Muitos anos atrás, quando eu ainda era jovem demais para saber do tipo de perda e dor que essa história falava e também jovem demais para elaborar em palavras o que eu viria a pensar a respeito de amor, monogamia e desejo, eu li Fim de Caso, do Graham Greene em dois dias.
Eu não lembro detalhes do livro, mas eu quase consigo sentir a febre que essa história me causou. A maneira como eu não conseguia tirar os olhos das palavras, ou parar para respirar porque aquela narrativa nas minhas mãos parecia estar me revelando algo que eu de certa forma já sabia, mas nunca tinha visto assim, escrito por alguém que não era eu e meus 21 anos, alguém que era um homem inglês autor de livros importantes. Com o tempo eu viria a discordar das conclusões a que o Graham Greene chega, mas o centro dela e as questões levantadas me fascinam até hoje.
Fim de Caso é a história do relacionamento entre um escritor, Bendrix, e uma mulher casada, Sarah. Ela é casada com um homem chato e inofensivo do qual ele é amigo e ele é um amante obsessivo, consumido pelo ciúmes e pela necessidade da presença física dela. Um dia ela vai embora e ele imagina (é uma boa hipótese, vamos concordar) que é por causa do sufocamento que causou. Mas a questão é bem outra.
A questão é outra porque essa não é uma história de amor, mas uma exploração filosófica do desejo e do ciúmes assim como um tratado teológico acerca da existência de Deus e a possibilidade de milagres. Eu não vou explicar exatamente como isso aparece na história porque vocês tem essa mentalidade estreita de odiar spoiler, mas basta dizer que a hipótese que o Greene está levantando é a de que Deus está de certa forma no espaço entre nós e o outro, na possibilidade de preencher esse espaço e no que existe quando nós não estamos na presença física do objeto amado.
Me perguntam bastante se eu acredito em Deus daquele jeito um cara sentado em algum lugar no céu e eu sempre rio. Acreditar assim me parece tão absurdo quanto pra pessoa que pergunta. Eu gosto de explicar que eu acredito em algo a mais no mundo porque existe Proust. Porque enquanto humanidade nós fabricamos meia dúzia de coisas de uma beleza ao mesmo tempo incompreensível e inútil. Não há qualquer explicação racional e possível para Em Busca do Tempo Perdido, um quadro do Rothko, Morangos Silvestres. Ninguém precisa desse tipo de beleza, ela nem é mais agradável.
E ainda assim.
Nós a produzimos. Nós precisamos dela. Mágica. Ou qualquer coisa que eu não sei, ou não quero explicar.
Para o Graham Greene o que parece inexplicável é que nos dias e noites longe do objeto amado, alguém siga amando. Para Bendrix essa ideia é tão insuportável quanto é para Ivan Karamazov que talvez Deus não exista, ou que ele exista, mas a moral segundo a qual o mundo funciona não tenha nada a ver com isso. Tudo é permitido e Ivan precisa literalmente alucinar uma aparição pra processar essa ideia. Que o amor exista na distância, na ausência e de forma livre é uma ideia tão absurda e impossível que ele precisa testá-la da mesma maneira que Ivan testa os limites dessa não-moralidade (eu juro que eu devia dar spoiler de um livro de 1800, mas tá bom).
E ele testa pelo ciúmes. Com os jogos infantis de até onde você me ama? E ele encontra a prova do que quer acreditar na recusa de Sarah de deixar o marido, Henry.
Henry é um cara mediano, servidor público, que precisa de uma esposa por questões profissionais e ao mesmo tempo em que não é apaixonado por Sarah, não vai investigar muito o que ela anda fazendo. Ele não é o tipo de marido que vai matar a mulher, ou o amante, se pegá-la na cama com outro. Ele entende a diferença entre o relacionamento deles e a paixão, ele, diferente de Bendrix, aceita a possibilidade das muitas formas de amor.
O que eu eventualmente vim a discordar do Graham Greene, é que ele postula e defende uma correlação necessária entre desejo e impossibilidade. Nós desejamos o que não podemos ter. O adultério é a maior fonte de boa literatura da história. Eva nunca teria comido a maçã se não tivessem dito para ela que não podia. Etc, etc. Eu não discordo disso totalmente, eu já escrevi em outros ensaios aqui a respeito da relação entre desejo e transgressão, especialmente para mulheres. Mas eu acho que desorganização e transgressão não precisam dessa proibição externa, moral, divina.
