram alguma função na minha vida, me acrescentaram algo ou o que quer que seja. Mas o principal motivo para eu ter lido Sylvia Plath, ou Ismail Kadaré ou o Milton Hatoum falando sobre os libaneses da Amazônia é porque ler é meu passatempo preferido, porque uma frase bonita me toma como um encanto porque eu acredito em Deus porque Proust existe.
De certa forma, é como o fato de que a gente precisa se alimentar. Mas nós poderíamos muito bem viver de soylent, a gente não PRECISA de bolo gelado de coco, de mandioca frita de boteco ou de alta gastronomia. Nós produzimos essas coisas porque somos humanos e humanos são seres culturais que precisam criar um arcabouço simbólico para tudo que fazem, mas também porque humanos são seres que se entediam com a existência incrivelmente fácil e portanto estão o tempo todo buscando por prazer. Porque, de distintas formas, todos nós somos seres que perseguimos experiências prazeirosas, inclusive (cof cof) essa coisa que vocês experimentam quando se sentem moralmente superiores. Mas o descarte dessa ideia é o que me incomoda em todo esse discurso positivista em relação à arte.
Quando você diz que a literatura precisa te tornar uma pessoa melhor, ou que ler está a serviço do progresso universal (eu já vou falar mais disso aqui em um minuto) o que você está me dizendo é que a busca pelo prazer não é motivo suficiente, ou que você só se permite sentir prazer se ele vier disfarçado nesse pacote do não-prazer (que cristão da parte de vocês). Que algo ser gostoso, encantador ou bonito não vale, é necessário te melhorar, agregar, Servir. Os níveis em que eu acho isso a antítese de tudo que é a arte não cabem numa newsletter.
Para começar, a ideia de que o conhecimento vai nos tornar pessoas melhores era bonita lá na Revolução Francesa. Ela ficou em baixa mais ou menos ali por 1942 quando Uma Coisa Chata rolou na Alemanha e piorou em 1945 quando Uma Coisa Chata rolou no Japão. Heidegger era nazista. Knut Hamsun, autor de um dos livros mais atordoantemente bons que eu já li também. Céline também. Eles eram homens cultos, homens que liam, certamente conhecedores da literatura universal. Eu não sei se alguém argumentaria que isso os tornou pessoas melhores. Para ficar mais perto, um dos escritores mais eruditos da literatura contemporânea é o Houllebecq e eu, que sou fã do Polansky, não consegui terminar um livro dele de tão misógino.
Um dos textos mais radicais no questionamento da ideia de que o conhecimento necessariamente nos torna melhor é o Educação Após Auschwitz, um ensaio do Adorno de 1965. Nele, o Adorno considera que simplesmente educar não é suficiente para prevenir uma catástrofe como o Holocausto, afinal, educados os nazistas todos eram. Ele se pergunta que tipo de educação seria possível em um mundo que sabe que algo assim é possível e propõe-se a impedir que aconteça de novo. Pensando nisso, ele afirma categoricamente que qualquer poesia após Auschwitz é uma barbárie. Que frente à carnificina produzida, de certa forma, em consonância com os ideias do esclarecimento, fazer arte é um absurdo.
O Adorno é dado a umas frases de efeito, assim como era dado a andar de terno no verão da California (eu amo a imagem do Adorno vivendo em Los Angeles, amo) e é claro que ninguém parou de produzir literatura depois da Segunda Guerra, mas tem algo nessa proposta que me interessa. Porque se a literatura fosse esse lugar de melhora pessoal, esclarecimento e reabilitação de nossa socialização mais preconceituosa e arcaica, por que ela seria bárbara após um genocídio? A resposta é porque ela é bela. E porque o ato de ler não é um ato pedagógico, mas um ato de prazer. Porque literatura é arte e arte é fruição. Porque se encantar com a beleza produzida por nossa mente intelectual após o Holocausto é bárbaro. Eu não acho que é, no fundo ninguém acha que é, mas é preciso confrontar essa ideia e é preciso olhar de frente para a ideia de que a literatura não é nada além de Bela.
