A essa altura você, pessoa na internet, já deve ter notado que as mulheres e certo recorte demográfico de homens gays a sua volta estão participando do eventual anual “passando raiva com personagens fictícios” também conhecido como uma nova temporada de A Amiga Genial. É um ritual com todo o conforto e segurança da repetição: a gente já passou raiva com os livros, a gente já sabe tudo que acontece, a gente já odeia esses personagens antes mesmo deles abrirem a boca. Nada mais nos atinge além daquela raiva gostosa.
Ou pelo menos foi o que eu achei quando comecei essa nova temporada.
Caros leitores, eu estava errada.
Vejam bem, eu lembrava do Pietro, o primeiro marido da Elena. E eu lembrava que tinha sentido ódio dele. Mas a minha lembrança era de um ódio morno, um banho maria de ódio por um homem que simplesmente não estava lá. Alguém ausente e chato. Eu me lembrava do Pietro como chato, meio pau mole, meio ruim de cama, chato. Eu lembrava do tédio da Elena e como uma pessoa particularmente avessa ao tédio, ainda mais a esse tipo de tédio duradouro, eu senti ódio dele. Mas eu não me lembrava de ele ser abertamente um escroto.
Ah, as armadilhas da memória.
Minha lembrança foi corrigida no episódio em que nasce a primeira filha deles. Meses antes, no dia do casamento, Elena diz a ele que gostaria de comprar pílulas anticoncepcionais. Não é que ela não queira ter filhos, ela diz, mas gostaria de se firmar profissionalmente antes, escrever um segundo livro, fazer um nome. De jeito nenhum, ele diz, a função de uma esposa é ter filhos. Ela não compra pílulas. Ela tem um filho. E no quarto do hospital, quando a neném acabou de nascer, ele a presenteia com um caderno e diz “é importante você não perder o ritmo".
É possível que eu tenha gritado com a televisão como uma senhora de 80 anos que dá boa noite pro William Bonner.
Mas pior do que isso é que desde então essa cena, essa fala, me persegue. Esse texto é o resultado de um mês em que eu revirei, analisei e observei o que realmente quer dizer apoiar uma mulher profissionalmente.
E eu penso isso porque eu sou uma mulher desmesuradamente ambiciosa (e eu sei disso), mas também porque eu vivo em um círculo majoritariamente progressista, de relacionamentos democráticos, de homens desconstruídos. E todos os dias eu os vejo ser o Pietro nesse cena.
Porque nessa cena ele acredita, de verdade, que está apoiando e incentivando a carreira de escritora dela. Mais do que isso, ele acredita que se apaixonou porque ela é uma mulher inteligente, com trabalho intelectual e sonhos próprios. Mas toda essa vida interior e inteligência só servem se ele não tiver realmente que abrir mão de nada por isso. E todo dia eu vejo homens sendo exatamente assim.
Mas, você vai argumentar comigo, nós não estamos mais nos anos 60. Nós compramos nossos próprios anticoncepcionais, colocamos nossos DIUs e, a depender de nossa condição financeira, temos na prática a plena liberdade reprodutiva. Além do que, nós sabemos hoje em dia do trabalho que é criar um filho e ninguém diria uma coisa dessas para uma mulher com um recém nascido. Claro, eu concordo, ninguém diria. Mas quem também criaria as condições para que essa mulher “não perdesse o ritmo"?
É hoje senso comum, ao menos nesses círculos de que falo, que Tolstói só escreveu e teve uns 20 filhos ao mesmo tempo porque a mulher cuidou desses vinte filhos. Que Hemingway viveu aventuras as custas de mulheres que lavavam suas cuecas. Que Fitzgerald festejou as custas de uma mulher recolhendo as taças no dia seguinte. Nós reconhecemos isso e nos sentimos iluminados, evoluídos. Os homens reconhecem isso e pensam que vão dividir as tarefas, vão permitir que suas mulheres adiem os filhos, vão recolher as taças no dia seguinte e lavar as próprias cuecas. Isso deve ser suficiente. Agora que elas não estão mais soterradas em sua liberdade criativa, elas podem alcançar a delas. Eu peço, leitor, um olhar para o estado da literatura contemporânea, da fama, dos prêmios. É suficiente?
