Em outubro de 2018 eu me mudei para Los Angeles para o sanduíche do doutorado. Não era a cidade que eu queria de início, mas era um orientador dos sonhos, então eu fui, cheia de estranhamento e ambivalência já que nada do que eu sabia (e tinha visto em uma visita de turista) sobre Los Angeles combinava com a ideia que eu fazia de mim mesma. Não me interessavam o sol, a praia, o ar de gente saudável. Por outro lado, me interessava muitíssimo Joan Didion e Joni Mitchell e eu tomei isso como amuleto: se essas mulheres eram de lá, havia algo ali para mim.
Naquela época eu ainda não conhecia a Eve Babitz, mas se eu conhecesse eu diria que aprendi a amar Los Angeles como ela se apega aos amantes: uma obra de arte feita pro efêmero. Eu aprendi a amar Los Angeles como uma cidade esquisitíssima e desconjuntada com um pôr-do-sol de tirar o fôlego (vocês notaram que isso aqui vinha no plural, mas eu me recusei a pensar o plural de pôr-do-sol?); um lugar em que eu vi os melhores shows da vida e fumei muita maconha e me apeguei profundamente a estar chapada no banco de trás de um Uber vendo a freeway passar. Um lugar que da minha janela eu via uma igreja Mórmon quase do tamanho de um estádio de futebol e no qual eu acordava, na manhã seguinte a ter voltado chapada no banco de trás do Uber, para fazer yoga e comprar um matchá do gatinho gay australiano que trabalhava no meu café preferido.
Olhando por essa descrição, realmente talvez fosse o lugar perfeito pra mim. O lugar perfeito para mulheres como a Eve Babitz, mas mesmo ela repete sem parar nesse livro que sempre que pensava em “virar uma adulta séria” ela pensava em se mudar pra São Francisco.
People nowadays get upset at the idea of being in love with a city, especially Los Angeles. People think you should be in love with other people or your work or justice. I've been in love with people and ideas in several cities and learned that the lovers I've loved and the ideas I've embraced depended on where I was, how cold it was, and what I had to do to be able to stand it. It's very easy to stand L.A., which is why it's almost inevitable that all sorts of ideas get entertained, to say nothing of lovers
Slow Days - Eve Babitz
Quando eu cheguei em Los Angeles eu era uma pessoa bem séria (para mim, ok), mas eu não era muito escritora. Minha vida inteira parece ser uma alternância entre momentos em que eu sou melhor nessa coisa de ser um ser humano e pior em escrever e momentos em que eu escrevo freneticamente e se minha vida não vai pelos ares é só uma questão de sorte. Mas ali eu achei um certo equilíbrio. Provavelmente foi a solidão: eu não conhecia ninguém na cidade e o trabalho de pesquisa é solitário na melhor das hipóteses. Eu fiz amigas, mas nas primeiras semanas, quando eu falava no grupo de estudos eu quase ficava assustada com o som da minha própria voz. Além disso, o fuso horário me colocava seis horas atrás de quase todos os meus amigos e as noites nunca pareceram tanto um verdadeiro vácuo de silêncio. Quando o Bolsonaro ganhou, eu chorei em um bar de praia em Venice e depois quase ri do surrealismo da cena.
Então eu estava ali nessa cidade que parecia feita para eu jogar minha vida pelos ares, mas sem o círculo social para isso e eu finalmente consegui escrever e pesquisar, fumar maconha e fazer yoga. Los Angeles inventou o um pouco de droga, um pouco de salada e Eve Babitz é a escritora disso.
Eu já tinha lido dela Black Swans, contos mais tardios, de quando ela está perto (ou depois?) dos 50 anos, já parou de beber e já se conformou perfeitamente com a pessoa que é. As histórias de Slow Days, Fast Company são da época em que ela tinha 20 e muitos, 30 e poucos anos e são narrativas de alguém que ainda bebia muita tequila, usava muita cocaína e pulava de cama em cama sem saber o que queria disso, porém, já começava a ter alguma ideia. Não é um livro de uma jovem muito jovem, é o livro do momento em que você percebe quem é em uma cidade que se alimenta de gente que espera ser outra coisa.
This actress “works". She's one of the one percent in “this town”in the Screen Actors Guild who can support themselves. The other ninety-nine percent presumably live half-lives of expectation.
The Flimsies - Eve Babitz
Porque Los Angeles tem mesmo essa aura de cidade dos sonhos, todo mundo ali parece ter uma vida secreta e algo na cidade faz você ao mesmo tempo querer se apaixonar por qualquer pessoa que esteja na sua cama e saber que isso vai acabar não em tragédia, mas naqueles esfriamentos desencontrados que as vezes são ainda mais trágicos. Para mim foi uma cidade em que cada encontro (no sentido amplo) parecia uma bolha, algo frágil, contido, efêmero. Como andar na montanha-russa do píer de Santa Mônica, a onda menos porque ela é uma montanha-russa de verdade e mais porque tudo parece tão precário.
Todos os relacionamentos da Eve Babitz nesse livro parecem assim. Ela já se conformou que não vai se casar ou se mudar para São Francisco de novo e ser uma pessoa séria. Ela é só quem ela é, alguém que gosta muito de romances, champanhe e Faulkner. É curioso pensar que a fase da vida que ela retrata aqui talvez seja uma pouco escrita, esse momento em que você ainda é meio que jovem suficiente para querer muita coisa acontecendo na sua vida, mas velho o suficiente para estar mais em paz com você mesmo, menos angustiado.
A Eve Babitz, por exemplo, está perfeitamente em paz com ser alguém que persegue homens desenfreadamente pra na hora que consegue decidir que logo mais passa pro próximo. Ela é muito auto-consciente ao falar de seu gosto por amantes casados e de fora da cidade. Um pouco menos ao se achar mais heterossexual do que essas histórias mostram que ela era. Mas eu amo como ela não pede desculpas pelo tanto que gosta de tudo isso, ao contrário, ela passa parágrafos e parágrafos dizendo como acha o sexo e a conquista uma forma de arte.