Isso me leva ao meu segundo problema com a moda atual da literatura utilitarista que é ela ecoar a ideia de que nós seres humanos estaríamos em algum tipo de trajetória. Que existe um ponto ideal ao qual deveríamos chegar e que a literatura é parte de nos tornarmos essa utopia. Essas Boas Pessoas. Acontece que ninguém é uma boa pessoa, não da forma absoluta como eu sinto que se almeja. Uma galera que eu vejo se achar boa pessoa também se acha radicalmente de esquerda. Mas se você é uma boa pessoa você fuzila o Czar e os filhinhos dele? Não fuzila? Qual dessas escolhas é Boa?
Então ser uma boa pessoa é só não ser racista, machista e homofóbico. Ok, eu acho um denominador muito baixo, mas vamos com ele pelo argumento. Ler vai tornar as pessoas diferente disso? Eu entendo a proposição de que a leitura nos mergulha na subjetividade do outro e isso pode ajudar a vê-lo como pessoa. É verdade. Mas alguém racista pega deliberadamente um livro de um autor negro pra isso? Vamos pelo outro lado: se essa afirmação é verdade, também deveria ser verdade que ler muitos autores preconceituosos me faria igual. Me pergunto como existe feministas no mundo uma vez que quase todas nós fomos formadas no Cânone Ocidental dos Autores Misóginos. Eu, pessoalmente, li mais Bukowski do que qualquer um deveria ler na adolescência e eu ainda quase tomei uma suspensão por gritar em sala de aula que um professor deveria segurar o pinto (longa história, outra newsletter).
Além disso, essa ideia da Boa Pessoa, ainda mais quando ligada a ideia de leitura, está também alinhada a uma certa proposta de auto-higiene. Eu leio para me tornar melhor, eu não faço nada moralmente duvidoso, eu acordo cedo, como bem e vou na academia. Aqui ler me parece mais um passo em uma jornada de auto-otimização que serve para nos tornarmos máquinas melhores para o capitalismo. Mais produtivos, cultivando menos nossas relações, enxergando nossos corpos como esses veículos do sistema e não fontes de prazer.
Tem muito mais coisa nessa ideia que eu quero explorar e provavelmente serão assuntos para o ensaio do mês que vem, mas aqui o que eu quero levantar é que quando nós propomos que a literatura serve para nos melhorar, nós estamos inserindo na lógica da produção algo que deveria resistir a ela. Algo que deveria ser um escape. A arte não serve para nada e ela não deveria servir porque, ironicamente, é aqui que ela nos oferece mais coisa.
De tudo, o que mais me incomoda nessa proposta de que todos deveriam ler porque ler é essa coisa muito útil não é que os supostos ganhos não sejam reais. Não é que a literatura não possa mudar a forma como enxergamos o mundo ou as pessoas. Não é que ela não possa abrir nossos horizontes ou nos tornar mais empáticos. Ela pode. Mas também pode não. Certamente ela não precisa. Ela precisa ser bela, interessante, prazeirosa. Precisa nos atordoar em nossos sentidos. Precisa entreter. Pensar que a literatura tem que ter uma função é pensar, em última instância, que a vida tem que ter uma função. Que nossa simples presença e existência nesse mundo não é justificada. Eu me recuso a acreditar nisso. Eu me recuso a acreditar em uma existência que precise de qualquer coisa além de ser gostosa e divertida. E ela certamente seria muito menos essas duas coisas sem a arte.
A imagem que abre essa newsletter é uma parte de La Dame à la Licorne, um conjunto de tapeçarias medievais que fica no Museu de Cluny em Paris. Cada uma das tapeçarias representa um dos nossos sentidos e uma sexta, a que ilustra esse texto, representa O Amor ou O Prazer ou A Compreensão, ou só nada. Nela está inscrita a frase que dá nome a esse ensaio "À mon seul désir” que quer dizer “ao meu único desejo". Ela é considerada uma obra misteriosíssima e eu gosto de pensar que talvez ela seja só mesmo muito linda.
Obrigada por essa leitura deliciosa <3
texto muito importante pra mim. quando adolescente lia muito, lia por prazer. depois que comecei a trabalhar com mkt digital, a leitura só valia a pena se fosse para tirar insights. aos poucos tenho voltado a ler por prazer, mas é um longo caminho...