Abstinência moderna
Um ensaio sobre heteropessimismo, celibato e vibradores moderninhos
Porque essa newsletter nasce das minhas obsessões pessoais e eu sou uma pessoa cronicamente online, não é incomum que eu decida falar de alguma coisa que todo mundo está falando. Também porque ela nasce das minhas obsessões pessoais, ela volta o tempo todo para temas como sexo, desejo e a possibilidade da gente se relacionar fora da estrutura da família nuclear. Portanto é óbvio que eu, como muita gente nas últimas semanas, decidi falar da relação que me parece doentia problemática de várias mulheres hétero com sua própria sexualidade.
Só nessas últimas semanas a Taize e a Marie Declercq falaram de heteropessimismo, eu esbarrei nesse texto da Atlantic sobre pessoas que abriram mão de encontros e namoro e um outro do The Cut sobre o movimento 4B na Coreia. Além disso, todos os dias meu explorar do Instagram entrega memes sobre como se relacionar é horrível e o tempo todo eu caio em alguma bait do threads de uma mulher expondo um homem por ser um pesadelo, segundo ela. É óbvio que algo está acontecendo na cultura e, bom, como já estabelecemos acima, é óbvio que eu tenho uma opinião a respeito. A gente vai chegar lá pelo caminho longo, mas a minha opinião é de que é só mais uma vez conservadorismo se disfarçando de anti-sistema.
Eu quero começar pelo texto da Atlantic: ele me apareceu pelo Instagram deles e quando eu li a chamada eu achei que era sobre pessoas que tinham assumido que não tinham interesses em relacionamentos românticos ou assexuais, gente pensando a vida fora desse esquema. Então eu abri o texto e descobri que era exatamente o contrário, que as pessoas na matéria queriam muito um relacionamento, ou melhor, uma família: casar, ter filhos, comprar uma casa, a escadinha toda. Acontece que nós vivemos nessa bela época contemporânea que diz que só faz sentido construir essas coisas com sua alma gêmea, essa pessoa compatível para você dividir a vida e o ciclo de tentar encontrar essa pessoa se mostra frustrante demais, então eles só desistiram.
Meio tipo eu desistindo de escrever um romance porque eu nunca vou ser ganhadora do Nobel mesmo.
Eu estou sendo irônica e um pouco cruel, mas é porque a coisa toda me pareceu absurda mesmo. E porque o que eu acho que todo esse heteropessimismo devia gerar e nunca gera é uma reavaliação das nossas formas de relacionamento e das demandas absurdas da monogamia estrutural (estrutural, sistema, não peguem em armas achando que vocês vão ser - que horror - obrigados a transar).
Porque veja, essas pessoas querem um relacionamento, mas elas não querem o processo de se relacionar. Elas querem alguém que as ame, mas elas não querem viver o risco de que dê errado, a dor de quando termina, o jogo meio mágico e meio aterrorizante de descobrir o outro e se descobrir no processo. Eles não namoram mais, porque nenhum namoro está produzindo o resultado desejado. Como se o relacionamento com outra pessoa só existisse se levasse a esse final feliz, como se passar o tempo e viver algo com alguém não tivesse nenhum valor em si. Não vou entrar nisso hoje, mas me lembra toda a galera chamando o simples ato de amizade de “demanda".
O que me pega nesse texto, e em muito discurso que vejo na internet, é a ideia de sair num date, transar com alguém ou passar tempo com uma pessoa como um degrau no caminho de um objetivo final que é a família feliz. Você não quer sair e transar com essa pessoa porque gosta dela, mas para alcançar esse estado no qual gostar dela é pré-condição, mas não resultado em si. Você não quer viver a relação entre você e o outro, você quer avançar na escada de “como a vida deve ser". Não me surpreende que isso seja frustrante.
Tem outra coisa no texto que me chamou atenção: vários dos entrevistados relatam que depois que abriram mão de namorar eles começaram a viver mais a vida. Dar atenção para amizades, estar presentes em show, construir hobbies. O que me leva a pensar que antes elas eram completamente desinteressantes? Como você pretende encontrar alguém para dividir a vida se você não tem uma vida para começar? Como você quer que alguém se interesse por você se, aparentemente, você sequer é uma pessoa?
O que me leva para a segunda parte desse texto. Porque todo esse papo de heteropessimismo (e as duas newsletters que eu citei são críticas da ideia também) quase sempre vem das pessoas que tratam amizades como demanda, querem uma vida de “baixa manutenção" e amam dizer que odeiam sair e querem estar toda sexta a noite vendo Netflix na cama antes das 21h. De novo: como você pretende conhecer alguém razoavelmente interessante ou ter um relacionamento entre dois indivíduos se você não está disposta a sair lá fora e viver a vida?
