Contra a Interpretação
Um passeio por A Parede, Twin peaks e coisas que não são de entender.
Em A Parede, da Marlen Haushofer um belo dia, do mais absoluto nada, uma mulher acorda e uma enorme parede transparente a separou do resto do mundo. Ela, e portanto nós, não sabe do que a parede é feita, por que ela surgiu ali, qual a sua extensão ou traçado, de que forma seu surgimento matou todas as pessoas do outro lado, se desse lado estão todos vivos ou só ela, a protagonista. Ela também não sabe o que está acontecendo nos outros países, se existem outras paredes, até que altura ela vai, se é possível cavar por baixo. Se a gente para pra pensar nessa premissa, a coisa nem faz sentido. Por que as pessoas morrem do outro lado? E como só uma parede pode partir o mundo assim? Se todo mundo desse lado da parede não morreu, por que não aparece ninguém? A parede faz um quadrado?
Uma parede transparente que surge sem explicação não é, de forma alguma, uma boa justificativa para essa protagonista se tornar a única pessoa do mundo. Qualquer livro mais ou menos de ficção científica teria pensado um pouco melhor nas condições dessa premissa.
Mas esse não é um livro de ficção científica. E nada disso importa. O que importa é criar o cenário para uma série de reflexões a respeito da nossa relação com a natureza, da socialização das mulheres para o cuidado, da consciência animal, da vida que vale a pena e mais um monte de temas abstratos e filosóficos. A autora não está interessada nas condições do apocalipse, mas no que essa mulher vai fazer com isso. Não há por que perder tempo com explicações que não servem aos temas que ela realmente quer abordar.
Só quando o conhecimento acerca de alguma coisa se espalha lentamente por todo o corpo é que se sabe de fato. Afinal, também sei que eu, como qualquer outra criatura, preciso morrer um dia, mas minhas mãos, meus pés e minhas vísceras não sabem de nada, e por isso a morte me parece tão irreal. O tempo passou desde aquele dia de junho, e pouco a pouco começo a entender que nunca conseguirei voltar.
A Parede, Marlen Haushofer
Mais ou menos na mesma época em que eu estava lendo A Parede, Twin Peaks entrou no Mubi e eu finalmente fiz o que várias pessoas estão me dizendo há anos para fazer e comecei a assistir. Em um certo episódio, o agente Cooper acorda de um sonho e diz “eu sei quem matou Laura Palmer". Ninguém questiona que ele viu isso em um sonho, o único problema é achar essa pessoa. Em outro momento, ele atira em garrafas para medir a relação das pessoas com o crime (pode não ser isso e eu esqueci, não importa) e ninguém questiona ele acertar um tiro ou não como uma prova da verdade.
É claro que o Lynch é um autor que as pessoas já encontram com a expectativa de um certo surrealismo e eu sei que Twin Peaks em si começa a caminhar mais para a presença de um elemento sobrenatural. Mas quando essas duas coisas acontecem a série ainda está trabalhando em uma chave relativamente realista, mesmo que um pouco estranha. Revelações sendo feitas em sonhos são um elemento que nesse momento parecem exigir alguma explicação mais profunda ou despertar o estranhamento dos personagens que ouvem essa história. Nada disso acontece porque, justamente, a partir daí a história começa a virar para uma investigação dos imaginários e desejos subterrâneos de um Estados Unidos profundo. O Lynch tem um tema e a inserção desse elemento não-realista permite que ele, e a gente, se descole da trama e volte os olhos para isso.
Eu sei que a internet está cheia de gente dedicada a destrinchar e interpretar cada pequeno elemento de Twin Peaks e qualquer outro filme do Lynch. Que para muita gente o entendimento de uma obra de arte passa pela decodificação dos elementos apresentados, como se a peça audiovisual fosse um mapa de caça ao tesouro em que decifrar as pistas te leva ao “que o autor quis dizer". E a verdade é que nos meus tempos de cineasta eu fui diretora de arte e sim, eu montava paletas de cores significativas, atribuía tons a certos sentimentos dos personagens e escolhia xícaras de chá para dizer alguma coisa. Porém, esses pequenos elementos eram menos uma segunda camada de texto a ser lida e mais um empurrão, uma vibe, uma corrente guiando o espectador na direção geral do filme.
