Nada daquele tempo existe mais
Um ensaio sobre o Wong Kar Wai
Em 2013, eu tinha um tumblr porque é claro que eu tinha um tumblr. Em novembro daquele ano, entre um still de As Virgens Suicidas e uma imagem aleatória de uma garota com os pés para fora da janela do carro e cabelo esvoaçante, eu postei uma imagem de 2046. É um plano da sacada do hotel, com o Tony Leung debruçado na varanda fumando. A legenda diz: love is a matter of timing.
Eu sei exatamente por que postei essa imagem: porque eu tinha acabado de ser deixada por alguém com quem eu acreditava que poderia ter tido algo muito mais longo e concreto, mas o timing da vida disse que ele podia ir embora naquele momento e ele foi. A dor desse término me veio em ondas e a sensação de que, ao longo de um ano inteiro, eu não tinha conseguido fazer essa pessoa se apaixonar por mim me arrebentou como quase nada nessa vida, mas ela veio depois. Primeiro, veio o amargor específico de pensar que a gente tinha se encontrado, mas no momento errado esse passo significa pouca coisa.
(Depois, como quem visita 2046, eu ia mudar de ideia sobre ele não ter se apaixonado por mim)
Eu tive muitos relacionamentos na vida, mas só uma vez eu deixei alguém que eu não amava mais. Eu sinto que nunca fui deixada por alguém que não estivesse apaixonado por mim. Às vezes, eles estavam apaixonados por mim, mas não me amavam; outras, eu tinha tornado me amar difícil demais; e em algumas o timing dizia que havia uma aventura a espera e eu, de todas as pessoas, jamais fui capaz de pedir que alguém escolhesse entre o mundo e eu. O ponto é que se amar é só o começo de todas as coisas que um encontro requer.
E talvez seja por isso que em algum momento eu convenci todos os meus amantes - no sentido mais amplo do termo - a verem os filmes do Wong Kar Wai.
Eu ouvi falar de Amor à Flor da Pele antes de ver. Era meu primeiro semestre da faculdade de cinema e o tempo todo esse filme aparecia como exemplo de alguma coisa. De erotismo velado, da sensualidade inerente ao cinema, da câmera como olhar, do leitmotiv, do uso de figurino, de cores, de direção de arte, de montagem. É um filme perfeito, de um tipo de perfeição que se presta muito bem a ser exemplar e então, semana após semana, meus professores falavam de um filme que eu não tinha visto.
Eu comentei isso com o garoto um ano mais velho com quem eu saía na época. Então, ele pegou o DVD na biblioteca da faculdade e nós assistimos com uma garrafa de vinho que na época custava menos de 20 reais. No final desse semestre, ele foi embora ser voluntário na Índia.
A parte de mim que gosta de narrativizar tudo (we tell ourselves stories in order to live) gostaria de dizer que eu lancei uma maldição em mim mesma com esse filme, mas a verdade é que eu já tinha sido trocada por Israel um ano antes. E ainda seria por Londres. E uma volta ao mundo. Vai ver a maldição sou eu mesma.
E, ainda assim, eu mostrei esse filme para todo mundo com quem eu me relacionei depois. É um dos meus filmes preferidos, porém não é o primeiro que eu responderia quando a galera do Letterboxd aparecesse pra me entrevistar (toda Mostra eu tenho essa esperança, vai acontecer). Não é o filme do diretor sobre o qual eu fiz um mestrado. Não é uma daquelas obras que você oferece como uma peça de si mesmo, um mapa para algo que a pessoa precisa saber e você não consegue articular. Eu não sei por que eu faço isso, só que, mais cedo ou mais tarde, fumando na cama, eu convenço alguém a ver Amor à Flor da Pele.
Tem muito tango no Wong Kar Wai. Felizes Juntos se passa em Buenos Aires e, numa cena lindíssima, um casal de homens aprende a dançar no meio de uma cozinha decrépita. O leitmotif de Amor à Flor da Pele é um tango. A trilha de 2046 é quase toda tangos.
Quando eu ainda tocava piano, eu achava tangos algo muito difícil. A cadência da mão direita, a quantidade de semicolcheias e fermatas, me parecia contraintuitivo, sempre atravessando o que meus dedos queriam fazer. A mão esquerda é mais estável, movida em bloco, mas a dissonância entre as duas só piorava minha desorientação. Um dia, para um recital qualquer de fim de ano, eu tentava aprender Por Una Cabeza com um amigo que tocava violino. Uma hora, irritado com a quantidade de vezes que a gente já tinha parado, ele gritou comigo: Isadora, pelo amor de deus, você toca melhor que isso. Era verdade, eu tocava, mas meus dedos seguiam tropeçando uns nos outros como quando eu era criança.
Bem mais tarde, eu notei que a discordância das claves reflete o desencontro dos dançarinos: no tango enquanto dança, um par está sempre fixo, enquanto o outro serpenteia em torno. Para além das acrobacias, a dificuldade real do tango está de novo nesse paradoxo, em você ter que criar harmonia de duas coisas que se movem em contradição, de um jogo de passos em que sempre que um avança, o outro afasta, em que torsos não podem se afastar, mas pernas nunca se encontram.
