Eu me lembro até hoje de quando eu descobri a Fiona Apple. Era de madrugada, quando a MTV encerrava a programação e deixava rolando uma playlist aleatória de clipes. Muito da minha educação musical foi feita por essa playlist aleatória que eu deixava passar nas noites em que me esgueirava para fora do meu quarto para fumar escondida empoleirada na janela da sala enquanto minha mãe dormia. Eu vi Imitation of Life assim mais vezes do que posso contar e nunca deixou de ser fascinante. Quando eu entrei na faculdade de cinema e vi Viagem à Lua eu reconheci Tonight, Tonight. Eu fumava e via clipes e não dormia menos como uma ação e mais porque eu precisava de alguma maneira preencher o tempo da minha adolescência, que foi chata, solitária e longa demais.
E então uma noite eu estava empoleirada na janela fumando L.A. de cereja (eu não escrevo essa newsletter pra esconder minhas vergonhas, gente) quando apareceu na televisão uma moça muito magra, de olhos verdes enormes, deitada no chão como um cadáver em série de assassinato e cercada por outros quase adolescentes com a mesma cara de heroin chic. A estética toda da coisa era a que eu - com meu esmalte preto descascado, meu cabelo loiro e rosa até a cintura - gostaria de ter, mas obviamente não tinha. Mas o que me arrebatou a ponto de eu cometer o maior dos pecados que era jogar o cigarro pela janela (porque ele poderia cair no vizinho que ia reclamar com a minha mãe, etc, etc) e deslizar pelo encosto do sofá até chegar o mais perto possível da televisão foi a letra.
Don't you tell me to deny it
I've done wrong and I want to suffer for my sins
I've come to you 'cause I need guidance to be true
And I just don't know where I can begin
Criminal fala de uma narradora descuidada com um homem que a ama. Não era meu caso, mas eu tinha passado quase um ano inteiro me esgueirando pela escola para beijar o namorado de uma menina da minha sala. Ela sabia. Todo mundo sabia. Eu conseguia, no meu feminismo incipiente formado por discos do Bikini Kill, formular que as pessoas deveriam estar fazendo a caveira dele e não a minha e por isso eu fingia que não sentia qualquer culpa ou remorso. O que eu claramente sentia, só não tinha sido suficiente para me impedir.
E depois desse ano eu tinha entrado em algo que viria a ser longo e importante, mas nesse momento ainda era uma massa amorfa de tesão adolescente e nós não acreditamos nos relacionamentos tradicionais. Eu queria muitas coisas relacionadas à amor e sexo e eu não sabia nomear nenhuma delas e todos esses desejos pareciam errados e destrutivos. E ali, na minha televisão, tinha uma mulher pouco mais velha que eu pedindo para que os céus a ajudassem por ser quem é porque por mais que ela soubesse que nada daquilo era ideal, bom, era só quem ela era.
Hoje eu sou uma mulher adulta que escreve com muita frequência sobre feminismo e sexo e sou capaz de nomear parte do que eu sentia como as consequência de ser uma menina de 16 anos em um mundo que policia cada centímetro dos corpos femininos de 16 anos. Mas conforme eu cresci, e a Fiona Apple cresceu comigo, eu e ela fomos entendendo algo a mais a respeito dessa tendência para a transgressão.
Tidal, primeiro disco de Apple, abre com Sleep to Dream, uma música cantada com uma raiva que até hoje eu ouvi poucas vezes a respeito daqueles homens que te perseguem e quando você é qualquer coisa além de uma rainha do gelo ou uma donzela passiva decidem que é demais. Eu conheci muitos desses. Fiona também. Mas a poesia com que ela fala disso e, mais ainda, o ódio direcionado a ele, nunca a ela, eram o que mais tarde a tornariam reveladora para mim.
Porque esse texto está sendo enviado no que deveria ser a semana da resenha porque eu quero mesmo falar de When the Pawn…, segundo disco da Fiona Apple. Esse, por sua vez, começa com On the Bound, uma música em que na primeira estrofe ela diz hell don't know my fury.
Esse tema segue, To Your Love, a segunda música fala:
I would've warned you, but really, what's the point?
Caution could, but rarely ever helps
Don't be down, my demeanor tends to disappoint
It's hard enough even trying to be civil to myself
Fast as You Can e The Way Things Are falam dessa mesma tentativa de aviso que parece dizer “eu vou destruir sua vida, eu não sei ficar nos limites do que você considera adequado". E ao mesmo tempo, as duas são músicas sedutoras, cantadas em uma voz sexy como quem diz “eu vou destruir sua vida, eu estou avisando, mas vem mesmo assim".
