No Café Existencialista
Essa newsletter saiu um tempo atrás, por algum motivo tudo que eu mandava para os assinantes pagos não tava chegando. Acho que agora a gente resolveu isso.
Semana passada eu li um livro que estava há tempos na minha lista chamado At the Existencialist's Café (tá traduzido para o português como No Café Existencialista),uma espécie de biografia coletiva do existencialismo. É uma biografia das pessoas envolvidas, mas também das ideias do movimento, de como elas foram evoluindo, se transformando e ramificando. É uma história de como a fenomenologia foi do Hegel até O Segundo Sexo e o que essa abordagem significa para a filosofia e, mais importante, para a forma como nós pensamos.
O existencialismo talvez seja a corrente filosófica com mais impacto na sociedade em geral, no pensamento dos leigos, na simples forma como nós existimos. O que eu acho particularmente curioso uma vez que tudo que a maior parte das pessoas faz é evitar pensar como um existencialista do mesmo jeito que o diabo foge da cruz, mas - hélas - isso também é existencialista.
Eu, por acaso, gosto de me achar existencialista desde que descobri o termo, o que provavelmente aconteceu quando li O Mundo de Sofia aos 11 anos. O Mundo de Sofia é um livro engraçado: quase todo mundo ganhou de presente em algum momento, pouca gente leu, quem leu guarda muitas vezes uma ideia errada de que ele não era um bom livro de filosofia. Eu vou dizer que é um excelente livro de filosofia, ainda mais considerando a faixa etária em que se ganha ele de presente, mas talvez só se você aceitar uma definição de filosofia que é por si extremamente existencialista.
(Não relacionado, antes da gente seguir, mas a explicação que ele dá nesse livro para o mundo das ideias platônico é extremamente didática e eu guardo até hoje)
E isso porque em certo momento a filosofia é definida como um espantar-se com o mundo. Em uma de suas aulas de história do pensamento, Sofia é levada a considerar que era mais provável que esse mundo não existisse do que que ele existisse. Era mais provável que qualquer um de nós, como somos, não existisse. São milhões de espermatozóides, a chance de ser um não-eu e portanto infinitamente maior do que de ser eu. Que a gravidade exista, que o mar, o céu, todas as coisas existam não é óbvio, não é dado. É uma chance em um milhão. A filosofia é o espantar-se com isso, é o nunca esquecer todas as possibilidades de que as coisas não fossem. É se maravilhar que, senhoras e senhores, nós estamos flutuando no espaço.
Eu acho uma excelente definição, mas é uma definição que entende a filosofia como algo do mundo, algo a serviço da gente entender o concreto. Não preciso nem dizer pra vocês que nem todo filósofo se importa com o mundo e o concreto. Mas eu me importo e os existencialistas também.
Meu segundo encontro com os existencialistas foi por volta dos 15 anos, quando em alguns meses eu li O Estrangeiro, A Náusea, O Segundo Sexo e Memórias de Uma Moça Bem-Comportada . Eu comecei pelo O Estrangeiro, lido porque eu estudava francês na Aliança Francesa e foi como uma revelação. A estranheza daquilo, um romance que não servia para contar uma história, mas para discutir ideias, o distanciamento, a linguagem ao mesmo tempo vertiginosamente bonita e árida. Claro que eu não sabia articular tudo isso na época, mas o livro que eu tinha lido para uma série de exames oficiais de repente me parecia algo de outro mundo.
Memórias de Uma Moça Bem-Comportada seguiu, um presente da minha mãe quando eu comecei a usar palavras como “a moral burguesa” e “o patriarcado” quase diariamente. O Segundo Sexo foi um pulo para quem já ouvia Bikini Kill com uma fúria intensa. E então A Náusea.
A Náusea é, ainda hoje, uma experiência. É um livro curto, estranho, com uma capacidade singular de causar a sensação descrita, uma vertigem da existência. Roquentin é subitamente atingido pela ideia de que o mundo é impossível e isso é como se ele estivesse constantemente olhando para um penhasco. E isso porque a impossibilidade do mundo se dá porque não há Deus e portanto não há sentido pré-ordenado. Não há absolutamente nada além do fato de que estamos no mundo e somos corpos capazes de andar, nadar, tomar uma cerveja e então morrer. A existência não tem sentido em si e portanto cabe a nós mesmos lhe dar um, cabe a nós mesmos fazermos de nós o que queremos. Viver nada mais é que olhar o tempo todo para o abismo das escolhas e das responsabilidades e isso é nauseante.
