Primeiro um anúncio: essa cartinha passou de 1500 assinantes!!!! Eu sei que nem todo mundo lê, mas no geral metade das pessoas leem e só isso eu já acho uma loucura. Muito obrigada mesmo por estarem aqui e lerem as palavras doidas que eu escrevo de vez em quando, responderem a elas e tornar esse meu lugar favorito da internet.
Em comemoração eu dei seis meses de assinatura paga de presente para os dez leitores mais assíduos que ainda não pagavam. Então amanhã vocês recebem a mini-cartinha de recomendações, o textão extra no mês e sei lá mais o que eu alguma hora inventar pra cá (to querendo inventar mais coisas).
E agora vamos ao texto
Eu, como metade da humanidade, passei os últimos dois meses assistindo uma série de zumbis que não era, na verdade, uma série de zumbis. Como também metade da humanidade eu gostei que ela não era, eu ouvi podcasts analisando todas as outras coisas sobre as quais The Last of Us era, as nuances e propostas e investigações ideológicas que estavam acontecendo naquilo que era muito mais do que precisava ter sido. Uma série de zumbis adaptada de um videogame de sucesso com o Pedro Pascal não precisava ser tão boa para ser vista, ela não precisava ser nada além de uma adaptação de videogame com o Pedro Pascal. Ela poderia até usar a palavra zumbi de vez em quando e considerando que passava num domingo à noite na HBO eu, e mais uma galera que não liga tanto para videogames ou zumbi (me recuso a acreditar que alguém não ligue para o Pedro Pascal) estaria ali. Mas ela foi mais que isso, o que não me surpreende. O que me surpreende, em muitos sentidos, é justamente essa premissa inicial, o pós-apocalipse da coisa.
Porque eu, e quase todo mundo que enfrentou esses nove episódios, concordamos que eles foram sobre família escolhida, trauma e cura, pessoas se abrindo para novos relacionamentos e amor como aquilo que faz a vida valer a pena. Que eles foram também sobre perda, luto, a tendência da humanidade ao totalitarismo e uma reflexão a respeito de adolescentes crescendo em um mundo sem perspectiva. Tudo isso esteve lá tão mais do que os zumbis feitos de cogumelos fora de controle que muita gente se perguntou pra que nós precisávamos deles? Além do fato óbvio de que eles estão no jogo, claro, mas pensando por que nós precisamos desse formato para contar essa história?
Eu nos últimos tempos andei inclusive um pouco irritada com a necessidade da indústria de audiovisual de empacotar tudo em franquias, de todos os diretores precisarem encontrar um veículo comercial para a história que querem contar. Eu não vi She-Hulk embora muita gente tenha tentado me dizer que eu deveria porque era sobre uma mulher jovem tentando se acertar no seu mundo. Eu entendo isso e esse tema me interessa, mas eu queria que nós pudéssemos falar de jovens mulheres se encontrando no seu mundo que não ficam verdes e não são um produto da Marvel. A ideia da série me interessaria, se ela não precisasse ter sido empacotada como série de herói.
Por outro lado, eu vi Andor e achei uma das melhores coisas na televisão ano passado. Foi um ensaio maravilhoso a respeito de ditaduras, resistência e o que leva pessoas ordinárias a atos absurdos em nome de um ideal político. Eu amei tudo nessa série e eu adoro Star Wars com uma boa vontade que já não estendo pra maior parte das franquias. E, ainda assim, as vezes eu queria que ela só não fosse uma série de Star Wars, que nós pudéssemos estar contando uma história de resistência, espionagem e ditadura nesse mundo, nesse tempo, ou sei lá, na Alemanha comunista, eu não sei. Eu só queria que Andor pudesse ser a série que é e não a série que é disfarçada de algo mais comercial.
E, apesar de tudo isso, eu vou vir aqui defender que The Last of Us precisava sim ser uma série de zumbis. Que embora os temas ali pudessem ser abordados por uma série de outros formatos, inclusive os dramas clássicos da televisão de prestígio, há algo no cenário e no gênero do pós-apocalipse que enriqueceu essa história.
