Como sempre, Lila exagerou, pensei.
Estava extrapolando o conceito de vestígio. Queria não só desaparecer, mas também apagar toda a vida que deixara para trás.
Fiquei muito irritada.
Vamos ver quem ganha dessa vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória.
A Amiga Genial, Elena Ferrante
Eu sempre fui uma pessoa de melhores amigas. Quando eu estava na primeira série, minha mãe recebeu um boletim preocupado da escola informando-a que, embora eu fosse gostada pelas outras crianças, eu não queria saber delas, mas possuía a tendência pouco democrática de eleger uma favorita e me apegar apenas a ela. Minha escola humanista achava que eu devia estar preocupada com a formação de laços coletivos, porém tudo que eu queria era viver em um mundo no qual só caberia eu e mais uma outra menina.
A gente não durou muito, eu e essa minha primeira favorita, mas ela foi seguida por outras. Na quarta série, eu fiz uma nova melhor amiga, nós estávamos na mesma sala, íamos juntas para o ballet (ela estava um ano na minha frente) e passávamos horas inexplicáveis jogadas na cama conversando eu sei lá sobre o que. Ela durou mais. Quando eu dei meu primeiro beijo, ela observou de longe eu me esgueirar pelos fundos do salão de festas de algum prédio que até hoje eu sei exatamente qual é. Quando ela deu seu primeiro beijo, eu tive que ir ao cinema junto. Nós ficamos bêbadas pela primeira vez juntas e ela namorou o melhor amigo do garoto com quem eu tinha um relacionamento livre demais para rótulos, talvez nem tanto porque ela quisesse, mas porque fazia sentido na época.
Nós não éramos parecidas. Ela era terrivelmente convencional e enquanto eu comecei a fumar, passei a me agarrar com um garoto que tinha namorada e depois deixei um que não era bem meu namorado (mas também não deixava de ser) colocar a mão dentro da minha calcinha, ela disse que eu era idiota. Mas ela não contou para ninguém. Ela também não tirou os olhos de mim. Assim como eu não tirei os meus dela.
Nós fomos morar juntas no meu segundo ano de faculdade (primeiro dela) e dois anos depois eu saí daquele apartamento no pior término da minha vida.
Nunca mais eu tive amizades tão violentas, mas eu segui o padrão de viver a minha vida em dupla. Na faculdade, eu e uma outra garota éramos basicamente uma unidade: as duas loiras, em roupinhas retrô, fumando como Anna Karinas entediadas e colaborando em filmes sobre meninas loiras, em roupinhas retrô, fumando como Anna Karinas entediadas.
zzem meus vinte e poucos, de uma forma que nenhuma de nós duas sabe explicar, eu e uma menina que eu conhecia do colégio nos juntamos. Mais uma vez, nós não éramos parecidas, e durante todo o tempo em que fomos do mesmo ano a gente provavelmente sacudiu a cabeça uma para a outra. Eu a achava nerd e sem graça. Ela provavelmente me achava uma doida que queria chamar atenção causando problemas. Mas nós gravitamos uma para a outra e ela foi comigo ver o carro que meu ex-namorado tinha dado perda total. Eu li os emails de um homem casado por quem ela esteve perdidamente apaixonada. Nós viajamos o mundo juntas. Eu celebrei o casamento dela.
Nós ainda somos amigas e outro dia, em resposta a um áudio enorme que eu tinha mandado falando sobre coisas que eu estava vivendo e tudo que eu tinha entendido, a resposta dela foi “sim, eu sempre soube que isso ia acontecer para você.” Eu não sabia, o que eu estava entendendo e dissecando me parecia um tipo de revelação. Mas ela sabia e eu acreditei.
A dupla com quem eu vivo minha vida agora não sabe flertar, nunca tinha experimentado nenhuma droga até a noite de ano novo em que eu coloquei duas diferentes na mão dela e vai para o hospital na primeira tosse enquanto eu estou escrevendo esse texto saída do buraco onde eu enterrei minha imunidade porque me recuso a acreditar em ficar doente. Mas eu sou completamente incapaz de passar por qualquer coisa sem dissecar toda experiência com ela e eu tenho pensado muito nisso.