Uma dança de sedução, de um homem que segura pela pontinha da mão uma mulher que se perde confundindo as próprias pernas.
O cinema do Wong Kar Wai é também um cinema de sedução, dos abismos de impossibilidade a que o desejo sempre leva, enquanto for desejo.
Amor à Flor da Pele é como aqueles tangos para os quais os turistas pagam entradas: coreografados como ballets, com mulheres cujas pernas se enroscam no ombro de homens de fedora. É lindo, impecável. 2046 se parece mais com o tango que meus tios-avós porteños saíam para dançar: um salão repleto de cabelos com laquê e casacos de pele, parceiros que se alternam cada vez que a música troca. Eu, nos meus saltos altos de adolescente, tentando aprender com primos adultos, sem nunca ter conseguido ir além dos primeiros três ou quatro compassos. Corada porque me deixavam beber fernet com coca.
As mulheres da minha família (com exceções tão extremas que só confirmam a regra) têm uma obsessão com aparência que eu aprendi sem questionar. Não há um fio de cabelo escapando depois do tango, meu batom vermelho preciso às sete da manhã. As mulheres do Wong Kar Wai são assim também: vestidos de alfaiataria perfeita, lábios vermelhos brilhantes, unhas vermelhas, cabelo arrumado em um certo mistério de engenharia. A linguagem clichê da sedução.
Eu amo a cena em Amor à Flor da Pele quando, depois de ter se escondido na casa do Sr. Chow por uma noite toda, a Sra. Chan finalmente chega no quarto que aluga. Ela passa pela porta e conversa com a locatária sem o menor tremor no rosto, sem ser nada além da mulher impenetrável que é. Então, ela entra no quarto e arranca os sapatos como se eles queimassem.
Eu penso em mim mesma, na obsessão com a minha própria aparência, na segurança que eu tiro do controle dela. Em como, eu também, me apoio na linguagem clichê da sedução e então hesito, porque o resultado de uma sedução bem sucedida só pode ser o desmonte dessa aparência. Eu penso muito mais do que gostaria no meu delineador borrado, na franja suada, em ser vista distraidamente comendo a pele em volta das unhas que, eu também, pinto toda semana.
Eu acho fascinante como o Wong Kar Wai, um homem gay, capta esse disfarce tão bem. Em como, quando convidado para uma coletânea que se chamava Eros, ele escolheu fazer um filme sobre costura. Eu lembro de costurar alças de tutus em camarins lotados, meu nariz colado na pele suada da garota na minha frente.
As mulheres nesses filmes são sempre esquivas. Mesmo Bai Ling, a prostituta de 2046, que faz o que poucas delas fazem, confessa que quer, que espera, que faria qualquer coisa, pede com uma elegância da qual eu nunca fui capaz. É rejeitada repetidas vezes sem borrar o delineador. Há uma impossibilidade de pegá-las, uma recusa delas de serem marcadas por esses homens que me encanta muito. Que eu gostaria de ter.
De todos os filmes dele, é em Felizes Juntos, o único romance gay, que os personagens mais se marcam fisicamente, em que há mais violência, o tipo de paixão desenfreada que a gente tende a ver como objeto do cinema. Não que as outras não sejam. Mas Bai Ling se estica elegante e acende um cigarro com seu cabelo arrumado mesmo depois do sexo que treme as paredes.
Eu gosto muito da história dentro da história em 2046, os contos de ficção científica sobre um quarto em que se vai para reencontrar as memórias de amores passados e onde nada nunca muda. Eu me pergunto se eu voltaria, fisicamente, para essas memórias de amores passados, o que é claro que sim, considerando que eu escrevo exatamente como quem faz isso. Mas então eu penso nessa escolha, de que nada nunca muda, porque cada vez que eu reviro um passado para uma história, ele é outro passado.
Em 2046, tudo ecoa Amor à Flor da Pele. As roupas de Bai Ling. O tom de verde. Os planos entrecortados, refletidos no espelho. O macarrão. Tudo é a Nastassja Kinski em Paris, Texas dizendo and now I hear your voice all the time, every man has your voice. Todo amor é o amor perdido. Jingwen usando exatamente o mesmo cabelo da Sra. Chan.
Meses atrás, uma amiga me diz “você não acha que está sentindo isso porque essa situação te lembra outra?”. A outra tinha mais de dez anos. Ela estava tão certa e eu fiquei tão decepcionada comigo mesma por ter me deixado marcar desse jeito. Por estar vivendo em um quarto onde minhas memórias nunca mudam e cada experiência é o espelho entrecortado do passado.
Mandando cada novo amante ver o mesmo filme com um entretítulo que diz: aquela era passou, nada daquele tempo existe mais.










assino a newsletter pq gosto de te ler, pq gosto de pensar que poderia escrever tão bem e pq acho a forma que vc conta sua vida fascinante. mesmo que eu nunca tenha visto nenhum desses filmes, mesmo que minha familia imediata seja toda brasileira, mesmo que nao compartilhe nenhuma experiencia óbvia além de ser mulher... leio e me sinto inspirada e um pouco próxima, rs. <3 obrigada por dividir
maravilhosa essa edição, é certamente um dos meus cineastas preferidos, obrigada por esse texto!