Dois anos atrás, quando a Taylor lançou o Midnights (eu prometo que esse não é um texto sobre a Taylor Swift disfarçado de texto sobre Vidas Passadas) eu me lembro de estar em uma conversa em que disse que não tinha gostado tanto do disco no geral, mas que me interessava muito a sensação de que quase todas as músicas falavam daquela sensação de estar acordada no meio da noite repensando seus relacionamentos do passado.
Vocês conhecem a coisa: as vezes é quando você deita e está pensando coisas antes de dormir, as vezes é quando está ouvindo música no ônibus (insira meme do Compadre Washington com a cabecinha na janela), mas de vez em quando você revisita alguma relação do passado e analisa o que aconteceu. Não é que você queira voltar, ou se arrependa necessariamente de como as coisas se desenrolaram, mas você pensa, revira um pouco, tenta entender, segue hipoteticamente o caminho que sua vida poderia ter levado se aquilo tivesse acontecido diferente. Eu detesto dizer que relacionamentos deram certo ou não porque sinto que a métrica é se eles duraram para sempre, o que é idiota, ou se eles foram validados pelos rótulos da monogamia centrada na família nuclear, o que é ainda mais idiota e também porque sinto que a sensação do “não deu certo” é a fonte de uma angústia que não precisava existir e esse texto fala um pouco disso.
Eu tenho relacionamentos que eu diria que “não deram certo". Um deles foi um namoro monogâmico de quatro anos, dois desses com a gente morando juntos. E não é que não deu certo porque acabou, acabar foi a melhor coisa possível para essa história. Não deu certo porque em quase todos os dias desses quatro anos, eu estive infeliz. Por outro lado, eu tive relacionamentos sem rótulos e que acabaram antes do que eu gostaria, mas que em certo momento da existência dele me deram satisfação, eu tinha o que eu queria. As vezes eu tenho pesadelos com a ideia de que se meu relacionamento de quase dez anos terminar as pessoas vão falar que não deu certo simplesmente porque a gente acabou. No geral, eu perco mais espaço mental do que deveria pensando em métricas subjetivas que não me interessam, mas se eu não fizesse isso eu provavelmente não era escritora, então enfim.
Midnights, um disco sobre aqueles momentos em que você volta e repensa um relacionamento passado não porque queira voltar, não porque lamente o fim, mas porque nós seres humanos somos animaizinhos neuróticos e gostamos de entender as coisas e também porque o restrospecto, o tempo e, especialmente, o exorcismo que é se desapaixonar permitem que olhar para o passado se torne um exercício de compreensão e redescoberta de você mesma. Quando você rola na cama e pensa em algo de cinco anos atrás, você vê coisas que não poderia ver antes. E quando você pensa em onde estaria se essa coisa tivesse acontecido diferente você também está jogando luz sobre onde está agora, as escolhas que te trouxeram até aqui e sua satisfação ou não com elas.
(Aliás, um ex meu que minhas amigas acham que foi um grande livramento, e quem sou eu pra discordar, vai ter um filho e eu descobri outro dia. Eu não pensei nisso quando fiz o rascunho desse texto, mas fica a informação aí pra vocês)
Vidas Passadas, pela perspectiva da Nora — que é a que me interessa — é um filme que existe exatamente nesse espaço. Na possibilidade que você mergulha um pouco pelo exercício teórico, um pouco para se conhecer, mas que nunca assume o peso real do desejo.
Quando eu saí do cinema e como a pessoa cronicamente online que sou avaliei o filme no Letterboxd, eu disse que era Amor à Flor da Pele para millenials, uma definição que parece que eu estou só dizendo que é o mesmo filme com celulares e roupinhas mais modernas, mas não é isso. Acho que a representação de um relacionamento que existe no potencial nunca desenrolado é diferente porque os autores que olham para esses relacionamentos trazem consigo um vocabulário a respeito de relacionamentos diferente (para além de estilos, etc) e isso tem a ver um pouco com como a gente vive agora.
Amor à Flor da Pele é um dos meus filmes favoritos, daqueles que você nem pensa antes de citar num top 5. Inclusive, ele é um dos meus quatro favoritos no Letterboxd. Eu já vi esse filme incontáveis vezes, eu revi quando entrou no Mubi, eu largaria tudo agora para assistir no cinema de novo. Ele me pega em um lugar preciso onde quase tudo que eu mesma escrevo também mora: o desejo.
Muitos (mas muitos!) anos atrás, eu entreguei um trabalho de Música Para Cinema que era uma análise da trilha de Amor à Flor da Pele em que eu argumentava que o filme, apesar do nome, em português e inglês, não era uma história de amor, mas de desejo e a trilha sonora feita de tangos e releituras de tangos reforçava isso, uma vez que o tango não é um gênero que fale do amor realizado, mas sim do desejo que leva à tragédia. Quando você dança tango raramente os pares se harmonizam em algo que pareça sustentável ou carinhoso. Existe uma violência ali que é oposta às nossas ideias do amor que constitui relacionamento, mas que se alinham à paixão trágica, que queima rápido e consome tudo.
