Esse tem sido um ano estranho. Eu já tive anos brilhantes e anos horríveis e 2014 que foi ao mesmo tempo o melhor dos tempos e o pior dos tempos. Esse não é nenhum desses. É uma espécie de ano dois passos pra frente, um pra trás, ou três pra trás. Um ano em que as coisas acontecem, mas eu me sinto andando por um campo de lama, movendo algo muito pesado, como naquela cena de Melancolia em que a Kirsten Dunst tenta avançar, mas suas pernas estão presas por novelos de lã cinza. Eu caminho, mas de alguma forma os bolos não crescem, as coisas se perdem, eu sou pega de rasteiras por tombos que não tinha antecipado. E tudo isso parece de certa forma só um grande eufemismo para um ano que começou com um aluno meu morrendo.
Saiu no jornal e tudo e eu passei alguns dias respondendo mensagens e dizendo que sim, eu conhecia aquela criança e então desviando a onda de simpatia e comiseração que vinha e eu não queria, porque na realidade eu não conhecia aquela criança, não a sério, não de verdade. Ele esteve na minha sala por uma semana só e até hoje eu sou um pouco assombrada por não conseguir lembrar da cara dele. Mas embora eu também ainda não conhecesse os amigos dele, eu sabia que eles eu viria a conhecer e que eu precisaria nadar com o trauma e o luto deles pelo resto do ano.
Eu sempre fui, por natureza e circunstâncias, uma pessoa muito ciente de que a gente pode morrer a qualquer momento e viver sem essa consciência sempre me pareceu a maior loucura. Ainda assim, eu não estava pronta para a estupidez, a gratuidade e a violência do que aconteceu. Por duas semanas ali (que foram por acaso logo antes do carnaval, o que me tornou um tanto bem sucedida na missão) eu só queria sentir qualquer outra coisa, pensar em qualquer outra coisa. Olhando daqui, fevereiro foi um grande sonho de febre durante o qual eu quis quebrar tudo que caia nas minhas mãos, literal e figurativamente. Eu até gostaria de me arrepender, mas não consigo. Um adolescente morre debaixo do seu nariz e você faz o que precisa pra lidar, eu acho.
Eu queria dizer que nós (eu, eles) saímos do outro lado disso, mas eu acho uma inocência. Por outro lado, de certa forma todo mundo emergiu um pouco do que eram águas muito fundas. Duas semanas atrás, eu estava em pé no meio de um ônibus com esses mesmos adolescentes praticamente pendurados no teto, felizes da vida, e eu fui tomada por um amor e uma poesia muito profundos. E então uma menina se sentou do meu lado e me disse que ela lamentava que o que aconteceu fosse manchar os únicos anos realmente gostosos da vida deles.
Isso aí me pegou de um jeito que eu quase perdi o ar.
Não porque eu acho que ela estava certa, mas pelo contrário.
Eu perguntei o que ela queria dizer com isso e a resposta foi que logo eles seriam adultos e então a vida é só muito chata, trabalho e filhos e uma porção de coisas que eles não querem fazer. Eu sei que essa resposta está longe de ser incomum, ou mesmo coisa de adolescente. Todo dia na internet eu leio vários adultos lamentando a infância perdida, essa época em que eles eram "verdadeiramente felizes". Eu acho isso a coisa mais deprimente do mundo.
Porque você é criança por ali uns 12 anos da sua vida, adolescente por mais uns 7. E é isso. Vamos trabalhar com a média de que você vá viver até os 80. Ou seja, apenas um quarto da sua vida foi bom e o resto é um sacrifício? Mais ainda: o quarto que foi bom é um em que você não tinha autonomia, liberdade ou sabia quem era? Eu me recuso.
