Isso não é feminismo, querida
Será que um dia voltarei a falar bem de coisas nessa resenha mensal? Será que um dia alguma coisa que se diz feminista vai entender que ser feminista não é só apontar o dedo e dizer “ó, o machismo existe"? Não sei, mas vamos falar de Não Se Preocupe, Querida.
Assim, eu sei, nenhum filme da história poderia superar o DRAMA, a TENSÃO, os PLOT TWISTS do ciclo de fofocas desse, as notícias sobre o barraco da equipe em Veneza foram meu alimento dia e noite. Mas justamente por isso esse foi um filme que já chegou para muita gente com a informação de que era ruim e, embora eu ache que ele de fato não funciona, eu quero olhar pros por ques.
Porque ele não é um filme sem qualidades: eu acho que visualmente tem muita coisa interessante e a direção não é ruim, o controle da câmera e dos ângulos me provam que a Olivia Wilde tem muito futuro como diretora. Pena que o roteiro era um rascunho.
Eu sou contra a ideia de que um roteiro faz um filme. Acho que existem bons filmes com roteiros terríveis e bons roteiros destruídos por uma direção que não faz jus a ele. Um filme é uma forma híbrida, de muitas partes, e se mesmo um romance pode funcionar no nível da prosa e não da trama, imagina um filme. Por outro lado, é preciso uma história que faça sentido, é preciso contar uma história em que os fios mais ou menos se amarrem. Aqui também não é ficar procurando “furo de roteiro” do jeito que certas pessoas na internet gostam de fazer, mas entender que a história sendo contada estabeleceu um universo que funciona. E é nessas exigências básicas que Não Se Preocupe, Querida falha.
ATENÇÃO QUE DAQUI PRA FRENTE EU DOU SPOILER.
Eu acho spoiler uma doença da nossa apreciação cultural contemporânea e que mata toda possibilidade de análise crítica, então daqui pra frente eu conto o que acontece, mas eu estou me sentindo generosa hoje e avisei (nem sempre eu faço isso).
No final de Não Se Preocupe, Querida a gente descobre que todo esse universo bonitinho onde vivem Florence Pugh e Harry Styles é na verdade uma simulação de computador que eles veem estilo Laranja Mecânica. Até aí tudo bem e isso não seria uma parte tão importante da coisa toda se não parecesse que o problema com essa escolha reflete todos os problemas com esse roteiro.
Porque se você olhar só mais ou menos de perto, muita coisa nessa simulação não faz sentido em termos de construção do universo. Se é só um programa de computador, por que morrer nele te mata fora? Por que criar uma estrutura tão suspeita quanto uma cidade cercada por um deserto onde ninguém pode ir? E por que a gente vê o Harry Styles vestido de incel se pouco antes nós o vimos morando junto com a Florence Pugh antes da lavagem cerebral? E se eles podem fabricar crianças, por que eles não podem fabricar mulheres?
O que tudo isso me faz intuir é que em um tratamento anterior do roteiro a cidade era uma cidade mesmo, um mundo fabricado enfiado no meio do deserto porque precisava estar fisicamente isolada do exterior. Isso mudou em uma versão posterior, mas os detalhes que precisariam ser afinados para acomodar essa mudança não foram feitos. Minha impressão é que o roteiro inteiro é assim. Os detalhes que se organizariam com mais duas ou três versões não foram examinados e aí uma série de ideias com mais ou menos potencial ficam flutuando em um mar de coisa sem sentido.
Porque veja, o cenário não tem nada de novo, nem de especialmente feminista. É Stepford Wives, é dizer pra gente que se tivessem a chance homens transformariam as mulheres em escravas e viveriam um idílio dos anos 50 americanos. Todo mundo sabe disso. Mas no meio de tudo isso a relances de algo mais original: uma investigação do homem contemporâneo frente às ambições das mulheres atuais, a ideia do prazer feminino como desorganizador. Porque a própria Olivia Wilde saiu falando que era um filme sobre isso, mas onde? Tem uma cena de sexo oral e uma construção sutil que aponta a paixão física entre a Alice e o Jack como uma das coisas que a separa dessa comunidade, mas a gente não vê o desenvolvimento disso. E se é só uma cena de sexo oral na mesa de jantar, então é só um prazer dado, passivo.
Porque esse tem sido meu incômodo crescente com obras supostamente feministas que eu encontro (e eu sei que Caderno Proibido foi escrito décadas atrás, não é uma análise de tendência, é só uma reflexão). Diagnosticar problema não torna sua obra política e o feminismo é um movimento político. Claro que existe mérito em analisar os mecanismos de submissão das mulheres e acho que há algo de interessante nessas obras no olhar que lançam para a família como ferramenta dessa submissão (eu sei que vocês não gostam de ouvir isso, mas não existe liberação feminina sem destruição da estrutura familiar, mais em outra newsletter), mas se você cria um estado de coisas em que as mulheres são submissas e não há nelas possibilidade de suplantar essa situação, então o que você está dizendo é que essa situação é imutável e natural. Portanto, sua obra é apolítica.
Embora eu tenha citado um livro bem mais antigo, eu acho que a circulação dessas obras e o interesse nelas responde diretamente a forma como a gente se relaciona com política na internet. Porque faz tempo que eu não citava a Jia Tollentino vamos lembrar que em O Eu na Internet ela analisa com muita precisão que no online a gente tende a confundir discurso com ação, dizer “estou consciente desse problema” com fazer algo em relação a ele. Tuitar não é agir, tuitar é só tuitar. Dizer o machismo existe não é se colocar contra ele e muito menos é construir uma obra feminista. O Philip Roth aponta para isso também, em um ensaio a respeito da literatura judaica: seu livro ter judeus mortos não faz nada pelo antissemitismo.
Eu acredito muito fortemente na arte como meio de agência no mundo e meio de ação política, mesmo. Mas para isso a gente precisa devolver a agência de nossas personagens.