E veja, eu sei que existe uma coisa chamada patriarcado e machismo estrutural (a gente vai voltar a isso) e que sim, realmente, as relações entre homens e mulheres se dão informadas por ela. A maior parte dos homens, especialmente os heterossexuais, foi socializado a vida toda tanto para se priorizar quanto para não achar que seu valor depende de ser amado por uma mulher. A sociedade perdoa um tipo de atitude egoísta e insensível de homens que não perdoa nas mulheres. Sim, tudo isso é verdade. Também é só verdade que se relacionar é complicado, que pessoas frustram as suas expectativas e desejos simplesmente porque são pessoas e que é impossível estar com outro sem algum nível de incômodo.
Longe de mim defender homem, mas cada vez mais eu caio em posts de mulheres compartilhando trocas de mensagens como se fossem uma ofensa monstruosa e a única coisa que aconteceu ali foi um homem dizendo que não quer mais. As vezes eles até são honestos. As vezes eles dão motivos que eu mesma considero idiotas, mas o desejo é o desejo. As vezes eles são gentis e sensíveis, mas infelizmente nenhuma gentileza ou sensibilidade alivia a dor de ser rejeitado que sim, eu sei, dói quase fisicamente as vezes. (Ou fisicamente, uma vez eu fui parar no pronto socorro porque inflamei meu canal lacrimal de tanto chorar depois de um término). Mas nada disso é um crime, um problema estrutural ou algo que os homens podem melhorar se forem melhores (e tem coisas que eles podem). É só parte da vida. E não dá pra pular.
Embora exista muita gente que gostaria. Enquanto eu já estava pensando que queria transformar algumas dessas coisas em uma newsletter, eu esbarrei no tal texto do The Cut sobre o movimento 4B. Eu tenho menos problemas com a história toda no contexto original da Coreia do Sul, em que parece mais uma greve reprodutiva que qualquer outra coisa, mas a importação para os Estados Unidos do qual o texto fala, alinhando com uma certa popularidade do “celibato” entre mulheres me deixou um gosto muito ruim.
O primeiro problema veio na chamada para o texto no Instagram do The Cut que dizia que essas mulheres estavam “optando por não participar do patriarcado". Oh honey. É quase como dizer que eu vou optar por não participar do capitalismo. O patriarcado não existe só na sua relação com homens próximos. Ele é o ar que a gente respira, ele existe na nossa relação com outras mulheres, com nosso emprego, toda vez que a gente anda na rua. Mas ok, a gente pode superar a chamada burrinha.
Esse movimento é basicamente uma recusa de mulheres heterossexuais em se relacionar com homens. Isso quer dizer recusar casamento, maternidade e sexo. E vejam, eu tenho questões. Primeiro porque eu não sei se essas mulheres estão recusando coisas que elas não querem ou coisas que elas querem, mas sentem que não podem ter sem serem oprimidas. E depois porque eu não vejo mundo em que abrir mão da sua própria sexualidade é qualquer tipo de libertação ou feminismo.
Eu estou usando a palavra heterossexual desde o início desse texto e reforçando que se trata das relações entre homens e mulheres porque eu acho isso fundamental. Não são lésbicas ou mesmo bissexuais recusando os homens. São mulheres heterossexuais, mulheres cuja sexualidade passa pela atração e relação com homens. Portanto, se elas os recusam elas estão sim recusando essa parcela delas.
Eu já estou vendo um dedinho nervoso na caixa de comentários para me contar que isso não é verdade, que você comprou um vibrador maravilhoso e tem orgasmos excelentes e não abriu mão da sua sexualidade coisa nenhuma. Ok, vamos falar disso. E vamos falar da atual publicidade de vibradores.
A Amanda, meu guaxinim pessoal, outro dia compartilhou uma marca de sugadores de clitóris que faz anúncios particularmente ruins, mas a tendência é ampla: tudo que é marca de vibrador vendendo o negócio com um discurso de libertação, de “preservar sua paz” de “autocuidado". Não saia com homens para fazer sexo ruim, fique em casa e tenha um orgasmo ótimo com seu sugador. Pronto, fim, ninguém precisa de homens, nem mesmo as mulheres heterossexuais.
Cada vez que eu vejo um desses, meu cérebro responde mal-criado com um “tá bom, mas o vibrador não chupa seu peito". Minha mal-criação e tendência contrária a parte, a real é um pouco essa sim. Nós falamos tanto de como é um problema que homens heteros reduzam o sexo só a penetração e ao próprio pinto, mas isso é a mesma coisa. A redução do que deveria ser uma experiência sensorial, de contato, de troca, de descoberta do outro e de si mesmo à mecânica que leva ao orgasmo. Porque um vibrador é isso. Um instrumento que vai estimular mecanicamente sua genitália da forma de sua preferência até levar a conclusão física disso. Eu sou fã de vibradores, eu tenho um que custou uma pequena fortuna, mas sexualidade é outra coisa.
