Fantasia Polonesa
Era uma crítica de A Verdadeira Dor, virou um ensaio sobre todas as vezes que eu chorei na Polônia
Em 2016 eu fui morar em Berlim. Foram alguns meses em que eu vivi em um alojamento para soldados traumatizados (eu juro) em um subúrbio meio chique da cidade e pegava todo dia uma CPTM berlinense para sentar em uma sala de aula no antigo bairro judaico, que não era mais o bairro judaico, e discutir como a gente faz para guardar e comunicar a memória do Holocausto de um jeito que fizesse sentido.
Alguns meses em que eu passei minhas tardes trabalhando no centro de visitantes embaixo daquele memorial que eu gosto muito, porque é ao mesmo tempo assombroso e abstrato, ou em uma biblioteca toda de vidro com vista para um trilho de trem. Foram meses tão intensos e estranhos que quando eu voltei a Berlim oito anos depois, e passei na frente da biblioteca da Humboldt, eu consegui sentir o frio preciso do ar condicionado em um verão que quase sempre chovia. E que quando fez sol eu estava em um tour de campo de concentração.
Porque eu era mais jovem, e porque eu justamente ainda não tinha morado em Berlim ou visto um campo de concentração, eu decidi antes de ir que no fim do meu período na Alemanha eu iria para a Polônia. Eu reservei hostels em Varsóvia e Cracóvia e comprei uma passagem de trem, em uma inocência que agora me parece risível.
E então, um dia, eu deixei minha mala gigante na casa de uma amiga e com a minha mochila recém comprada em um esforço conjunto (uma coisa sobre o alemão, ele vai parar tudo que está fazendo pra opinar na sua mochila) peguei um trem na estação central de Berlim em direção a Varsóvia. E vocês, que talvez sejam menos inocentes do que eu era, já estão sacudindo a cabeça para essa decisão.
Em 2014 eu passei quatro meses viajando alegremente por trens do Leste Europeu, então eu estava supostamente preparada para as cabines apertadas, o calor, o eventual bêbado meio ameaçador. O que eu não estava preparada era para a sensação de que eu não sabia mais respirar no minuto em que a porta do meu compartimento se fechou e eu finalmente entendi que eu, uma judia, estava fechada em um trem saindo de Berlim para Varsóvia. Foram talvez as piores cinco horas da minha vida, mas talvez também foi onde eu encontrei o que quer que eu achava que estava indo buscar na Polônia.
Quando eu desci do trem, eu dei de cara com talvez o prédio soviético mais feio que eu já vi. E eu vi muitos prédios soviéticos. E eles são todos muito feios. Registrada a existência do edifício da indústria e tecnologia (que na hora eu não me toquei que não era, de novo, a Varsóvia que eu estava indo buscar), eu peguei um tram e então descobri que meu hostel tinha esquecido de me avisar que aquele dia era um feriado nacional com parada militar e, portanto, eu teria que caminhar muito mais do que estava preparada. Com a minha mochila pesada. Do lado de soldados poloneses marchando.
Essa foi só a primeira vez na semana que eu sentei na calçada e chorei.
Jews have six senses. Touch, taste, sight, smell, hearing … memory. While Gentiles experience and process the world through the traditional senses, and use memory only as a second-order means of interpreting events, for Jews memory is no less primary than the prick of a pin, or its silver glimmer, or the taste of the blood it pulls from the finger. The Jew is pricked by a pin and remembers other pins. It is only by tracing the pinprick back to other pinpricks – when his mother tried to fix his sleeve while his arm was still in it, when his grandfather’s fingers fell asleep from stroking his great-grandfather’s damp forehead, when Abraham tested the knife point to be sure Isaac would feel no pain – that the Jew is able to know why it hurts.
When a Jew encounters a pin, he asks: What does it remember like?”
Jonathan Safran Foer, “Everything's Illuminated”
Na Polônia eu chorei todos os dias. Em lugares que eu deveria chorar - como o memorial ao levante do gueto, o museu de história judaica, a antiga casa do meu avô, o ônibus voltando de Auschwitz (eu não chorei em Auschwitz, tu n’a rien vu a Hiroshima) -e lugares que eu não deveria chorar - cafés elegantes, um concerto no parque e um banco da universidade de Varsóvia. Eu chorei comprando croissants e toda vez que alguém falava comigo em polonês como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. E porque, de novo, eu era mais jovem e eu ainda não tinha entendido o que eu estava fazendo lá, eu sequer sabia por que eu chorava tanto.