O que a gente reluta muito mais em reconhecer é que tarefas iguais são um progresso em relação aos Pietros da vida, mas talvez não seja suficiente. Eu falo do trabalho intelectual e criativo, que é o que eu conheço, mas ao mesmo tempo intuo que isso seja verdade para outras coisas também: existe um lugar em que você só chega quando é libertado de parte da sua vida.
Nos últimos cinco anos eu fiz um doutorado. Eu pesquisei, eu viajei, eu li, eu escrevi, eu transformei esse trabalho em um livro. E em diversos momentos desses cinco anos eu pensei que meu trabalho seria significativamente melhor se eu pudesse ser libertada do gerenciamento cotidiano da vida. De fazer almoço e jantar. De pensar no sofá que precisa de limpeza, na privada que entupiu, na ração dos gatos. E veja, eu sou uma mulher bastante livre, na medida em que qualquer mulher é livre. Eu não moro com meu parceiro. Eu não tenho filhos. Eu tenho uma renda boa vinda basicamente de trabalho intelectual. E todos os dias eu sinto que eu sou uma escritora pior porque eu preciso lembrar de fazer feira e lavar a louça. E, principalmente, quando eu fui morar fora por esse trabalho eu fiz isso disposta a sacrificar meu relacionamento.
Eu quero parar nessa última frase um momento. Porque eu fui. Ninguém me impediu, ninguém me pediu para ficar, ninguém me deu um ultimato. Mas o arranjo da minha vida não me dava a segurança de que ir não era perder algo. E desde então eu nunca me afastei desse sentimento: de que existia uma segurança afetiva que homens ao longo da história tiveram e que nós constantemente abrimos mão. Talvez você ache que eu estou querendo demais, que isso tudo que eu estou falando é absurdo e o equivalente de uma escravização vingativa dos homens. Eu não acho que seja isso, mas ok, eu poderia aceitar um argumento de que nenhum de nós, homens ou mulheres, deveria querer tanto da vida. Faz sentido, eu acho.
Mas minha questão é que eu vivo em um círculo de homens que não argumentariam isso. Que argumentariam que suas parceiras são livres para ir até onde querem e “eles apoiam". Mas o que é esse apoio? É largar um emprego se ela precisar mudar de país? É assumir o gerencialmente mental da casa para que ela libere esse espaço no cérebro para pensar? É estar, de verdade, real, disposto a ser um segundo lugar? A maior parte dos homens que eu conheço acha que apoiar uma mulher em suas vontades profissionais, intelectuais, criativas é um simples sair do caminho. Os homens de antigamente nos sobrecarregavam, vocês não fazem isso, pronto, voe pequena escritora.
Mas não é isso.
Existiu uma segurança emocional na vida desses homens. A certeza de que suas vontades artísticas não significavam abrir mão de amor, vida familiar, ou o que for. Que nenhum passo que eles dariam lhes custaria sua vida pessoal. Eu não conheço hoje uma mulher com essa certeza. Todas nós testamos as águas dia após dia e damos passos pensando quando algo vai ceder. Nós planejamos os próximos dez anos sem espaço para errar e esse planejamento mais do que chegar a um sonho doido quer fazer isso sem deixar para trás muitas partes de quem somos. Os homens saem do caminho e deixam esse vazio no qual a gente anda, sem ter que catar o lixo dele, mas sem ninguém que cate o nosso.
De novo: é suficiente?
O Pietro se casa com a Elena certo de que quer uma mulher inteligente, independente, com sonhos próprios. Ele não quer que ela perca o ritmo. Ele só não está disposto a diminuir o ritmo da vida dele por isso. Eu conheço homens que todos os dias me dizem que apoiam todos os sonhos de suas mulheres, mas eu me pergunto se eles trabalhariam por elas.
