Gostem das Coisas, ou pequeno ensaio sobre Nick Hornby
Um outro dia (que já faz um tempo porque, sendo bem honesta, eu devia ter escrito essa newsletter duas semanas atrás), procurando algum filme que acertasse naquele ponto exato entre “leve porque é quarta feira e meu cérebro tá frito, mas não idiota demais que não seja satisfatório” nós acabamos assistindo uma adaptação de “Juliet Naked” um livro do Nick Hornby que eu ainda não li.
Logo que o filme começa, nós somos apresentados a um homem obcecado com alguma coisa, ao que eu disse “claro". Conforme a história avança parece que essa obsessão vai ser questionada, afinal, o objeto dela não é assim tão genial, assim tão merecedor. Mas então não. Porque é uma história do Nick Hornby o que a gente ganha é um discurso que defende que o amor desmesurado por um objeto cultural é algo válido em si e independe desse objeto. Não tem a ver com a qualidade dele, tem a ver com a minha experiência dele.
Meu namorado, um homem bastante obcecado com futebol, acha absolutamente misteriosa a minha obsessão com “Febre de Bola” uma vez que eu não poderia ligar a mínima para futebol, mas para mim essa história nunca foi sobre isso. Quer dizer, ela obviamente é, tanto que eu adquiri mais conhecimento sobre futebol inglês do que gostaria de ter lendo esse livro repetidas vezes. Mas é também sobre os objetos em torno dos quais nos organizamos nossas personalidades e isso não é menor, ou uma muleta, ou o que quer que seja, é a experiência real de ser um humano contemporâneo.
O próprio Nick Hornby reflete nisso em “Alta Fidelidade": a música pop não é só a trilha sonora dos nossos relacionamentos, ela oferece a própria linguagem através da qual nos relacionamos. E sim, a jornada do personagem é a de entender que gostos em comum não são suficiente para sustentar uma relação, porém, ter relações análogas com as coisas da qual se gosta de certa forma sim. No final, o que salva esses personagens em qualquer medida é recuperar o investimento nas coisas, é lembrar do prazer de ser obcecado pelo que quer que seja.
Eu amo que a gente possua um escritor desse tipo específico de sentimento. O William Finnegan, em “Dias Bárbaros” (outro livro que eu amei profundamente) faz algo parecido com o Hornby em “Febre de Bola”: ele tenta entender a própria personalidade através de uma obsessão. Mas ele se analisa como um objeto único, como algo fora da curva, como alguém como uma peculiaridade. O Hornby se vê como só mais um em um mundo de obcecados com o que quer que seja, futebol, música, cinema, livros.
A experiência de ser um ser humano contemporâneo é precisamente a da vida mediada pelas narrativas e objetos culturais. Nós estamos cercados por eles, nós damos forma ao que dizemos e sentimos através deles. E ele acha que tudo bem. E sinceramente? Eu também acho que tudo bem. Eu tenho todo um repertório de críticas constantes à internet (obrigada Jia Tolentino), mas uma das mais antigas é à cultura do blasé, do desinvestimento e do gosto irônico.
Na internet ninguém nunca gosta de nada. É chato gostar das coisas, cool é detestar tudo. A pessoa que detesta tudo em geral o faz porque considera o gosto dos outros básico e ela que não gosta daquilo é muito superior. Exceto que a gente nunca sabe do que ela gosta. É engraçado quando eu falo disso porque eu sou uma pessoa de gostos bastante esnobes, tem muita coisa que eu não gosto, tem muita coisa que eu simplesmente crio birra por motivos explicáveis e inexplicáveis. Odiar as coisas (e especialmente criticar as coisas) não é o ponto, o ponto é um hábito de odiar sem o contraponto: eu falo o tempo todo do que eu não gosto e ninguém nem faz a menor ideia do que eu gosto. E assim se cria essa cultura de valorização de um desinvestimento que eu acho uma das coisas mais irritantes da internet.
O gosto irônico vem junto. Gostar ironicamente de algo não é a mesma coisa que questionar conceitos de bom ou ruim, ou de alta e baixa cultura, o que é não só válido como necessário. Gostar de algo ironicamente é achar aquilo “ruim” (em qualquer acepção que a palavra tenha para você) e valorizar porque de alguma maneira isso seria superior ao investimento emocional real de achar as coisas “boas".