(Eu tirei dez nesse trabalho, aliás)
Eu ainda tenho essa leitura de Amor à Flor da Pele e talvez seja por isso que ele é um filme que eu gosto tanto, porque eu acho desejo uma temática narrativa muito mais interessante do que o amor. Talvez seja porque eu sou uma pessoa consumida por ele (desejo de uma forma ampla, o desejo pelo mundo, a ambição que é também um desejo) e uma pessoa que gosta de ser consumida por ele (a não-monogamia não entrou intelectualmente na minha vida, entrou só por uma falta de vontade de não seguir cada desejo que eu tenha), mas também porque o desejo é falta e a falta é um motor narrativo muito mais poderoso do que a presença.
Por exemplo, acordadas na cama à noite a gente pensa muito mais naqueles relacionamentos que causam uma sensação de falta, em que algo parece não ter ido até o fim, do que naqueles que encontraram um fim mais completo.
Amor à Flor da Pele é um filme com as faltas explícitas: falta aos protagonistas liberdade, privacidade, a presença dos parceiros, o contato físico. Na Hong Kong dos anos 1960, falta a essas pessoas muita coisa e a precariedade e sufocamento geral da vida são temas que o Wong Kar-Wai explora usando o romance central como lente. Por outro lado, não parece faltar à Nora, a protagonista de Vidas Passadas, quase nada: ela é uma dramaturga de relativo sucesso, tem um casamento feliz, vive em Nova York e não é nenhum tipo de pessoa visivelmente atormentada. Tampouco a estética do filme nos diz isso. Amor à Flor da Pele é todo desconforto, aperto e trilha dramática, Vidas Passadas é figurino confortável, planos abertos, trilha minimalista. Tal qual Nora, o espectador está confortável ali, é um mundo de estética perfeitamente agradável (e millenial) no qual poderíamos viver para sempre.
O que falta é justamente o que os planos abertos de Nova York e as roupas muito modernas escondem: a pessoa que Nora poderia ter sido se tivesse ficado na Coreia. Eu sei que o título do filme vem de um conceito coreano, mas eu acho que ele se aplica de uma maneira muito poética a essas hipóteses, a essas faltas que ao longo do tempo se entremeiam nas nossas vidas: as pessoas que poderíamos ter sido e não somos. As vidas que passaram por nós e não são as nossas.
Hae Sung é o personagem do desejo nesse filme de forma mais clara do que Nora. Nisso o filme ecoa e Amor à Flor da Pele, no qual o personagem do Tony Leung (o homem mais bonito do mundo, btw) é também aquele que olha, aquele que elabora para si mesmo com mais clareza a vida que seria sua se essa mulher também fosse. Por outro lado, o filme dá muito pouca vida interior a Hae Sung, reforçando que ele olha para o mundo pelos olhos de Nora, que ele pensa com os pensamentos dela e ela, no fundo, sabe pouco dele. Sabe apenas que de madrugada ele é a vida que ela não teve.
Eu acho curioso que dois dos filmes dessa leva de Oscar explorem a ideia de que somos pessoas diferentes em línguas diferentes. Um dos momentos que mais me marcou em Anatomia de Uma Queda (aliás, meu preferido dessa temporada) é quando a personagem da Sandra Huller só desiste de tentar se explicar em francês no tribunal e passa para o inglês. Ela é outra pessoa, tudo nela é diferente: sua postura, suas expressões, nossa percepção de sua culpa ou não na morte do marido. Para ser um pouco Wittgenstein: as línguas são o campo material do nosso pensamento, a linguagem em muitos sentidos a matéria bruta de nossa vida interior. Línguas diferentes são espaços cognitivos diferentes. A Nora que fala coreano não é a Nora que fala inglês e portanto a mulher que Hae Sung deseja só existe em poucos momentos, naqueles minutos fugidios em que ela fala com ele.
Me parece por isso também que a tensão entre Nora e seu marido, Arthur, ou entre Arthur e Hae Sung se resolve com tão pouca tensão. Claro, é porque somos todos millenials e entendemos as liberdades dos outros dentro de relacionamentos e ciúmes é uma narrativa ultrapassada, exceto para o jovem tuiteiro. Mas é também porque a Nora que cada um deles deseja é uma Nora diferente. Não é a mesma mulher que eles disputam, são possibilidades distintas de um ser. Arthur sabe disso, ele sabe dessa outra Nora que ele não tem acesso, a Nora que sonha em coreano. Seu medo, portanto, não é de que sua mulher opte por fugir com Hae Sung, mas que ela opte por fugir com essa outra possibilidade de quem ela é.
Assim, Vidas Passadas é, muito mais que Amor à Flor da Pele, um filme sobre amor, mais do que desejo. Porque ele não é um filme que existe na falta, ele existe na presença da escolha de Nora, na consciência de todo mundo ali de que no fim das contas as vidas passadas passaram e você só pode ser quem é.
Linda leitura!
Estou revirando em minha cabeça essa comparação entre Past Lives e In The Mood for Love desde que assisti o primeiro, e seu texto me resolveu o que eu não tinha conseguido resolver sozinha: falta desejo em Past Lives, por isso não encontrei nele essa coisa que tanta gente encontrou. Digo, ele existe muito bem em outro lugar, mas que não me interessou tanto assim.
Adorei ler, obrigada.