Primeiro, eu sei que já mandei uma newsletter recente circulando alguns dos temas dessa, mas eu estou trabalhando em um ensaio longo/livro pequeno/algo que nos meus sonhos é parecido com o segundo livro da Lenu na série napolitana sobre desejo feminino e portanto a gente ainda vai circular esses temas por um tempão, aguentem aqui comigo.
Depois, que a primeira versão desse texto foi uma entrada no meu diário. Escritoras do mundo, tenham diários, mas também por isso ele meio que não vai pra lugar nenhum, são só umas ideias que eu tenho revirado e examinado.
Nesse domingo, quando era carnaval, mas em São Paulo chovia e fazia um frio absurdo, eu sentei no chão (eu tenho uma coisa muito específica com escrever sentada no chão, sei lá, tem coisas que eu preciso escrever sentada no chão) com meu computador para pensar em um conto que eu tinha trabalhado em uma oficina literária nas semanas anteriores. É um conto que gira em torno da ideia de verão e do desejo de uma mulher que nunca se autorizou aos seus desejos e tem sido uma experiência curiosa para mim porque eu tendo a ser uma escritora muito autobiográfica, mas essa personagem, em seu conflito central, é uma pessoa muito diferente de mim. Ela é alguém que acredita, ou sei lá, pensa acreditar, viveu querendo acreditar, em domar o desejo a como as coisas devem ser. Eu sou, ou quero ser, ou penso ser, o exato oposto. Ainda assim, eu sei que se essa ideia está aqui há tanto tempo é porque há nela algo de mim e sentada no chão no dia mais deprimente das histórias do carnaval era isso que eu estava tentando buscar.
O carnaval chuvoso me pareceu o momento ideal para isso porque estávamos nós em plena festa da carne presos em casa como gatos selvagens, nos batendo contra as paredes da nossa preguiça e do nosso desânimo, praguejando contra essa mais incontornável das circunstâncias que é o clima. Eu olhava a janela e olhava o Word e pensava em mim e nessa personagem e na autorização do nosso próprio desejo. Em determinado momento, por impulso eu acho, ou pelas conexões ancestrais da escrita, eu lembrei de uma passagem em O Amante em que a Menina pergunta ao Chinês se é normal sentir tristeza depois do sexo e ele diz que não, que isso era porque eles tinham feito durante a tarde. Essa imagem, do sexo quente, melecado, em uma tarde imóvel de verão, trazendo uma onda incontrolável de melancolia consigo, parecia guardar algo dessas coisas que eu estava pensando, então eu abri o livro atrás dela.
(eu não sou de reler livro nenhum, mas O Amante, especificamente, eu já li tantas vezes que acertei quase de primeira)
Quando eu encontrei o que estava procurando, eu reli a passagem inteira e vi que é quando eles transam pela primeira vez e notei algo que até aqui tinha me escapado: a Menina gosta tanto do que acontece que ela sabe, imediatamente, que aquilo vai ser a ruína dela. É isso, o que acontece naquele quarto naquela tarde, o motivo para o rosto arruinado do início do romance. É isso que a transforma na pessoa que ela vai ser pelo resto da vida.
Mas notem que eu chamo de “isso” ou de “a coisa que acontece” e não de sexo porque não é o sexo, ou não só o sexo, ou não o sexo como a gente normalmente pensa. Não é o ato deles transarem, mas tudo, a sedução, o desejo dele por ela, o desejo dela por ele. As ondas de vulnerabilidade e poder que antecedem e acompanham o sexo em si. Me lembra uma fala de Fleabag na qual eu penso todo dia. Na primeira temporada, ela olha para a câmera e diz:
“I’m not obsessed with sex. I just can’t stop thinking about it. The performance of it. The awkwardness of it. The drama of it. The moment you realize someone wants your body. Not so much the feeling of it."
A coisa, a onda, não é o sexo em si, mas o jogo, a dança, o que quer que você chame. Para a Menina da Marguerite Duras é também a sensação da coisa em si, mas ela expande. Em O Jogador, do Dostoievski, há um momento em que o narrador diz que o que mantém jogando não é quando ele ganha, nem quando ele perde. É aquele segundo em que a bola ainda rola e todas as coisas são possíveis. O que arruina a Menina é o orgasmo, mas é também aquele momento anterior, quando você ainda não sabe como é transar com aquela pessoa e todas as coisas são possíveis. Isso é o desejo e ele é uma emoção muito mais violenta e subversiva que o prazer sexual em si.
Anos atrás, quando eu ainda tinha um blog, eu escrevi um texto sobre Amor à Flor da Pele pensando no quanto o desejo é mais cinematográfico que o amor ou mesmo o sexo. Porque o desejo é carregado de tensão, ele é em si uma narrativa pronta.