Pode ser porque eu sou mulher e, portanto, todo desejo me é proibido. Pode ser porque ele estava escrevendo isso no pós-segunda guerra, um período em que a Europa estava se confrontando com a ideia de que o grande desejo histórico deles era matar judeus. Ou pode ser porque o Greene, apesar de toda a complexificação que faz da ideia de Deus, no fundo é só um católico.
Pode ser porque mais difícil do que repensar Deus, é repensar as formas de amor. Eu penso muito nisso, não só no âmbito do amor romântico e do sexo. Claro, desde que eu compreendi a ideia de sexo eu acredito na separação dele do amor e na insignificância da fidelidade física para o amor. Mas eu penso porque o amor romântico, esse que no imaginário popular requer a exclusividade não só do toque, mas do sentimento, é superior aos outros. Ou, porque todo amor valorizado é excludente.
I want men to admire me, but that's a trick you learn at school--a movement of the eyes, a tone of voice, a touch of the hand on the shoulder or the head. If they think you admire them, they will admire you because of your good taste, and when they admire you, you have an illusion for a moment that there's something to admire.
Graham Greene, “The End of the Affair”
Explico: ninguém acredita em um limite ou uma fronteira para amar amizades. Elas podem ser muitas e você pode amar todas elas iguais e esse é o amor menos valorizado do mundo. O amor familiar, acima dele no degrau, não é exclusivo no sentido de uma pessoa, mas é àquele núcleo. Você ama aquela família que é a sua, aquelas pessoas ligadas a você por genética, ou na melhor das hipóteses por uma convivência que apague a falta da genética, blood is thicker than water, etc e tal. E no topo dessa pirâmide amorosa que enquanto sociedade nós construímos está o amor romântico, o mais exclusivo de todos.
É de certa forma como se nós tratássemos amor como um LP raro. Ele tem valor igual uma prensagem original do The Velvet Underground tem: porque nem todo mundo pode ter, porque ter essa coisa que é só sua te diz que você é um ser humano mais valioso. Porque é como essa ideia de ser criado à imagem e semelhança de Deus, mais amados por esse negócio antropomórfico sentado lá em cima que deveria te amar como um pai.
Eu nunca tive pai, só pra constar.
Eu não quero enveredar por Freud aqui, eu só quero pensar sobre essas ideias. O desejo, a existência de algo nesse mundo que não é dessa ordem, a correlação que milênios de humanidade criaram entre todas essas coisas e o amor, uma correlação que, se a gente para pra pensar, não é nada óbvia. É só um aglomerado de coisas que nós acreditamos que não podem se separar porque a ideia de separá-las parece implodir totalmente a ordem do mundo. Como para Bendrix a ideia de amar algo que ele não está vendo, tocando, lambendo. Não sei.
“I refused to believe that love could take any other form than mine: I measured love by the extent of my jealousy, and by that standard of course she could not love me at all.”
― Graham Greene, The End of the Affair
Várias dessas ideias, em outra forma, por outro caminho, estão no que vai ser meu segundo livro: Paisagens da Alma, que eu investigo essa ideia da relação entre Deus e as relações humanas na obra do Bergman. A pré-venda vai só até o dia 27/04 e depois disso ele vai virar raro, raríssimo então comprem aqui.
Eu escrevi sobre esse livro que eu li mais de dez anos atrás porque recentemente vi a adaptação com o Ralph Fiennes e a Julianne Moore. Tem coisas interessantes, mas no geral perde todas essas linhas e tenta contar só uma história de amor. Aos curiosos, tá pra alugar no Prime Video
Amei esse texto. Não sei se ouve podcasts, mas achei que o tema conversa muito com o episódio da semana passada de Meu inconsciente coletivo com o Pedro Ambra (episódio "quem precisa de família?"), em que ele aborda como esse amor burguês restritivo retira as possibilidades de diferentes organizações sociais (e diferentes possibilidades de amor), já que tudo tem que ficar concentrado nesse núcleo. Um tempo atrás eu estava encantada com a ideia de ter filhos, agora já tô numa certa aversão, pensando que não sei se quero ter que amar alguém incondicionalmente ou pior, esperar que essa pessoa me ame incondicionalmente porque eu a criei... Sei que as relações não se resumem a isso, mas tô numa fase meio niilista, achando mais é que a humanidade devia acabar (mas continuo separando o lixo reciclável. rs). Enfim, não comento muito aqui, mas tô inscrita no ciclo de leitura Masculinidades e ansiosa, adorei a proposta, principalmente por ser casada com um moço que fez da construção da masculinidade dele tema de seu primeiro livro :)
gostei !! mas impossivel fugir da psicanalise entre o desejo e o proibido ! faz muito sentido, quero ler <3 adoro historias que nao sao de amor haha