Vejam, vamos deixar de lado por um pouco a discussão da exploração capitalista. Eu acho que é um sistema desumanizante e exploratório, mas eu também acho que existe na internet um discurso que se imagina militante, mas é só conformista que é dizer “é o capitalismo” pra tudo. Porque se é o capitalismo, essa força incontrolável que maneja nossas vidas, então não tem absolutamente nada que ninguém possa fazer. Além disso, boa parte das pessoas que eu vejo repetindo esse discurso de que não são felizes desde os 18 anos estão em uma posição econômica e social relativamente confortável. Eu sei muito bem que a desumanização segue na classe média e somos todos proletários, mas também acho que na vida dessas pessoas existe uma questão filosófica que é do que quero falar aqui.
Porque muita gente diz que era feliz na infância porque não tinha responsabilidades, mas eu quero olhar para isso. Em A Liberdade É Azul, um dos meus filmes preferidos, o Kieslowski constrói a tese de que a verdadeira liberdade é também a libertação de todos os laços, é atingir o mais perto possível de uma flutuação no vazio. A liberdade completa é quando você não é mais responsável por ninguém, mas por outro lado é plenamente responsável por si mesmo. Esse é um argumento bastante existencialista, é claro, uma vez que o postulado básico do Sartre é que a vida é um eterno processo de escolha e você é sempre absolutamente livre e portanto absolutamente responsável pelo que é.
Ou seja: a infância, esse período de ausência de responsabilidade, é também o período da completa falta de liberdade. Você não é livre em suas escolhas, por isso não é responsável. Eu sei que quando muita gente diz isso, a pessoa quer dizer responsabilidade de lavar louça ou pagar a conta de luz, mas essas coisas são inseparáveis. A responsabilidade pela manutenção cotidiana de nossa vida e de nós mesmos é o que nos torna livres para construirmos quem somos porque, no fim, nós somos a soma dessas pequenas ações cotidianas.
Eu venho pensando muito nisso porque desde o final do ano passado eu passei a observar o hábito de controle que eu exercia sobre a minha vida. Meu cérebro nunca foi um lugar acolhedor ou pacífico e eu sempre senti que a integridade da minha personalidade dependia de segurá-la com as duas mãos. Tal qual a Lila, eu sou propensa a desmarginar e para os que nunca passaram por isso a sensação é de mergulhar em um abismo que nunca termina. A solução, sempre me pareceu, era o controle.
Isso deve parecer completamente inesperado e absurdo para as pessoas que me conhecem, afinal, eu sempre fui alguém que gosta mais do que deveria de álcool, de drogas, de sexo, de me enfiar em ideias idiotas e perseguir absolutamente qualquer sensação só porque sim. Só pela história. Eu escrevo odes à Fiona Apple e digo que o que eu quero é sentir tudo e escrever como se espalhasse minhas entranhas na parede. Minhas amigas me dizem para dar um passo para trás e eu me recuso com o argumento de que tudo que está ali - o bom e o ruim, o dar certo e o não dar - são coisas que eu quero. E tudo isso é verdade, tudo isso é quem eu sou e é a versão de mim que eu gosto mais.
Mas como qualquer pessoa eu tenho medo, e além disso eu tenho ambições, e para abarcar esses dois eu construí um lugar para onde voltar: o lugar do controle. O lugar no qual eu acordo cedo todos os dias, planejo todos os meus afazeres, faço yoga e como direito. O lugar em que não há espaço para os meus impulsos porque esses impulsos, eu acredito, são sempre, sempre destrutivos. Como eu comecei dizendo, quando uma criança morre e eu não consigo (ou não quero) manter as rédeas, o que eu faço é quebrar as coisas. Mas e se nada disso for verdade? Ou: e se existir esse lugar em que todos nós abrimos espaço para o prazer e ele deixa de ser tão ameaçador?
Eu escrevo muito sobre prazer e desejo, mas em geral eu estou falando de sexo e feminismo. Aqui eu quero falar de coisas mais mundanas. De danças na cozinha, leituras no parque e croissants. De acreditar que é possível soltar as rédeas de si mesmo e não cair.