E daí, sentada no chão da minha sala, O Amante em mãos, eu pensei na Simone de Beauvoir. Em como ela, uma das maiores intelectuais da história, uma mulher que ninguém poderia dizer que era apenas uma boba, tantas vezes se desesperou de desejo, ciúmes, abandono. Eu tenho pensado muito na Simone de Beauvoir e em como ela escapa a ideia de uma mulher “humilhada” que a gente tantas vezes associa a esses sentimentos. Como se toda mulher desejante estivesse diminuída, circunscrita aos domínios do seu corpo e, mais do que isso, à narrativa doméstica do amor monogâmico.
Nessa coisa que eu estou trabalhando, um plano é reler Madame Bovary porque eu penso o quanto é a necessidade de que o desejo dela caiba na narrativa do amor que leva Emma a ruína. A gente pensa nela como uma mulher apaixonada, a cabeça cheia de histórias de homens que transformam sua vida, mas e se a questão ali é que ela precisou fazer caber o que ela queria nessa forma, a forma domesticada do amor, para poder ter seu desejo legitimado?
Enquanto mulheres, nós pensamos sempre no quanto desejar muito uma pessoa nos coloca nesse lugar da humilhação, ou da vulnerabilidade. Você se sente uma tonta por ser tão escrava do seu corpo, mas também tem medo de ser vista como uma mulher que depende tanto assim da reciprocidade do amor para viver. Ou como uma mulher que vai ser vista como a megera cheia de tentáculos prendendo um homem em sua carência. Tanto faz. Todas essas variações, e a diferença entre elas eu não acho desimportante, mas ainda é isso que eu estou tateando, colocam uma mulher que Quer Alguém no lugar de inferior.
Por outro lado, caros leitores, o homem que Quer Muito Alguém raramente está nesse lugar. O homem dominado por seu desejo carnal é viril, não patético. Ele é Casanova, não Emma Bovary. Mesmo o chato do Werther, e eu acho o Werther um insuportável, tem algo de nobre no seu desespero, na sua necessidade. Ele nunca Anna Karenina. Seu suicídio final é trágico, o dela histérico.
E daí como sempre, pelo jeito, eu me pego voltando para a Ferrante. O radicalismo dela. Porque ela, a autora, dá ao desejo da Lenú pelo Nino essa dignidade. Não importa se ele não vale nada e nem importa se em vários momentos a gente acha ela uma tonta. Há uma validade nesse querer, nesse desejo, a Lenú é humilhada por ele mais tarde, mas não pelo ato de querer em si. E, mais que isso, o desejo dela não a reduz a uma mulher animal, uma vez que o desejo pelo Nino é erótico, claro, mas uma fonte desse erotismo é a conexão intelectual entre eles. É como ele a faz se sentir no corpo e mentalmente. A Ferrante dá a personagem dela essa autorização, de desejar completamente. E eu não sei nem medir a subversão disso.
É a última newsletter do mês! Então voltou a retrospectiva das coisas que eu fiz:
Eu li: Eu passei o mês quase inteiro lendo Fire and Blood, peço perdão. Não me pegou super, mas até que foi interessante, só não acabava nunca. Quando finalmente acabou, eu devorei Tragam os Corpos, segundo volume da trilogia da Hilary Mantel sobre o Thomas Cromwell e nem sei explicar o como esse livro é bom. A textura das vidas interiores e do universo, o como ela faz as maquinações jurídicas pra se livrar da Ana Bolena serem emocionantes, ela é uma bruxa e é tudo maravilhoso. O primeiro da trilogia é Wolf Hall e recomendo a todos
Eu vi: Achei que tinha visto vários filmes, mas no fim foi tudo em janeiro e em fevereiro eu não vi nada? Que loucura. Booom, vi Elvis, que ta na HBOMax e achei que podia ser bom, mas é só ok. Vi também Forgeting Sarah Marshall, que tá na Amazon Prime, um filme que eu passei anos resistindo porque parecia muito ruim pelo trailer, mas é uma comédia romântica muito bem-feitinha.
De séries vi a segunda temporada de Mandalorian, que achei bem melhor que a primeira (que achei meio chata) e estou, como todas as pessoas vendo The Last of Us.
O que eu ouvi: Les rendez-vous littéraire rue Cambon, uma série de podcasts produzidos pela Chanel entrevistando escritoras (alguns são em francês, mas a maior parte é em inglês)
Além disso! Meu segundo livro continua em pré-venda e meus amores, o papel tá caro e essa escritorinha precisa pagar as contas, então comprem!!!!
Vai rolar uns eventos legais de lançamento logo mais e aí eu prometo que assino o de todo mundo, mas essa pré-venda é uma espécie de crowdfunding então ajudem aí
"o desejo dela não a reduz a uma mulher animal" 🤍🤍🤍🤍🤍🤍🤍
gostei DEMAIS desse tema <3 ansiosa para ler mais do que você está pensando sobre desejo!