Do que você tem medo?
Um ensaio-resenha de As Coisas que Perdemos no Fogo, da Mariana Enriquez
Relacionamentos, especialmente os longos, são uma alquimia muito esquisita entre as coisas que vocês têm em comum e as coisas que é melhor não ter, para que cada um possa guardar um pedaço que é só seu, ter uma lista de filmes que é só sua, nunca perder uma certa satisfação no tempo que se passa sozinho. Eu falo isso não porque essa seja uma newsletter sobre relacionamentos, ela é na verdade um texto sobre histórias de terror, uma coisa que meu namorado não vê.
Ele também não vê documentários estonianos sobre mulheres numa sauna ou filmes tchecos da década de 60 ou a fase maoísta do Godard e tudo isso eu estou em paz. Eu vejo essas coisas sozinha e aqui e ali o convenço de que ele deveria ver Blow Up ou Acossado. Mas tem algo específico no terror que me empurra a querer compartilhar, a querer que alguém vá comigo ao cinema, que alguém assista comigo a Isabelle Adjani enlouquecendo em um metrô de Berlim e então eu me pego constantemente tentando convence-lo de que não tem motivo nenhum para alguém não ver filmes de terror.
É claro que eu sei que tem, mas o que é a vida senão umas mentiras que a gente conta pra convencer o outro de alguma coisa e faz umas semanas, enquanto ele tentava me explicar o que exatamente não gostava nesses filmes, eu repeti o que talvez seja meu argumento mais constante “é um filme de zumbi, mas não é um filme sobre zumbis". Ele riu e então perguntou “mas é sobre o que?” e eu desenrolei algo sobre a sociedade de consumo, a mídia norte-americana, o racismo. Não deixa de estar certo, você sabe se já viu algum filme do Romero, mas por motivos que a gente vai chegar eu me peguei pensando nisso nos últimos dias. E a verdade é que os bons filmes de terror de fato não são sobre os monstros, eles são sobre o medo.