Nessa newsletter eu falo de Pecadores e tentei ser vaga, mas se você é sensível a spoilers, prossiga por sua conta e risco. Eu falo também de Nosferatu, mas esse estreou em janeiro então se você não viu o problema é todo seu.
Em 2005, eu estava no terceiro ano do ensino médio, tinha dezesseis para dezessete anos e me conformei muito rápido que apesar de estar numa escola de passar no ITA, eu queria os vestibulares menos concorridos do mundo e, portanto, podia passar meu ano fumando maconha, escrevendo fanfic e lendo todo tipo de coisa séria e absurda que caísse na minha mão. Eu li O Lobo da Estepe e nunca mais fui a mesma, eu vi As Virgens Suicidas e fumei na janela pensando em ser a Sofia Coppola e eu li Crepúsculo porque eu estava entediada e eu era gótica.
Eu já tinha lido Drácula e Entrevista com o Vampiro. Eu já tinha visto Elvira e Buffy. Não existia mundo em que, por pior que fosse, eu não ia ler o livro sobre um vampiro e a paixão avassaladora dele por uma adolescente. Então eu li. Todos os quatro. Porque tinha algo ali e ao mesmo tempo não tinha. Eu não conseguia parar e terminava todos os livros frustrada com alguma coisa que eu não estava recebendo. Não é que eles eram mal-escritos (embora eles sejam), mas era uma sensação constante de que a satisfação que aquela história me dava era só pela metade e eu não sabia bem por que.
Então, eu fiz o que eu fazia toda vez que um universo não me entregava exatamente o que eu queria: eu entrei no wattpad. E ali eu descobri que o que falta em Crepúsculo é sexo.
(Cinquenta Tons de Cinza quando ainda era fanfic, eu fui, eu tava).
Existem várias pessoas que pesquisam fanfic a sério e eu não sou uma delas, mas eu li muitas e eu escrevi algumas e sempre o que me impelia era querer mais daquele universo e daqueles personagens, uma sensação de que o autor colocou boas criações no mundo, mas não soube perseguir as linhas que a própria história abriu. Não é a toa que mil fanfics de Orgulho e Preconceito fazem a Lizzie e a Charlotte se pegarem. Ou que Harry Potter seja talvez o campeão do wattpad. Ou que as fanfics de Crepúsculo tem muito, mas muito sexo.
Porque não importa quão mórmon seja a Stephanie Meyer, tem sexo pingando por todo o livro dela. A Bella olha na cara do Edward numa aula de biologia (é biologia?) e quase no mesmo minuto está disposta a se jogar aos pés dele. Isso não é amor, isso é outra coisa. O Edward fala em vários momentos de como algo no sangue e no cheiro dela o atraem incontrolavelmente. Stephanie Meyer, meu bem, isso chama tesão. E do tipo que não espera as pessoas se casarem de papel passado. Do tipo que você mesma tem que punir com a concepção de um bebê monstrinho.
Ela não queria, mas estava lá. E nós éramos adolescentes, então nós farejamos. E escrevemos sobre. Páginas e páginas de cenas de sexo mal escrita com vampiros. Porque você não pode colocar um vampiro na sua história e dizer que ela não é sobre sexo.
Porque a gente é sempre meio quem a gente é, hoje me parece óbvia minha fascinação adolescente com vampiros, mesmo quando eu ainda não sabia o quanto eu era fascinada por sexo como uma ideia. Ou por desejo, que seja. Mas a coisa toda é tão óbvia: a sensualidade de um monstro que te morde no pescoço; a ideia de consumir a outra pessoa de uma maneira tão literal quanto beber o sangue dela; a vida eterna, a aparência sempre desejável. Essa coisa que se move nas sombras, não sobrevive ao escrutínio da luz, suga fluídos, vem acompanhada dos efeitos sonoros mais íntimos possíveis.
O vampiro é sempre, de certa forma, nosso tesão feito monstro. E, claro, ainda é meu tipo preferido de monstro.
Lá no início do ano, quando eu vi Nosferatu, eu anotei umas ideias para uma newsletter no meu bloco de notas. Lendo-as agora, eu não faço mais ideia de para onde eu ia, mas tinha alguma coisa a ver com a retomada que o filme faz da estética expressionista, esse cinema da república de Weimar, o respiro mais libertário e breve da história. Todo mundo desejando tanta coisa, todo mundo criando monstros ao fazer isso.
O Dario Argento está sempre retomando a estética expressionista. Possessão, como Suspiria um filme que se passa em uma Berlim dividida, também tem essa estética.
Eu não escrevi essa newsletter sobre Nosferatu, ela foi atropelada por outras, mas aí eu vi Pecadores e achei que meu cérebro foi um pouco vidente. Ele deixou eu ver o Michael B. Jordan vampiro de regatinha branca antes de escrever sobre monstros, sexualidade e essa retomada de uma associação tão antiga, tão básica da nossa imaginação.