Esse texto começou a nascer por causa de um meme que o Instagram tem me mostrado o tempo todo: um vídeo de uma garota digitando no celular e por cima a legenda “mandando mensagem para minha melhor amiga assim que alguma coisa acontece porque nós vivemos essa vida juntas". Porque a verdade é que sim, a gente vive essa vida juntas.
Quase todo mundo (eu, inclusive) tende a esquecer disso, mas a Série Napolitana não é narrada abstratamente pela Lenu. O que estamos lendo não é seu fluxo de consciência ou o fio de sua memória, mas um texto que ela está escrevendo, já velha, em sua casa em Turim. E o motivo para ela ter começado a escrever esse texto é porque Lila desapareceu. E nesse desaparecimento, ela leva consigo essa vida construída em conjunto e isso Elena não pode aceitar. A Lila não tem o direito de desaparecer completamente porque a vida dela nunca foi vivida sozinha e portanto seu sumiço seria também o sumiço de uma parta da Elena. E isso ela não vai deixar.
For Anna there must be such a Margaret, who has been one thing and is now another, while Margaret looking at her own life sees only the onwardly flowing blur of all experience.
Intermezzo, Sally Rooney
Existe muita coisa que a Ferrante capta com perfeição nesses livros, mas a maior delas e a que talvez seja revolucionária do ponto de vista da história da literatura é a amizade entre as duas personagens e o entendimento de que é essa, e não nenhuma outra, a relação fundamental da vida delas.
Enquanto eu planejava esse texto, eu fui tentando elencar na minha cabeça obras que falassem de amizades femininas como essa peça fundamental da nossa vida, para além da Ferrante. Na Sally Rooney, as personagens costumam ter uma relação dessas, mas elas nunca são o foco do livro, exceto um pouco mais em Belo Mundo, Onde Está Você? Frances Ha é um filme sobre isso. Sex and The City. Girls. Eu não consegui chegar mais longe.
Deveria ser estranho que uma relação que quase todas as mulheres que eu conheço experimentam de forma tão visceral seja tão pouco representada na nossa cultura. Deveria, se não fosse completamente óbvio.
Em quase todas essas narrativas de amizades femininas, as mulheres envolvidas são um pouco opostas. Lila é impulsiva, violenta, ousada. Ela também é arredia em relação ao sexo e nunca deixa Nápoles. Lenu é mais disciplinada, tímida, constante em seus esforços. Ela é muito mais movida por sua sexualidade e desprendida geograficamente. Em Frances Ha, Sophie é focada, organizada, tem um namorado de longo prazo para a desorganização de Frances. Sex and the City basicamente nos deu os tipos para essa oposição, Girls tomou o modelo e subverteu de leve.
Pensando nisso, e fazendo o histórico das minhas próprias melhores amigas com o qual comecei essa newsletter, eu notei o mesmo padrão. Eu tive amigas mais parecidas comigo, mas aquelas com quem eu passei a dividir a existência, aquelas que estavam escrevendo comigo a história de quem eu sou, aquelas que jamais poderiam desaparecer sem eu escrever 1200 páginas para manter a existência delas no mundo, foram sempre um pouco opostas a mim. E essa oposição me parece importante no por que essas são as relações fundamentais.
Em Frances Ha, Sophie e Frances são amigas desde a faculdade e moram juntas enquanto dividem os sonhos de como vai ser a vida adulta delas. Mas aí essa vida adulta começa a acontecer e elas se afastam. E o que descobrem nesse afastamento é que, sem a outra, ambas se perderam. Sem o olhar constante dessa melhor amiga, nenhuma delas tem um fio, se lembra de quem deveria ou gostaria de ser. No final, quando elas se reencontram, elas não são as mesmas pessoas do início, mas elas foram capazes de lembrar uma a outra de coisas fundamentais sobre suas identidades.