Assim como a galera do texto da Atlantic não está disposta a viver relacionamentos como um fim em si, as libertadas pelo vibrador não querem o sexo como processo. Não querem a troca, o acidente, o sim, sexo ruim as vezes, que te ensina sobre o que você gosta ou não gosta. Não tem mais o aspecto simbólico do sexo. Tem só o fim. Um orgasmo alcançado em 5 minutos. Cuidei de uma necessidade, pronto, não preciso viver isso.
E de novo, vocês vem me dizer que isso é libertador.
A última coisa que fez os dominós dessa newsletter entrarem no lugar foi um story de uma influencer que se eu for ser honesta eu só sigo pra passar raiva. Acontece, eu tenho gostos peculiares. Enfim, ela estava lá, tomando café e ouvindo um jazz e começa a falar que a vida é sobre (sic) achar o que te dá prazer. O cafézinho passado dela, a música, a conversa com outras mulheres que são mais interessantes do que homem (eu estou citando literalmente). Meu mesmo cérebro mal-educado precisou responder “pois o que me dá prazer é pica".
O que nem é verdade, eu passo horas da minha vida defendendo as amizades como fonte de sentido e felicidade e o prazer como algo mais amplo e global. Ainda assim, eu não acredito em nenhuma iluminação que diz que a forma de viver é achar prazer que venha divorciada da sexualidade. Porque essa mulher é heterossexual. Ela diz que as amigas dão muito mais prazer que os homens para ela, mas ela não tem nenhum tipo de desejo ou atração físico por essas amigas.
Ou seja, ela está aqui, ouvindo jazz (!) e falando de um prazer mental ou intelectual como mais elevado que o físico, dizendo que ela está se libertando dos desejos do seu corpo, da materialidade dele. E vocês não conseguem ver o machismo disso?
Eu não estou negando com esse texto que os relacionamentos heterossexuais nos modelos que a gente encontra hoje não estão funcionando para as mulheres. Isso é óbvio. O que eu estou dizendo é que a recusa desse modelo sem nenhuma outra proposta não é progressista, libertador ou feminista. É só a mesma coisa que ir se internar num convento na idade média para evitar que seu pai te case com o nobre nojento do feudo ao lado. É abdicação e recusa. É abrir mão de algo que não está funcionando sem se propor algo melhor no lugar, só dizendo que você pode viver sem essa parcela da vida.
Vocês me desculpem, mas o direito ao nosso corpo e a uma sexualidade satisfatória foi difícil demais de ser conquistado para eu abrir mão dele agora. É claro que os homens deveriam fazer melhor, mas nós estamos propondo isso como? Se as mulheres que só se relacionam com homens não estão encontrando nenhum tipo de prazer por que a gente acha que a solução é elas passarem sem isso em vez de reimaginar nossas relações?
Eu queria muito chamar esse texto de “um vibrador não chupa seu peito", mas fiquei com medo do algoritmo do Instagram e outras redes derrubar a divulgação. Triste viver na internet dos brochas!!!
Já pensei que se eu ficasse solteira (sou casada com um cara que tenho um relacionamento há 17 anos), jamais me relacionaria de novo. Falando sobre isso uma vez na terapia, começaram os tapas na cara (graças a deus kkk) É muito fácil e cômodo cair nesse papo. É exatamente isso. Se relacionar é foda, viver como vivemos é foda, conviver com família é foda, manter amizades é foda. Exige amadurecimento, sabedoria, comprometimento. Mas me parece que atingimos uma exaustão de tudo, vivemos a vida de tantas pessoas através da internet que cansamos de viver a nossa. Há de ter outras coisas a se abrir mão antes de abrir mão de viver a própria vida.
Mas é completamente equivocado achar que abstinência, PRINCIPALMENTE a do 4b é “conservadorismo”. Nem parece que vcs tão considerando o contexto em que estamos e onde essas tendências aparecem. Em que mundo mulheres ESCOLHEREM se recusar a casar e ter filhos de homens é conservador? num mundo onde o direito ao abordo está sendo diariamente ameaçado, taxas de feminicídio como as que temos e, em muitos países como o caso da Coréia e Rússia, medidas pra forçar mulheres a terem filhos estão sendo adotadas. Talvez muitas de nós apenas estamos cansadas de continuar aceitando tanta misoginia de homens. Aí ao invés de pedir (ou obrigar) os homens deixarem de ser misóginos, é preciso forçar mulheres a se relacionar, e se elas não quiserem, no caso de vcs, chamá-las de conservadoras.
Sugiro que leiam esse post e os comentários do post original: https://substack.com/@leahinthesun/note/c-76886751?r=47vmo1