Há anos eu brinco que aprecio certas coisas pelo que chamo de Método Tarkovski: não estou entendendo nada, mas tá bonito, segue o jogo. Foi assim que eu li Ulysses em três semanas. Que eu encarei a fase maoísta do Godard. E eu chamei assim porque foi o que finalmente me fez sair de um incômodo frustrado com o Tarkovski para uma espécie de encanto transcendente.
Eu imagino que seja possível traçar todas as influências visuais de Andrei Rublev e que alguma tese de doutorado em história da arte prova que cada plano do filme é na verdade uma releitura de ícones ortodoxos. Acho plausível. Não acho que importa. Também não importa se depois de três horas e vinte e cinco de filme eu sigo não sabendo nada da biografia de um miniaturista do século 14. Na verdade, eu descobri digitando Andrei Rublev no Google dois minutos atrás que o filme se passa no século 14.
Mas eu entendi, sentada no chão da sala de um apartamento em que eu morei muito tempo atrás, minhas costas contra um sofá vermelho que eu passei a odiar, que aquelas imagens pretendiam captar uma presença do divino. Assim como um ícone ortodoxo, que não é uma representação, mas uma existência. Eu não estava seguindo a trama, eu sei, mas a beleza daquelas imagens, a expressão no rosto do Anatoliy Solonitsyn, tudo aquilo me falava da possibilidade da arte, do absurdo que é seres humanos serem capazes de produzir - com nossas mãos tão concretas, com tinta e pincel e câmera e luz - uma beleza tão intangível.
Esculpir o Tempo é meu livro preferido sobre cinema. Mais até do que A Lanterna Mágica e eu acho encantadora a história de que o Bergman trocou um exército inteiro de soldadinhos de chumbo por um projetor, acho a coisa mais romântica do mundo a artista pura que ele vê na Liv Ullman. Mas o Tarkovski fez o cinema fazer sentido pra mim: a matéria bruta do cinema não é o roteiro, os atores, a montagem, não é sequer a luz ou o real. É o tempo. O cinema se faz no tempo, na manipulação do tempo. A arte e a mágica são retirar seu espectador do tempo do mundo e fazer com que eles experimentem - com que seja real - o tempo do filme.
Um filme é pegar o tempo não apreciado, não examinado e cinzelá-lo como um bloco de mármore até que saia dali seja algo cuja experiência nos atravessa. Algo belo.
É curioso que a outra obra que eu sinto que precisa ser apreciada assim é a da Virginia Woolf, que também é tão ligada a essa experiência do tempo. Meu segundo livro favorito dela (logo depois de Rumo Ao Farol) é As Ondas, que eu sei que é também um dos mais ininteligíveis. É impossível manter controle sobre os acontecimentos do livro, traçar com qualquer tipo de segurança o que realmente aconteceu na vida de cada um dos personagens. Mas o ponto é todo esse. O ponto é que a vida, os anos, o tempo, são como ondas quebrando na nossa cabeça sem parar. A gente não consegue organizar toda nossa vida dentro de uma linha narrativa perfeitamente linear e ininteligível, então por que deveríamos conseguir fazer isso com personagens?
How much better is silence; the coffee cup, the table. How much better to sit by myself like the solitary sea-bird that opens its wings on the stake. Let me sit here for ever with bare things, this coffee cup, this knife, this fork, things in themselves, myself being myself.