The funny thing was that I'd always believed that sex masterpieces were the best kind. Better than Bach, the Empire State Building, or Marcel Proust. I believe that most people put ninety-eight percent of all their creative energy into trying to stage marvelous love scenes. I believe that adultery is an art form. In France, they more or less lay their cards on the table and ennoble love affairs por the creative adventures they are, because for most people, these are the only creative adventures they'll ever have.
Rain - Eve Babitz
Eu gostei demais dessa definição porque eu tenho muita dificuldade de fazer as pessoas entenderem exatamente o que eu gosto nessas dinâmicas, exatamente por que eu nunca vou ser uma pessoa monogâmica, qual é a de seguir procurando coisas quando você “já tem uma". É porque as pessoas costumam pensar que amor e compromisso são a mesma coisa. A Eve Babitz acha que amor, sexo, paixão são todos elementos de uma arte e não faz sentido a gente separar ou classificar, amor é o que ela sente por um cara que a leva a um jogo dos Dodgers e no dia seguinte isso já passou.
Nesse passagem eu estava lendo na cama e fazendo gestos com a mão para o livro para expressar (pra mim mesma? pra minha gata?) o quanto eu me identifico com isso. O que ela está buscando em todos esses casos é uma espécie de êxtase artístico, a mesma intoxicação de beleza que ela sente quando lê Proust. É isso também que eu estou sempre procurando.
Los Angeles é uma cidade de impermanência e essa impermanência domina tudo em você. Todo escritor de Los Angeles é tão obcecado com Los Angeles porque em nenhum outro lugar a espacialidade te domina tanto. As distâncias, o calor, o vento, aquele céu sem nenhuma nuvem por semanas a fio até o ponto de você se sentir oprimido por um dia bonito. Nenhum outro lugar do mundo faz você se sentir oprimido por um dia bonito. Em nenhum outro lugar parece ser tão impossível ser uma pessoa séria e ao mesmo tempo tão impossível continuar vivendo assim.
I did not become famous but I got near enough to smell the stench of success. It smelt like burnt cloth and rancid gardenias, and I realized that the truly awful thing about success is that it's held up all those years as the thing that would make everything all right. And the only thing that makes things even slightly bearable is a friend who knows what you're talking about
Heroine - Eve Babitz
E Slow Days, Fast Company é isso, essa sensação de estar andando na montanha-russa do píer com um romance que não pode durar. Vivendo uma vida em que todo mundo está só esperando para virar outra coisa. E ainda assim tudo segue, os romances seguem, as pessoas seguem, algumas iguais, outras finalmente passando da antecâmara que é a Los Angeles dos mortais para essa cidade de casas que ninguém vê encarapitadas nas montanhas de Malibu.
Um livro que acontece no espaço de se estar muito chapada vendo a freeway passar pela janela do Uber em uma costa esquecida pelo fuso horário enquanto conversa com as pessoas sérias acordando para o trabalho na costa onde talvez você poderia ser uma pessoa de verdade. Mas talvez seja mais legal não ser
Todas as citações são de Slow Days, Fast Company, mas eu creditei o conto de onde veio cada uma delas
Para manter o clima:
A Joan Didion é A escritora clichê de Los Angeles e minha escritora clichê, mas de tudo, eu acho que onde ela mais capta a cidade é em Cadernos de Los Angeles, que está em Rastejando Até Belém e Play as It Lays, que ainda não está traduzido aqui (como nada da ficção dela!!!)
O Raymond Chandler é o responsável por essa outra imagem de Los Angeles, a do Noir, que lembra que a cidade é também meio suja, cheia de becos e uns bairros esquecidos. Eu amo demais que ele abre The Big Sleep (que saiu aqui como O Sono Eterno) com o Philip Marlowe dizendo que gosta de “álcool, mulheres e xadrez” o que certamente é uma combinação normal de gostos
Por outro lado, o Paul Thomas Anderson lembrou que tem um coração e fez um filme todo fofo quando pensou nos cantos meio esquecidos de Los Angeles: Licorice Pizza é uma versão nostálgica e conto de fadas do San Fernando Valley um lugar que eu só conheço porque peguei um Uber de mais de uma hora (sóbria) até lá pra fazer uma tatuagem com referência a Joan Didion. E Juventude Transviada, um filme que ainda me impressiona toda vez que vejo, usa o Observatório Griffith, meu lugar preferido de Los Angeles, para refletir sobre juventude e esses espaços liminares.
Diorama, da Carol Bensimon, que eu resenhei umas semanas atrás aqui na newsletter, acontece todo entre Los Angeles e Porto Alegre e nele as duas cidades são tão vivas quanto contrastantes (e aqui eu admito que na real eu nem conheço Porto Alegre, o que é ridículo considerando a quantidade de amigos meus que veio de lá, mas é a vida)
O diário de leitura é uma forma nova que eu estou testando na newsletter paga. Ele é escrito enquanto eu ainda não terminei o livro (eu estou na página 100 de 160 no Fast Days Slow Company) e não é uma resenha, só um apanhado de impressões e associações feitas durante a leitura. Eu amei escrever esse e estou ansiosa para fazer mais.
Por último: provavelmente no dia 03/06 acontece nosso clube do livro sobre Middlesex, do Jeffrey Eugenides! Por acaso outro livro com um senso de lugar muito marcado.
Para se inscrever é só responder esse email dizendo que quer entrar e eu passo os dados pra pagamento. O clube custa 20 reais.
gosto MUITO de diários de leitura em meio à leitura <3