Eu sei que ela falou a maior quantidade de bobagens ultimamente, mas eu ainda acho algumas análises que a Naomi Wolff faz em O Mito da Beleza muito esclarecedoras. Particularmente, que o padrão de beleza magérrimo não tem a ver com estética, mas com controle. Nós ensinamos mulheres a estarem sempre hipervigilantes sobre si mesmas, tudo que entra em seus corpos, tudo que sai, cada mínima mudança em sua aparência e isso tolhe nossa energia para todas as outras coisas. Tão controladas, nós não conseguimos pensar intelectualmente, agir no mundo, sentir qualquer prazer. O controle, é a morte do criativo, portanto a morte do humano.
Eu pedi para nós deixarmos de lado a desumanização do capitalismo por um tempo, mas agora eu quero voltar a ela. Porque agora eu acho que vocês conseguem me acompanhar em ver que o capitalismo nos desumaniza dessa forma e tolhe toda forma de prazer espontâneo, levando todo mundo a acreditar que precisa viver uma existência de rotina constante sem espaço para prazeres porque isso é uma ferramenta de controle. Apontar essa estratégia e então se submeter a ela não é militância, é só conformismo. Mas talvez, exista algo de revolucionário em segurar a liberdade e o prazer dela.
Eu não quero dizer com isso que todos nós comprarmos croissants em uma tarde de terça feira vai desmontar o sistema, pelo amor da deusa. O que eu quero dizer é que os tentáculos do sistema estrangulam nossa subjetividade junto com nosso tempo e energia física. Essa fala de que só se pode ser feliz na infância é em muitos sentidos uma fala que diz “só havia felicidade antes do capitalismo se apropriar da minha identidade". Eu entendo isso, ao mesmo tempo, isso acontece também porque essa subjetividade era, como o corpo, um ser muito menor, menos desenvolvido. E menos livre.
Eu comecei a pensar nisso quando comecei a soltar a gaiola dos meus dias, da minha própria vida. Devagar, eu planejei menos, eu me permiti mais. E fui, em um experimento, vendo o que acontecia. Eu caí algumas vezes. Eu quebrei coisas e eu persegui sensações que no fim só me fizeram quebrar a cara. Mas a mentira que eu conto para as minhas amigas se provou verdadeira porque eu queria tudo que encontrei ali. O desejo, a dor, a raiva. No meio de tudo isso eu tomei esse tombo completamente fora do meu controle e me vi ao mesmo tempo reavaliando meus dias e enfrentando um bando de adolescentes fazendo o mesmo. Eu tirei as luvas de algo que até então vinha tratando com cautela e, honestamente, o resultado foi terrível. Mas, de novo, um adolescente morre embaixo do seu nariz e você lida como dá. Você decide testar abandonar o controle de si mesma e o que precisa ser encontrado são essas coisas. Tudo bem, eu acho.
Por outro lado, eu encontrei um prazer quase inexprimível no sol que entra pela minha janela. No tempo vazio e amorfo. No vento no meu rosto porque eu me permiti levar uma pilha de correção para o parque. Em um café com uma amiga nova no meio da semana. Em fazer amigas novas. Essa ideia de abrir mão do controle é também uma ideia de decidir que sua vida é para o prazer, que você está nesse mundo para experimentar o máximo possível de sensações gostosas. Eu ainda sou muito ambiciosa e esse texto é de forma nenhuma para dizer que de repente eu acho que o ronronar da minha gata vai ser melhor que a sensação de ganhar um prêmio Jabuti ou o que seja. Não é isso. É só uma retomada da responsabilidade pelos meus dias, pelo que eu faço deles. Pela humanidade de tudo isso.
Esse texto também foi escrito num sonho de febre e revisado o mínimo possível. Tem coisas que só da pra escrever assim.
Lembrando todos vocês que no final desse mês vai rolar nosso clube do livro sobre Middlesex, do Jeffrey Eugenides. Cada encontro custa 20 reais e para se inscrever é só me mandar um email. Quem quiser logo se inscrever em todos os clubes do ano só precisa fazer upgrade para a assinatura de founding member.
Perdi o fôlego e me encontrei no meio de tanto! Meus olhos involuntariamente já se reviram quando ouço uma amiga dizer "ai, muito chato e difícil ser adulta...". Amo ser adulta e ter autonomia para escolher meus problemas.
que texto! <3