ATENÇÃO PARA O MOMENTO JABÁ MAIS IMPORTANTE DESSA NEWSLETTER: Minha tese de doutorado virou um livro!!!
Imagino que boa parte de vocês saibam, mas ano passado eu defendi meu doutorado em Letras com uma pesquisa sobre o Holocausto na ficção do Philip Roth. Esse trabalho virou um livro que sai agora pela Folhas da Relva, uma editora não-acadêmica, como um ensaio crítico a respeito das ideias de memória e identidade na obra dele.
Publicar por uma editora não-acadêmica e transformar esse trabalho em uma peça de crítica literária acessível era algo importantíssimo pra mim e eu estou feliz demais que aconteceu. Vai ter evento presencial de lançamento, autógrafos, abraços, bebida, tudo isso, mas até lá você já pode comprar meu primeiro filho na pré-venda aqui!
(Sim, a capa lembra o primeiro livro da Lenu. Foi coincidência, mas agora eu estou apegadíssima a ela)
Gente, eu sei que essa newsletter sumiu por mais tempo do que deveria, mas vamos ignorar e fingir que faz sentido eu só comentar das coisas de março.
O que eu li: Lili, da Noemi Jaffe, um ensaio brutal sobre o luto e Em Carne Viva, da Jacqueline Woodson, uma saga familiar sucinta e complexa. Os dois para o Lendo Nosso Tempo, que em breve deve ter novidades anunciadas.
Black Swans, da Eve Babitz, um livro de contos meio autobiográficos dessa mulher que viveu em Los Angeles, adorava uma festa, um glamour e um livro do Faulkner. Não preciso dizer que é minha nova escritora favorita.
K: Relato de Uma Busca, do Bernardo Kucinski, foi uma releitura e bateu tão forte quanto da primeira vez. Reli porque vou trabalhar com meus alunos no segundo semestre e por causa de um vem aí que eu conto logo mais
Song of Solomon, da Toni Morrison, como é que pode o jeito que essa mulher escreve não é possível uma prosa assim
O que eu vi: Eu vi muita coisa gente, segura aqui comigo.
De filmes: vi Batman, gostei da estética, gostei de finalmente ver um Batman detetive, não gostei que tem três horas e o Robert Pattinson tá feio (vi no cinema, mas já tá na HBOMax); vi An Affair to Remember, achei bonito, mas também achei que calma gente (no Star+); Os Sonhadores porque eu namoro um homem que nunca tinha visto a Eva Green pelada e fiquei surpresa de descobrir que ainda acho o filme muito bom e não só porque o Louis Garrel nesse filme me estragou pra sempre (não tem em lugar nenhum, baixei); Belfast, achei simpático, mas também que aquela criança era a pessoa em quem eu menos tava interessada nessa história toda (no cinema); Madres Paralelas e é só uma bosta (tá na Netflix, mas não vale o tempo da sua vida); Drive My Car e não acredito que vou defender um filme de três horas, mas é maravilhoso (vi no cinema, mas tá no MUBI agora); Em Águas Profundas é meio ruim, mas é divertido, vale pela Ana de Armas muito doida (no Prime Video); A Pior Pessoa do Mundo, eu acho que descarrilha um pouco na parte final, quando tenta ser um filme Sério, mas adorei (no cinema); Pequena Mamãe, achei fofo, mas Celine Sciama volta a fazer filme de lésbica (no cinema também)
De televisão eu vi a quarta temporada de Marvelous Mrs Maisel e achei que a trama não vai muito pra lugar nenhum, mas o diálogo tá afiadíssimo, bem melhor que a temporada anterior e mddc o Lenny Bruce (no prime video); Vi a segunda temporada de Euphoria e aquele roteiro é um crime (na HBOMax); Engoli Inventando Anna e é meio ruim, mas é entretenimento 10/10 (na Netflix)
O que eu ouvi: Eu acho que nada, olha quanto filme eu vi, plmdds
obrigada por isso.