Eu tenho uma relação bastante frágil com a ideia de identidade nacional. Eu gosto de dizer que não importa e que eu não me ressinto do desencaixe que sinto em todos os lugares que poderia chamar de meus. Eu quero que isso me torne cosmopolita. A verdade é que eu me ressinto profundamente porque parte desse desencaixe é meu, parte é algo que eu nos meus melhores dias chamo de resistência familiar, nos piores quero chamar de birra.
A minha é uma família de europeus. O que é uma declaração absurda considerando que todo o tempo que eu conheci meu avô ele tinha uma loja de móveis no Leblon e que minha tia-avó de 95 anos fala com sotaque carioca. Que a outra parte da minha família me legou um castelhano de patricinha de Palermo do qual eu tenho até vergonha. Mas ainda assim.
Ainda assim, eu acho feijão um alimento ocasional, que eu comeria uma vez a cada três meses com facilidade, mas no inverno sopa deveria ser servida antes de todo jantar. Porque eu tomo café gelado no verão, mas chá preto quente é para todas as temperaturas. Porque uma das minhas lembranças sensoriais mais forte é picolé amarelo de limão e o vento quente do Mediterrâneo. Porque todas os pequenos hábitos alimentares que me formam, as coisas que eu sinto falta quando estou doente ou triste, a maneira como eu me ensinei a cozinhar para suprir essas duas necessidades estão firmemente ancoradas em um outro lugar. E esse lugar é a Europa. Mas é também uma Europa que não existe mais.
Porque a violência do Holocausto é tão brutal, porque parece que qualquer destino que não seja a câmara de gás e o forno foi uma vitória, a gente não tende a pensar nos refugiados e fugitivos como sobreviventes. Porque toda a memória popular do Holocausto foi construída com base nos relatos de campo, um cinema do melodrama e O Diário de Anne Frank nosso quadro mental se resume ao acontecimento em si e não ao que existia antes. Ou ao que ficou depois. E embora eu seja uma especialista exatamente nas formas como a gente conta essa história, eu mesma entendi isso um pouco por acaso.
Eu tenho há muitos anos um relacionamento com um homem de família italiana e porque eu moro em São Paulo eu nunca tinha pensado sobre isso. Até um dia em que, em uma mesa de almoço, o avô dele comenta dos primos na Itália, alguém fala sobre uma visita e eu entendo que esse senhor, que deixou a Europa um pouco depois da Segunda Guerra, viu seu país de novo. Que ele deixou lá uma família com quem ele tem laços. Que emigrar não era sinônimo de deixar para trás uma cidade que você nunca mais viu. Exceto que, claro, para a minha família tinha sido exatamente isso, mas eu nunca tinha visto essa situação como única ou, vejam só, consequência de um genocídio.
Meu avô deixou Varsóvia aos 19 anos. Ele era estudante de alemão e russo na universidade, tocava violino, fumava em cafés, era filiado ao partido comunista junto com acho que mais todo mundo na casa dele. Foi por isso que eles saíram em 1936 e ele acabou vendendo guarda-chuvas na Praça XV do Rio de Janeiro. Eventualmente ele se formou em alemão na UFRJ, traduziu russo pro partidão, fez piada com como fomos salvos por ser muito de esquerda e nunca mais voltou a Varsóvia. Ele nunca viu aquele prédio soviético horroroso que eu detestei tanto.
Tem um episódio de Transparent que eu gosto muito em que a série faz um flashback e nós vemos os Pfeffermans, nossa família protagonista, ainda na Alemanha da República de Weimar. Eles frequentam cabarés, discutem teorias da psicanálise em cafés e vivem integrados e felizes em uma Berlim que vai ser arrancada deles. Ao fim do episódio, um outro personagem diz que algumas famílias escaparam, nenhuma ilesa. Mas ninguém fala dos países e cidades e vidas arrancados como um luto que a gente deveria viver. Que lugar ele tem quando pessoas foram parar no forno?
A minha coisa preferida em A Verdadeira Dor é que o filme parte exatamente dessa sensação: de que a Polônia foi de alguma forma arrancada dos protagonistas, os dois da mesma geração que eu. Enquanto eles passeiam pelo mesmo parque onde eu sentei e chorei um deles comenta que eles deveriam estar vivendo ali, naquela cidade, que eles serem americanos parece quase um acidente de percurso. Eu imagino, talvez, que todo descendente de imigrante se sinta assim, mas eu entendo também que tem algo na fala deles da nossa percepção de que nada do que aconteceu foi voluntário. Nossos avós não quiseram deixar a Europa, eles não optaram realmente por se tornarem americanos, argentinos, brasileiros. E eu comecei a entender só agora que os meus podem até ter vindo, mas eles realmente se recusaram a ser qualquer coisa exceto o que eram: judeus do Leste Europeu.
