Nesse fim de semana, como boa parte da comunidade hipster paulistana, eu comecei nossa migração anual para lugares de difíceis acesso e com fila pro banheiro químico também conhecidos como festivais de música. Eu não ia a um show desde 2019, provavelmente desde aquele dia chuvoso de novembro em que a Patti Smith subiu em um palco toda tranças e voz de trovão e eu fiquei completamente transtornada e inspirada e soube, de repente, ali, no meio daquela multidão, de todas as coisas que eu precisava fazer.
Quando eu era adolescente, não tinha nada que eu amasse mais do que música. Eu gostava de livros, mas música era a coisa que fazia sentido, a coisa que mais diretamente me dizia que eu não estava sozinha, que tudo aquilo que eu sentia e pensava tinha sido sentido e pensado antes e se eu pudesse ouvir várias vezes alguém falando sobre aquilo então era ao mesmo tempo como cutucar uma ferida e permitir que ela fechasse. Como purgar algo infeccionado, talvez.
Venus, planet of love Was destroyed by global warming Did its people want too much, too? Did its people want too much?
E eu tinha esquecido disso, um pouco. Claro, eu fiz uma playlist extremamente específica no dia em que um ex ressurgiu das trevas diretamente para o meu whatsapp, mas eu não estava buscando que ninguém me libertasse de nada. Eu esperava cutucar as feridas, mas não curá-las.
E então era novembro de 2022, um dia ridiculamente frio para um festival chamado Primavera e eu estava vendo uma mulher em uma roupa azul conceitual dançar do jeito mais esquisito do mundo e eu entendi. Tudo. Todas as coisas.
Eu brinquei com uma amiga que o line-up desse festival era um grande apanhado de mulheres descompensadas com uns gatinhos indies no meio, o que no fundo era mais verdade do que eu tinha considerado até então, mas mais do que isso era um apanhado de mulheres cujo tema é exatamente esse: ser um pouco doida, um pouco descompensada, querer e sentir as coisas fora do que foi dito que deviam.
Though I'm a geyser Feel it bubbling from below Hear it call, hear it call Hear it call to me Constantly
Eu senti algum tipo de iluminação pela primeira vez quando ouvi a Mitski cantar Geyser e pensei na precisão absurda dessa imagem e na mulher que decide se comparar a um jato de água fervente que explode em fúria. Porque sim, é claro que ela é exatamente isso, essa pessoa dançando de um jeito feio, cantando com expressões deformadas de tão intensas, essa mulher que canta sem medo sobre uma ambição desenfreada e sobre ter se diminuído e aumentado e diminuído e aumentado e ainda, ninguém me quer.
Existe uma maneira de olhar para isso que a condiciona ao desejo dos homens e à validação conquistada a partir desse desejo. Mas existe outra que considera o desejo dela, pelo outro, pelo olhar do outro, pelo que quer que seja, como a verdadeira temática, como a coisa aqui.
I need something bigger than the sky Hold it in my arms and know it's mine Just how many stars will I need to hang around me To finally call it Heaven?
No dia seguinte a Lorde parou o show dela duas vezes, na primeira para falar de como ela escreve sobre crushes e sobre verão porque ela gosta desse sentimento intenso e de uma estação propícia a sentimentos intensos. A Lorde é alguém que escreve também bastante sobre drogas e eu acho curioso como as duas coisas se parecem e da honestidade dela em se colocar como alguém que gosta disso, da onda, da eletricidade. Mas então, um pouco depois, em um momento em que ela basicamente chamou todos os fãs de doidos, ela falou sobre escrever para as pessoas que reagem exageradamente, sentem exageradamente, querem exageradamente, analisam pontuação de mensagens de texto e são só Demais.
Se tem um medo que eu conheço (e imagino que boa parte das mulheres conhece também) é o de ser demais. Começa com a organização sexual dos afetos e aquela história bem cultura hétero que usa camiseta de Game Over: todas as mulheres estão sempre tentando atrair homens para relacionamentos; todos os homens estão sempre tentando evitar relacionamentos; portanto todas as mulheres que na verdade não estão tentando arrastar homem nenhum para relacionamento nenhum estão constantemente tentando controlar e diminuir o quanto querem e o quanto sentem porque vai que ele se assusta. Daí, você cresce e chega na segunda fase que é ser uma mulher feminista independente que sabe que não deveria querer nada relacionado ao amoroso ou sexual tanto assim e então você segue controlando e diminuindo o que sente porque demonstrar que você quer qualquer coisa dessa esfera tanto assim é uma fraqueza e você não quer ser fraca.
I know that it's exciting running through the night, but Every perfect summer's eating me alive until you're gone
E daí a Lorde, do alto dos seus 26 anos, sobe num palco e só fala sobre querer Sentir as Coisas. Só querer viver os negócios. Sei lá. E eu tenho pensado muito nisso porque como vocês já cansaram de ler aqui eu venho pensando muito na monogamia enquanto sistema e nas formas como a gente se relaciona e a verdade é que a monogamia como sistema afirma que todo sentimento tem um fim, uma direção e um objetivo: não existe desejo sexual ou mesmo amoroso por ele mesmo, só existe essas coisas com o objetivo de se construir um relacionamento estável que eventualmente gere uma família, mas e se a gente tirar isso da equação? O que se torna tudo isso então?
Eu ainda não tinha conseguido dar nome para isso, mas enquanto eu penso intelectualmente sobre todas essas coisas e tento construir dentro da minha cabeça teorias e análises de uma política dos afetos não determinada pelo trajeto casamento-família, eu vinha esperando ser punida. Eu vinha esperando que algo, na prática ou apenas na construção lógica do meu raciocínio, fosse me dizer que isso não era possível, que não se pode querer tanto, que não se pode ter tudo. Você não pode ter a novidade da paixão e a construção de intimidade e partilha da vida tudo ao mesmo tempo. Você não pode querer sentir todas as coisas sem ser punida.
I am your sweetheart psychopathic crush Drink up your movements, still I can't get enough I overthink your punctuation use Not my fault, just a thing that my mind do
E veja, talvez seja verdade que a gente não possa, a sociedade tá aí e ela é o que ela é e quem sabe até onde se pode chegar? Eu sei que mesmo que na internet a hierarquia dos afetos pareça ser tudo que a gente fala, na vida real a galera tá aí casando, tendo filhos e determinando que o núcleo familiar é a única relação válida e amizades são algo que você perde na infância. A galera tá aí dizendo que se você escolheu passar a vida com uma pessoa você também escolheu nunca mais sentir aquela onda de descobrir alguém novo e que só há espaço para um tipo de afeto e todo amor é igual. Eu sei que esse é o mundo e em toda probabilidade sim, ele vai acabar punindo as mulheres por quererem escapar. Mas o que ali, vendo umas mulheres muito doidas cantarem sobre serem muito doidas eu entendi é que eu não preciso ser a pessoa a fazer isso.
O mundo é o mundo e ele torce a cara para toda mulher que quer demais o tempo todo (e isso profissionalmente também, mas isso é ângulo pra outra newsletter), mas não há nada de inerentemente errado com isso. Com querer demais. Com achar que só sentir e viver as coisas é suficiente.
(esse texto é uma versão inicial de algo que eu quero transformar em um ensaio longo, com referências literárias e tudo mais, acontece que as vezes eu sou o tipo de escritora que só precisa tirar as coisas de mim)
Caí por acidente aqui e fui feliz te lendo! Saudades do teu crânio devorador de letras (e de um ou outro rond de jambe). Beijos com carinho,
Lana
Que texto impecável e lindo. Saio da leitura com vontade de sentir as coisas e viver os negócios também. <3