Quando eu falei por cinco minutos sobre coisas para essa minha amiga e a resposta dela foi um “sim, eu sempre soube”, eu me senti exatamente assim, trazida de volta para mim mesma. É claro que ela sabia, é claro que essa era a pessoa que de alguma forma eu sempre tinha sido. Eu mesma não sabia disso, porque eu estava prestando atenção em outras coisas, mas ela estava prestando atenção em mim.
De forma parecida, outro dia, sentada numa banquetinha de trailer de lanche na frente da Zig, focada em comer um x-bacon e louca da mais insalubre das drogas, eu desandei a explicar para a Amanda tudo que ela estava fazendo da vida dela. Talvez ela soubesse, talvez não, certamente ela não tinha pedido a análise. Não importa. Eu estava prestando atenção.
Eu tenho escrito muito sobre o jogo de ser sujeito e objeto que está envolvido no tornar-se uma pessoa quando você é uma mulher. Sobre a contradição em termos que é narrar enquanto mulher. E quando eu olho para todas essas narrativas a respeito de amizades femininas, o que eu encontro são personagens no processo de tornar-se uma pessoa, com toda a carnificina, delírio e sofrimento que isso envolve. E uma amiga que assiste esse processo com a certeza de que aquela que ela vê é um sujeito, de que ela é inteira, digna, amada. Se a relação com homens é sempre um processo de reafirmar seu direito de narrar a experiência, uma amiga é uma narradora em conjunto.
A história de Lenu, como ela vai ser no final de todas as coisas, começa no momento em que Lila joga as bonecas no bueiro. Continua quando Lila olha para ela - realmente olha - e diz “você é minha amiga genial". Lenu não pode deixar que Lila desapareça porque ela não é a autora solitária da própria história. Se ela permite que essa amiga suma, o que vai com ela é o arquivo de todos os seus sentimentos, experiências, da pessoa que ela um dia foi. Dela mesma antes de se tornar uma pessoa. Da possiblidade de encontrar tudo isso de volta, se ela um dia se perder novamente.
Um dia, a história que eu narrei em um longo áudio de cinco minutos para uma amiga vai ser passado e eu vou ter esquecido que ela me formou de alguma maneira. Mas ela, que não vive a mesma coisa e não concluiu as mesmas coisas da vida e um dia me ouviu explicar tão detalhadamente o que aquilo era, vai me dizer “sim, eu sei, porque lembra?”. Porque a gente vive essa vida juntas. Porque ela estava prestando atenção em mim.
(Da mesma foram, enquanto ela aprende a ser mãe, eu estou prestando atenção nela)
Uma amiga um pouco oposta é também um espelho, quem ela não é te mostra você e o espaço entre as pessoas que vocês duas podem virar é o espaço de uma individualidade radical porque compartilhada. Não é a toa, eu acho, que um dos momentos mais bonitos de Sex and the City é quando a Charlotte e a Samantha se olham. Que em Girls, embora a Hannah seja constantemente insuportável, é a Marine quem segue amando-a, até o fim, apesar de tudo. Ou que no fim de Frances Ha, é na Sophie que Frances encontra a sua pessoa no mundo.
falar sobre amizades femininas sempre me emociona muito. seu texto é lindo e é um lembrete de como, por esse lado, é bom e único ser mulher e cultivar vínculos entre nós! ❤️
ps: maior reff de cumplicidade genuína (e imperfeita) é Fátima e Sueli!!! as maiorais
Eu estou no ônibus, lendo esse texto e chorando copiosamente. Pensei em amigas que tive, mas, principalmente, na minha relação com minha irmã gêmea; no quanto nós somos a pessoa uma da outra e as pessoas parecem achar isso peculiar ou engraçado e não percebem o quanto nós lembramos uma a outra que somos sujeito, que existimos, que somos olhadas. Obrigada, Isadora!