Quando eu falo em aulas de certos livros ou filmes eu sempre tomo o cuidado de tentar fazer as pessoas visualizarem aquela obra na sua época. Isso porque obras revolucionárias tendem a se tornar canônicas e influenciar muita coisa do que vem depois então nós não somos mais capazes de as encontrarmos com o olhar fresco. Para nós aquilo é velho, mas as vezes é preciso entender como aquilo era quando novo. O Complexo de Portnoy, por exemplo, é um livro que exige esse exercício. Os existencialistas também.
No entanto, a vantagem da adolescência e das ideias que encontramos na adolescência é que a gente ainda não sabe de nada e portanto elas são tão novas quanto eram em 1945. Para mim aos 15 anos a ideia de que a existência precede a essência, que não existe um “eu” verdadeiro, mas que eu sou ao mesmo tempo absolutamente livre e absolutamente responsável por virar quem eu sou era radical de um jeito intoxicante. Ao mesmo tempo, era uma filosofia séria que me permitia ver o mundo com transparência, que dava lastro ao espantar-se que é natural de quem tem 15 anos.
Eu uso muito essa palavra, transparência, quando falo da adolescência e isso porque a experiência me parece exatamente essa. Quando você é novo as ideias, os livros, as músicas, são coisas para você enxergar através e além. Conforme a gente fica mais velho tudo isso se torna opaco e nós constantemente damos de cara com as coisas elas mesmas. Quando você é jovem tudo fala de como você deve viver, quando você passa disso os livros são o oposto da vida.
Claro, nem todo mundo foi a adolescente que eu fui, descobrindo Sartre e brincando com ateísmo ao mesmo tempo que me apaixonava por um menino judeu que lia Buber e Heidegger como se isso não fosse um paradoxo e que eventualmente - muito heideggeriano da parte dele - iria me largar por uma instituição que eu considerava fascista. Mas ainda assim, a primeira vez que as pessoas ouvem uma banda, ou veem certo filme, parece revelar a elas a chave de como a vida deve ser vivida. E eventualmente todos nós perdemos isso.
Mas o existencialismo é precisamente a filosofia que argumenta que isso não deve ser perdido. Em toda a autobiografia da Simone de Beauvoir ela retoma essa ideia do espanto do mundo, de considerar cada experiência como a coisa absurda e impossível que é. É essa ideia também que me faz sempre voltar para a Patti Smith e achá-la o ser humano vivo mais inspirador que existe. O existencialismo é justamente a filosofia da existência, de fascinar-se com ela e de refletir sobre o absurdo que é viver.
Foi curioso pegar esse livro quando peguei, um mês depois de eu mesma ter me vacinado, uma semana antes de todos os meus amigos estarem vacinados, no rabo final dessa experiência, porque ano passado foi meu ano mais existencialista. Entre março de 2020 e agora não teve um dia em que eu não me peguei citando Camus mentalmente : “a única questão filosófica verdadeira é a questão do suicídio". O que ele quer dizer com isso é que se a existência não tem sentido em si mesma, ela é uma escolha. Sempre uma escolha. E isso fala para mim de uma forma que tornou o ano passado inteiro um grande exercício filosófico.
Veja, eu sabia que isso era temporário, nenhuma pandemia dura para sempre, etc. Mas as vezes, enquanto eu me deixava contaminar pela caixa de amplificação de ansiedade que é o twitter e todas as pessoas que diziam “isso nunca vai acabar” eu refletia: se para viver eu preciso abrir mão do que eu considero vida, eu viveria? Uma questão que aliás atrapalha minha apreciação de toda história pós-apocalíptica uma vez que eu não teria o menor interesse em prolongar minha existência nesses cenários (uma questão que o Cormac McCarthy levanta em A Estrada, a melhor das histórias pós-apocalípticas). Esse tempo foi meu tempo mais existencialista porque tudo exigia que a gente visse nossa existência particular como um valor, mas eu nunca vi. Claro, essa é também uma filosofia da responsabilidade e portanto eu tenho a responsabilidade de permitir que os outros façam em liberdade a escolha a respeito da validade de sua existência. Mas viver por viver? Eu não tinha interesse. O medo me foi nesse tempo todo um sentimento estranho, curiosamente, eu nunca tive tão pouco medo.