Sempre que esse papo de odiar ou não as coisas volta à internet alguém aparece para dizer “ah, mas eu não quero deixar as pessoas gostarem das coisas, eu acho importante problematizar” e eu vou aqui defender que odiar e criticar são coisas muito diferentes. Eu gosto muito de algo que o Joe Caramonica, crítico de música do New York Times, sempre diz no podcast dele: a crítica é um ato de amor, ou no mínimo de respeito. Se eu paro, ouço algo, penso sobre aquilo e então emito uma opinião negativa, é porque eu acho que aquele objeto é de início digno da minha atenção e da minha reflexão. E se eu aponto defeitos é porque de alguma maneira eu acredito que ele poderia ser melhor, que existe um potencial não realizado. Problematizar, criticar, apontar defeitos em objetos culturais populares é então - ou pelo menos deveria ser - o exato oposto do ódio desinvestido da internet. Odiar não exige nada, não muda nada, não cria discurso, para que todas essas coisas aconteçam é preciso investimento.
E aí a gente volta pro Hornby e esse meu amor por um homem tão comprometido em contar histórias a respeito do amor por coisas que ele sabe defeituosas. Por um time que só perde. Pela música pop que nos vende uma versão açucarada de amor. Pelo compositor que no fundo é só um homem medíocre. Não importa. Gostar das coisas assim é um ato de investimento que só faz sentido se esses objetos são imperfeitos. Se você espera um objeto perfeito tudo que você consegue ser é o tuiteiro chato que odeia todas as coisas, mas parece nunca ter gostado de nada em toda a vida dele
Uma pausa para os nossos comerciais
O último episódio do Afinidades Eletivas é uma conversa comigo sobre Philip Roth e Literatura Judaica e foi uma delícia participar
Em agosto
Eu li:
Milkman, da Anna Burns, a história de uma garota de 18 anos no auge dos Troubles na Irlanda. Eu circulei esse livro um tempão sem saber se estava interessada até uma amiga me dizer que a forma da escrita a fazia lembrar de mim. Li, entendi o que ela quis dizer e gostei bastante do livro e particularmente da forma.
Esforços Olímpicos, da Anelise Chen: aparentemente esse mês foi só os livros pra eu pensar na minha própria escrita. É a história de uma doutoranda falhando em terminar a própria tese e eu amei como ela entremeia ficção e ensaio.
Everybody Talks About the Weather… We Don't, da Ulrike Meinhoff: Sim, a do Grupo Baader-Meinhoff. Antes de ser terrorista ela também foi colunista de uma importante revista de esquerda na Alemanha ocidental e esse livro é uma coletânea dessas colunas. Eu acho que muitas delas eram pontuais demais para terem mantido o interesse, mas ainda assim foi curioso encontrar com a escrita dela e acompanhar um processo gradual de radicalização.
Eu vi:
Moonrise Kingdom, do Wes Anderson, meu filme de guerra em miniatura preferido (no Prime Video); Sabor da Vida, da Naomi Kawase, delicado e bonito sobre as passagens da vida e as pequenezas que dão sentido a ela (também no Prime Video); In a Relationship, do Sam Boyd, um filme com toda carinha de indie americano, mas que é uma narrativa bem honesta do se relacionar enquanto adulto nos dias de hoje (na HBOMax); Desejo e Reparação, do Joe Wright, que dispensa apresentações, mas confesso que revendo eu gostei menos do que costumava gostar. Achei que a primeira parte é interessante demais pro tempo que ele passa na segunda e alguns temas centrais dessa história ficam muito de lado. Ainda assim, a Keira Knightley naquele vestido verde (no Prime Video).
Juliet, Naked que é o objeto dessa newsletter e eu gostei bastante (na HBOMax); O Abutre, um noir extremamente bem construído e que me perturbou um tanto (na HBOMax); Esquadrão Suicida, divertidíssimo, Margot Robbie perfeita é isso que eu quero dos meus filmes de hominho (na HBOMax); E Candyman, da Nia da Costa que tem um roteiro esburacado (sendo generosa), mas não importa porque o clima de filme de terror clássico é perfeito.
De TV eu vi Love Life, e achei que tem coisas boas, mas no geral é superficial e presa demais a ideias de que “casamento é bom, não casar é ruim". E Mare of Easttown, perfeita, Kate Winslet rainha do meu coração. As duas na HBOMax.
O que eu ouvi: Solar Power, da Lorde. Demorou um pouco pra me conquistar, mas agora sou uma convertida.