Tem coisas que eu gosto e outras que gosto menos nesse filme, mas entre os acertos dele está essa relação ambivalente e esquisita que nós netos dos emigrantes estabelecemos com os países de onde nossos avós vieram, talvez especialmente a Polônia. Porque você vai para lá e tudo parece feito para você: há um museu gigantesco celebrando a história dos judeus, diversos tours, restaurantes que servem a comida da sua avó, bandas de klezmer nas esquinas. Exceto que não tem judeus. E que você cresceu em um outro continente porque as pessoas tão prontas para te receber estiveram igualmente prontas a denunciar seu avô. Que o maior lugar de memória do Holocausto está sob direção de um governo antissemita.
Sua vida inteira te foi dito que muito do que você é pertence àquele lugar. E aí você vai. Mas o lugar não te pertence. E aí, você pode ser eu e chorar compulsivamente em lugares aleatórios e escrever entradas ininteligíveis de diário. Ou ser o Jesse Eisenberg que faz um filme sobre essa sensação. Ou o personagem do Kieran Culkin, incapaz de separar a dor dele da dor histórica e incomodado, como ele deveria estar, com os outros personagens que parecem tão pacificados em relação a essa situação.
Entre as entradas absurdas de diário que eu tenho dos meus dias na Polônia há uma ideia de romance. É uma história sobre uma tradutora, o que me parece bastante curioso porque eu mesma ainda não era tradutora naquela época. Ela está em busca de alguma coisa, mas eu não lembro o que é, ou nunca soube o que era, ou só não consigo entender o que eu mesma escrevi. Eu me pergunto se o romance deveria andar em dois tempos e então decido que não. Eu sei porque não, porque eu estava no meio de um doutorado sobre o Philip Roth e ele acreditava em um interdito total de se imaginar o Holocausto quando você não esteve lá. É imoral, ele acha, é também desnecessário.
Eu concordo com ele nas duas instâncias. Embora eu tenha chorado até em banheiros de balada na Polônia, eu não chorei em Auschwitz. Ali, a única coisa que eu sentia era a impossibilidade do que eu estava vendo, a impossibilidade de tudo que eu passara os últimos meses estudando na verdade. Eu não podia comunicar aquilo, ninguém podia. A coisa que a gente sabe é refratada até a incompreensão. Mas ao mesmo tempo.
Ao mesmo tempo, eu me sentei em um banco da universidade e fiquei vendo os estudantes passarem. Eu me lembrei de uma passagem em O Complexo de Portnoy, quando o protagonista chega em Israel e pensa que todos aqueles rostos são rostos parecidos com o dele (não são e depois a fratura entre a ideia de Israel e o judeu que ele é vão faze-lo pirar, mas Portnoy não é o ponto aqui) e eu sabia que aqueles rostos eram parecidos com o meu. Eu me perguntei se eu teria estudado francês ali e sentado naquele banco e fumado naqueles cafés se não fosse tudo. Se não fosse a história. Imoral, portanto, mas também desnecessário. Desnecessário que eu imagine algo que ainda está me acontecendo.
Porque eu não estudei francês na Universidade de Varsóvia. E porque eu não sei cozinhar feijão, mas eu sei fazer blinis. Porque de vez em quando eu dou jantares no centro de São Paulo com porcelana austríaca que minha bisavó encaixotou numa Varsóvia sem arquitetura soviética e eu mesma rio da prioridade absurda da minha família. E eu me ressinto do ídiche na mesa de jantar, dos casacos de pele mandados para o frigorífico, da recusa inabalável de todos eles de viverem no país em que estavam. Eu entendo, mas eu me ressinto. Eu me ressinto, mas não sei ser nenhuma outra coisa.
Não tem links porque não tem mesmo e porque se eu pensar muito nesse texto eu não mando. Eu ia ilustrar com fotos que eu tirei na Polônia, mas aconteceu que eu perdi quase todas as fotos que tirei entre 2015 e 2017, essas entre elas. Quando eu chorei por esse HD queimado, eu pensei em fotos do Marrocos e do sudeste asiático, imagens bonitas de férias exóticas que eu tinha perdido. Nunca tinha me passado pela cabeça, até agora, que eu não tenho mais registros dessa viagem exceto por um diário absurdo. Foi uma percepção dolorida.
terminei o texto muito muito muito emocionada. um abraço enorme em você
Eu acabei de assistir Ainda Estou Aqui em uma sala de cinema cheia de suecos e entendi, finalmente, essa newsletter.