Mas também foi meu ano mais existencialista porque me permitiu observar a relação dos outros com essa falta de sentido. Os subterfúgios, o que o Sartre chama de má-fé. Nem eles, nem eu, acreditam em sinais do tipo pegar um livro sobre existencialismo para reler precisamente quando a gente reentra o mundo e eu volto a olhar para outras pessoas e pensar “mas elas sabem que a existência precede a essência?". Mas foi uma coincidência curiosa. Lembrar de todo esse projeto que um dia lembrou que nós somos Ser Para a Morte e portanto precisamos pensar no que é ser um Ser no Mundo.
Eu sei, eu sei que pra ter escrito uma newsletter desse tamanho eu devia ter escrito um ensaio. Mas eu PRECISAVA falar desse livro.
Agora uma pausa para os nossos comerciais
Nessa quinta-feira agora eu começo a conduzir uma leitura compartilhada de Nêmesis do Philip Roth na Escrevedeira. A ideia é fazer uma análise profunda do livro e usá-lo como microcosmos do universo do autor. Inscrições nesse link aqui.
Eu também sou uma das professoras do curso Lendo Elena Ferrante, organizado pela Deriva e que começa amanhã. Eu dou a última aula, sobre A Vida Mentirosa dos Adultos, um livro que gosto muito. Você pode se inscrever aqui.
A terceira edição do meu clube do livro ainda tem algumas vagas. Vai acontecer no dia 30/07, as 19h30 e vamos falar de Conversa Entre Amigos. Você pode se inscrever nesse formulário, o valor é 50 reais, mas tem um desconto se você assina a versão paga da newsletter (eu vou entrar em contato com todo mundo que preencher o formulário pra falar de pagamento).
Nesse Mês
O que eu li:
Exciting Times, da Naoise Dolan: ela foi bastante comparada a Sally Rooney porque também é irlandesa e fala de relacionamentos millenials. Achei a escrita bem diferente, mas de fato o foco é parecido. Conta a história de uma irlandesa morando em Hong Kong e os dois relacionamentos que ela se envolve. Não é excelente, mas gostei bastante
As Pequenas Virtudes, da Natalia Ginzburg: li para um projeto novo de pesquisa que eu to circulando. Achei maravilhoso, a perspicácia e o detalhismo a tornam uma ensaísta excelente.
O Ano do Macaco, da Patti Smith: é o mais estranho dos livros dela, mistura de memórias com um ar surrealista. Nem tenho o que dizer, Patti Smith é minha santa padroeira nessa vida.
Trânsito, da Rachel Cusk: É mais estruturado que o primeiro, mas ainda não tem lá uma grande trama. É mais um romance filosófico, uma reflexão sobre arte e ideias. Gostei muito.
O que eu vi
De cinema: vi Frances Ha (não tá em lugar nenhum baixei) no dia que defendi o doutorado, porque é meu filme conforto. Amo, um dia escrevo sobre ele e sobre o fora que eu levei quando saí da sessão na época que tava no cinema.
Pickpocket (no Telecine Play) do Robert Bresson que é uma adaptação de Crime e Castigo e um dos marcos do início da Nouvelle Vague. Acho que passar o crime de um assassinato pra roubo de carteiras mata o argumento filosófico, mas é esteticamente interessante
Little Fellas (no Mubi), fala de uma menina nos subúrbios de Paris. É ao mesmo tempo divertido e delicado e olha o mundo da altura da protagonista. Transpõe muito bem o espírito da Nouvelle Vague pros anos 90.
Kicking and Screaming (no Netflix) é o primeiro filme do Noah Baumbach. É uma delícia, muito engraçado e perfeito pra lembrar de todos os esquerdomachos que você já conheceu.
Happiest Season (tem no Google Play, mas eu baixei) é aquela comédia romântica lésbica de natal que eu só fui ver agora. Achei fraquíssimo, roteiro bem bleh, par romântico sem carisma.
Listen Up, Philip (no Looke, peguei o período teste pra ver): comédia sobre um escritor auto-centrado com toda aquela estética de indie americano. Gostei bastante, mas é filme pra quem gosta de história de escritor autocentrado.
Como Perder um Homem em Dez Dias (no Netflix): é um milagre que esse filme funcione, mas é funciona, um clássico.
Velozes e Furiosos 9: maior franquia da atualidade, foda-se a Marvel.
De TV eu só vi a quarta temporada de The Good Wife, sigo totalmente entretida.
O que eu ouvi: Articles of Interest , um podcast que traça a história de itens de vestuário tipo estampa xadrez e bolsos.