The Waves, Virginia Woolf
Eu vivo tendo com a
a discussão de o que nos interessa na literatura. Ela lê pela manipulação da linguagem, sem nenhum interesse por personagens ou trama. Eu me importo com a linguagem e me importo com personagens ou trama, mas escrevendo essa newsletter eu consegui pegar que o que realmente me move são Temas, é o que aquela obra fala para mim, quais questões ela explora, sobre o que ela reflete. A linguagem e os acontecimentos me interessam, mas porque tudo isso é como a gente pode Falar de Algo. Pelo jeito, eu sempre vou pra arte como uma ensaísta, sempre esperando que uma coisa me faça pensar em outra.É extremamente escolinha de Frankfurt da minha parte, mas a forma da arte me interessa porque é ela que comunica o conteúdo e meu ponto nesse texto é que muitas vezes o não entender tudo que está acontecendo é um jeito melhor de chegar no que a obra está te dizendo. Orlando fala - entre várias outras coisas - da desconexão entre nossa subjetividade e percepção externa, da alienação profunda de ser uma mulher no mundo, de desejo e corpo e lesbianismo porque um homem um dia acorda e vira mulher. Se isso tudo fosse explicado, o estranhamento era menor.
Em Através de Um Espelho, do Bergman, todos os personagens querem diagnosticar Karin, mas sua doença ter um rótulo não a ajuda em nada, não faz parar o esfacelamento, o contato traumatizante com a escuridão do mundo. O fato de que nosso entendimento contemporâneo rapidamente a lê como esquizofrênica na verdade distrai do que é uma loucura abstrata, uma representação dolorosamente fiel da sensação de estar fora de si, de ter a unidade do seu ser te escapando por entre os dedos.
Se A Parede passasse mais tempo na mecânica da coisa, então não seria um livro sobre as estações, os animais e, precisamente, uma apropriação menos intelectualizada do mundo. Eu poderia ir entender os elementos esquisitos de Twin Peaks, mas isso me tira de uma história que é sobre a falta de sentido de um sistema e um universo que parecem ter tanto sentido. Se em uma história policial tradicional é possível seguir as pistas ou refazer seus passos para encontrar em cada elemento uma dedução lógica, o fato de que aqui o quebra-cabeça é impossível, as pistas são surreais e as revelações vêm em sonho é o que desconstrói a história de mistério como domínio da lógica e reino dos Sherlock Holmes. O Cooper é um pouco o anti-Sherlock Holmes porque não importa o quanto você queira entender, a explicação de uma garota morta é sempre o irracional e monstruoso, esse tipo de violência é algo que a gente não devia entender.






A ideia do “Método Tarkovski” é um bálsamo para quem já se perdeu em labirintos narrativos: “não estou entendendo nada, mas tá bonito, segue o jogo.” Que sorte a nossa poder nos deixar levar pela beleza do tempo cinzelado, pela presença do divino nas imagens, mesmo sem uma linha clara de história.
Sua reflexão me fez lembrar como, muitas vezes, o que nos toca na arte não é a trama, nem a explicação, mas o espaço aberto entre as coisas, esse lugar onde o silêncio, a cor, o tempo, a sensação, criam um universo próprio.
adorei seu texto, Isadora! pensar no valor da forma separada do conteúdo é o tipo de exercício que tenho me proposto desde que li um prefácio do Vladimir Nabokov falando que sua motivação para escrever "Lolita" eram as imagens bonitas. foi um pouco chocante por tudo o que o livro representa. desde então tenho me amparado na frase de Oscar Wilde sobre a arte refletir o espectador/leitor e não precisar carregar valor moral, e na proposta de Susan Sontag contra a interpretação - o que me fez começar a ler o seu texto. essa conexão com o sensorial sem explicação, sem porquê, só pelo deleite do sentir, de apreciar a beleza ou o grotesco, o prazer e o incômodo, tem se tornado raro; e eu tenho minha parcela de culpa ao estudar e fazer análises de conteúdo sobre produtos artísticos. acho que dá pra equilibrar as duas coisas e perceber que aquele "guilty pleasure" pode ser muito digno de respeito por causar esse sentimento arrebatador de êxtase pelo que ele é e só. sem que a gente precise explicar ou saber o porquê.