Eu já falei isso aqui várias vezes, mas tenho grandes questões com esse gênero porque a existência pela existência é algo que nunca fez sentido para mim. Se manter vivo em um mundo onde não sobrou mais nada não é algo que me mova ou me faça torcer por um protagonista e eu preciso que a história pelo menos reconheça que desistir é uma opção e me conte por que esse personagem não fez essa escolha (A Estrada, por exemplo, faz exatamente isso). Mas recentemente eu tenho visto algo curioso: histórias de pós-apocalipse que investigam exatamente essa questão.
Eu não vi a série Estação Onze, mas eu li o livro e o ponto ali é esse: Shakespeare, beleza e conexão como as coisas que fazem as pessoas seguirem em frente e a existência ali, por mais precária que seja, valer a pena. The Last of Us investiga a mesma coisa com um adendo: a cada episódio a série para reforçar a ideia de que o que tornou o mundo um horror não são os zumbis, mas as pessoas.
Em diversos momentos, o maior deles na comuna do Tommy, nós encontramos pessoas vivendo bem, felizes, confortáveis até. Claro, a ameaça está ali fora, mas a vida delas não é um inferno completo como a das pessoas nas Zonas de Quarentena parece ser. Os zumbis estão ali, o horror foi o homem que escolheu. Esse ponto é ainda mais profundo considerando a premissa da história: tudo se move porque a Ellie poderia salvar o mundo, mas o problema que ela pode resolver não parece ser o problema de verdade. Ela pode salvar o mundo do cordiceps, mas não foram eles que destruíram o mundo. Não se a gente olhar com cuidado.
Nesse caso os zumbis e o gênero da narrativa são essenciais porque quando esse universo é apresentado o espectador já sabe como organizá-lo. Zumbis, nós pensamos, eu já sei para onde isso vai. E aí a coisa vai para outro lado, mas esse outro lado se torna mais fácil de estabelecer e também mais profundo porque está em diálogo com as premissas do gênero na nossa cabeça. Nós esperamos que histórias de pós-apocalipse sejam sobre como uma influência externa destruiu tudo e se nós só resolvermos isso ela volta ao normal. Tudo bem, nos diz o Craig Mazin, eu dei a influência externa, eu dei o que pode resolver, mas eu também pergunto se isso seria suficiente?
Curiosamente, as coisas que eu estava pensando sobre The Last of Us e narrativas de gênero se amarraram para virar um texto quando eu assisti a coisa menos parecida com uma série de zumbis possível: Felizes Juntos, do Wong Kar Wai. Esse filme é a história de dois homens que trocam Hong Kong por Buenos Aires para poderem viver juntos e o roteiro é um clássico Wong Kar Wai: um amor intenso e conturbado, idas e vindas, personagens sedentos por conexão e incapazes de se comunicar de verdade, a violência inerente a esse tipo de paixão. Mas a estética é de um noir. As cores, a câmera, mesmo a narração nos lembra não uma história de romance, mas alguma narrativa de assassinato que leva um detetive amargurado a se envolver com o submundo do crime de Los Angeles. No entanto, não há crime propriamente dito, só uma atmosfera que faz o espectador pensar em violência e perigo, em um amor que pode levar o protagonista para lugares obscuras. Isso se costura com a temática homossexual e aqui esse uso do gênero levanta ideias de um amor que por sua natureza é empurrado para o submundo, que é perigoso por definição, sem que o diretor precise articular no roteiro essas ideias. O uso do gênero pela estética traz para o filme todo um conjunto de códigos e temas que se sobrepõe a um roteiro que não fala deles, enriquecendo a obra final.
Se The Last of Us usa o que sabemos do gênero para contradizê-lo, Felizes Juntos soma esses clichês. Nos dois casos, o uso do clichê narrativo serve para respeitar o que o espectador já sabe e construir um diálogo: ninguém precisa dizer de novo o que já foi dito mil vezes. Ao usar o que parece mais óbvio no cinema essas narrativas se tornam colaborativas, novas e um tanto subversivas.
Impossível não sofrer a cada episódio dessa série, a humanidade dói