Eu ia dizer que acho curioso esse de repente ser o ano do vampiro sexy, mas a verdade é que talvez nada faça mais sentido. Por um lado, nós nunca fomos tão puritanos. Todo dia um jovem pergunta no twitter qual a necessidade de uma cena de sexo; toda semana algum perfil de auto-ajuda descoladinha do Instagram posta um carrossel sobre como as pessoas agora querem experiências mais autênticas que beber e dançar na balada (nada é mais autêntico que balada). Por outro: Brat, cocaína voltou a moda e pelo menos uns três produtos culturais importantes são centrados em mulheres de meia idade pegando um novinho.
Toda semana eu falo de sexo aqui e essa newsletter cresce como eu não imaginava. Toda semana também alguém deixa um comentário horrorizado, mas disfarçado de argumento racional me explicando por que minhas ideias de liberdade sexual são erradas e perigosas.
A gente não para de pensar em sexo, mesmo quem preferia não pensar. A gente quer uma liberdade sexual que parece atrasada, mas a sexualidade volta a parecer perigosa, desviante, algo que anda nas sombras. Esse monstro que vai sugar seu sangue e te transformar em algo desprezível, mas ainda assim, ele é tão irresistível.
Nosferatu anda uma linha genial entre o transgressor e o tradicional. Ali, o vampiro é sua versão mais clássica: um monstro horroroso, que traz consigo a peste, mata bebês e seduz boas mocinhas vitorianas. Exceto que a mocinha vitoriana é, no fim das contas, quem despertou esse mal. Não é a força do desejo do vampiro que move a história, mas a força do desejo da Ellen. Seu tédio, sua repressão, seu desespero, seu tesão que o marido se recusa em satisfazer. Uma mulher desejando desperta um mal ancestral e destrói toda uma cidade. Isso é clássico. O transgressor é que não é o desejo dela em si que causa tudo isso, mas o fato de que o único canal que ele encontra é esse.
Ela poderia desejar à luz do dia e ninguém ia acabar morrendo. Mas ela não pode, portanto, vampiro.
Pecadores trabalha um pouco com a mesma ideia. Apesar de uma imagética religiosa clara (vampiro tem medo de água benta, é inescapável), o nome do filme me parece ambíguo. Qual é o pecado deles? O desejo sexual franco e explícito? A música que é uma espécie de sexo? O fato de que eles são negros e tem poder, ambição, a vontade de transformar todas essas coisas em liberdade? De que eles desejam?
E que, de novo, eles não podem desejar, mas desejam mesmo assim e aí seres sedentos de sangue tem que ser despertados?
Eu gosto da ideia de libido, essa coisa que é a energia sexual, mas também criativa, o impulso que nos faz ser ativos no mundo. Que deveria poder correr na luz do sol. Mas não pode. Então a gente cria o monstro sexy das sombras pra falar da vontade de consumo do outro, de sangue, de coisas quentes e pulsantes e do como nas sombras tudo isso apodrece.
Se Nosferatu é todo simbolicamente sobre sexo, Pecadores é explicitamente. Logo no início do filme, um dos protagonistas ensina o primo mais novo a chupar. A Hailee Steifenld usa um vestido de seda (o tecido mais sensual que existe) de um tom que eu não consigo definir de outro jeito exceto rosa buceta. E tem como a câmera olha pro Michel B. Jordan. Como o Ryan Coogler sabe o que está fazendo com ele, o que o público quer dele. E ele sabe também, que tem algo perigoso em ser um homem tão bonito. Esse filme inteiro, o diretor parece dizer as vezes, é também sobre as coisas que eu sei que vocês pensam em fazer com esse homem. Essas ideias que ele está disposto a alimentar.
Eu acho interessante como o filme mantém tanto do sexo as claras e nubla tanto dos outros desejos dos personagens. Um monstro do sexo é um monstro do tesão é um monstro do desejo. Para uma mulher vitoriana, o desejo é mesmo o desejo sexual. Para negros no interior do Mississipi na década de 30 é outra coisa. Liberdade, poder.
E ainda assim, um personagem descobre seu poder quando descobre o sexo. A gente gosta das nossas imagens ancestrais.
A gente gosta de vampiros. No final de Pecadores, eles me lembram os de Only Lovers Left Alive, impossivelmente cool, em paz com seus impulsos e violência, capazes de se alimentar sem destruir ninguém. O vampiro como o boêmio, aquilo que a sociedade mantém a margem, desejável e desencaixado, alheio. Vivendo apenas nas sombras.
É possível, às vezes.
Eu fui uma adolescente obcecada com crepúsculo e também uma adolescente muito reprimida então pra mim aquilo ali da página era suficiente. Mas anos depois analisando minha fascinação e obsessão com a história eu vejo que muito tinha do fato da Bella ser tão desejada. Todo mundo fala como ela é meio sem graça etc, mas a questão dela não ter tantos marcos de personalidade é que se torna mais fácil a gente se imaginar no lugar dela, preencher as faltas dela com coisas nossas e aí se projetar sendo tão desejada por vampiros, lobisomens, humanos. E eu não entendia na época, mas eu queria muito me sentir desejada.
Nossa, sim.