Essa ideia de ser “demais” é algo que perpassa várias artistas mulheres e eu mesma escrevi um texto pensando essa ideia na Lorde e na Mitski um tempo atrás, mas na Fiona Apple a coisa tem mais camadas e evoluí de um jeito muito peculiar. Isso porque de fato nesse mesmo disco ela escreve Limp, uma música com o ódio de Sleep to Dream sobre um homem que vai chamá-la de doida quando foi ele que atiçou essa fogueira e depois Fast as You Can em que ela canta com doçura até que “O darling, it's so sweet, you think you know how crazy, how crazy I am". Mas isso por que:
Sometimes my mind don't shake and shift
But most of the time, it does
And I get to the place where I'm begging for a lift
Or I'll drown in the wonders and the was
E é aqui que eu acho que nasce todo meu fascínio com a Fiona Apple e também a maneira como eu uso essa cena de descobri-la por acaso em uma madrugada melancólica como minha historia de origem como escritora (vocês vão ter que concordar que é melhor que “meus pais nunca me amaram"). Todas essas músicas sobre homens escondem uma narrativa maravilhosamente ambígua e fascinante que é: ela vive em uma mente infernal, um eu que treme e flutua e não cabe nos contornos pré-estabelecidos; mas se você pisou aqui, agora segura. Ela não finge ser fácil, ela não se exime da culpa quando é sua, ela estourou com Criminal, afinal, mas ela está também constantemente acusando pares amorosos de serem covardes, infantis e inseguros. Eu posso ser doida, ela diz, mas você devia ser capaz de segurar.
Essa segurança improvável aparece em duas músicas que talvez sejam as mais clássicas desse disco: A Mistake e Paper Bag. A Mistake é um ode a um sentimento de vontade de destruir, desfazer, errar, seguir caminhos que você sabe que não deveria porque sua mente é esse lugar muito louco e as vezes é só disso que ela precisa. Mas ela escreve e canta isso com um tom tão sardônico, de quem está se divertindo tanto, que é irresistível
And when the day is done, and I look back
And the fact is, I had fun fumbling around
All the advice I shunned, and I ran
Where they told me not to run
But I sure had fun, so
Em outros discos (e quem sabe isso vira uma série e eu fale dos outros mais pra frente?) ela analisa de maneira muito mais madura essa vontade de destruição e a maneira como os relacionamentos que deram certo dela foram os que construíram o espaço para esses erros, para esse caos, para que ela fosse e estragasse as coisas e então voltasse. Eu entendo isso. Essa maturidade que tem a forma de você deixar de brigar com o demônio dentro de você mesma e só construir uma vida em que ele caiba. Em Dardevil, vários anos depois de When the Pawn, ela escreve a frase “I will try hard to hold onto you with open arms” que eu acho de uma beleza absurda.
Mas aqui ela só quer cometer um erro, ela quer quebrar as coisas para sentir. E é o que é.
E aí Paper Bag, hino de quase todas as mulheres que eu conheço para quando aquela história que você achou que ia dar em alguma coisa não dá em nada. “Thought it was a bird, but it just a paper bag". Na época desse disco, a Fiona Apple namorava o Paul Tomas Anderson (e no ciclo de entrevistas do último disco, em 2020, ela conta uma história perfeita de ver ele e o Tarantino conversando cheirados de cocaína) e é ele quem dirige o clipe. Eu fico em dúvida se ele estava dirigindo um clipe sobre ele mesmo, mas se for, eu acho perfeito.
Nessa música ela ao mesmo tempo reconhece que é “a mess he don't wanna clean up” e entrega essa estrofe impecável:
And I went crazy again today
Looking for a strand to climb, looking for a little hope
Baby said he couldn't stay
Wouldn't put his lips to mine and a fail to kiss is a fail to cope
I said, "Honey, I don't feel so good, don't feel justified
Come on put a little love here in my void,"
He said "It's all in your head,"
And I said, "So's everything" but he didn't get it
I thought he was a man but he was just a little boy
Ela é esse caos e esse redemoinho e sim, as vezes é uma bagunça que ele não quer limpar. Mas a incapacidade dos destinatários dela de lidarem com isso está igualmente na mira. Ela pode querer cometer um erro, é uma criança o homem que não sabe lidar com isso.
Quando eu tinha 16 anos, esse disco foi uma revelação. Tidal é maravilhoso, mas ele é mais repleto de inseguranças e ódio da Fiona por ela mesma, enquanto aqui ela começa a caminhar para o que depois vai ser o gênio do Extraordinary Machine e os dois álbuns tardios: ela não é doida, ou é, mas é também brilhante. E provavelmente nada disso está bom, mas é o que é. É quem ela é. E ela é um gênio, o que eu muito provavelmente não sou, mas a autorização que essas letras me deram para destruir o que eu queria destruir e para também parar de tentar destruir a mim mesma foi todo um acontecimento.
When the pawn hits the conflicts he thinks like a king
What he knows throws the blows when he goes to the fight
And he'll win the whole thing 'fore he enters the ring
There's no body to batter when your mind is your might
So when you go solo, you hold your own hand
And remember that depth is the greatest of heights
And if you know where you stand, then you know where to land
And if you fall it won't matter, cuz you'll know that you're right
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Vira e mexe me bate uma melancolia absurda quando eu penso que há grandes chances de eu nunca ver um show da Fiona na vida.
Amei o texto!