A primeira cena de Aftersun é uma imagem feita por uma filmadora caseira: Sophie, 11 anos recém-feitos, entrevista seu pai, que em breve completará 31. Quando ela pergunta se aos 11 ele imaginava que sua vida teria sido como foi, ele sai do quadro e pede que ela pare com a brincadeira.
Poucos filmes dizem a que vieram tão rápido, ou são capazes de se condensar tão perfeitamente em uma pequena sequência. A textura da filmadora caseira primeiro situa esse filme firmemente em um lugar - os anos 90 - e um contexto - o da memória familiar. Ele também nos conta quão novo Calum era quando Sophie nasceu e que, talvez por isso, talvez não, sua vida não aconteceu como ele imaginava aos 11 anos.
Não que a vida de alguém acabe acontecendo como se imagina aos 11 anos, mas existem diferentes versões dessa disparidade. Na primeira, você acabou não se tornando bailarina, bombeiro ou qualquer outra profissão esdrúxula que crianças escolhem (acho, eu sempre quis ser escritora), nem mora em uma mansão com 50 cachorros. Mas, esses detalhes particularmente infantis à parte, você é uma pessoa feliz, realizada, que seguiu de alguma maneira o curso que era esperado da sua vida. A outra versão dessa disparidade é quando os trilhos que partem da infância foram para uma direção, mas você descarrilhou logo no início.
Calum é claramente o segundo caso e o espectador sabe disso já nessa cena.
A maneira como a diretora, Charlotte Wells, localiza os anos 90, a sutileza dessa apresentação, é uma das minhas coisas preferidas no filme. Isso porque, os anos 90 representam um desafio específico na reconstrução de época: eles são a primeira década hiper-documentada da história e também o marco zero de nós millenials, a geração ao mesmo tempo mais marcada pelos artefatos de consumo e mais consciente disso que já existiu.
Nenhuma geração anterior assistiu televisão da mesma forma que a gente, a mesma quantidade de horas e portanto nenhuma outra tem sua passagem do tempo tão organizada por comerciais e programações vespertinas. A aceleração dos saltos tecnológicos também permitem uma marcação de tempo muito mais precisa, tão precisa que se torna distração. Por exemplo: uma vitrola em cena não nos diz se um filme se passa em 1972 ou 78, mas um discman em vez de um walkman nos diz se algo é o início ou fim dos anos 90 e um iphone conta exatamente o ano, talvez até o mês da história.
Não há necessidade desse tipo de preciosismo, mas nós, jovens adultos extremamente online que estamos vivendo de forma extremamente online o fato de não sermos mais o centro da sociedade de consumo e portanto nos apegamos de forma quase totêmica a certos artefatos nostálgicos, caímos nisso com muita frequência. Mas não aqui. A textura da câmera caseira é um dos poucos marcadores temporais que aparece e ele serve a duas coisas muito bem delimitadas:
A primeira é a marcação do tempo, mas os anos 90 não são importante apenas pelo preciosismo da diretora ou porque foi quando ela tinha 11 anos. Eles são importantes porque são uma época em que já podemos produzir imagens com facilidade, mas o tédio ainda é uma constante.
Eu sou filha única e quando criança eu passei verões longuíssimos sozinha e entediada, muitas vezes em um país cuja língua eu entendia só vagamente. Eu acabava meus livros e não havia mais nada para ler ou novos para comprar. A televisão falava comigo em hebraico e em certo momento as imagens cansavam. As horas eram infinitas, o tempo arrastado.
Nada disso seria assim hoje em dia: kindle, tablets, netflix, tudo isso teria permitido a uma criança nessa situação preencher seu tempo. O tédio hoje é mais fugidio, algo que a gente tem que ativamente procurar (falo do tédio da falta completa do que fazer, o tédio enquanto cansaço, ennui ou algo existencial é a própria definição da minha vida até hoje, mas isso é pra outra newsletter). E o tédio é essencial para Sophie e Calum porque é no vazio das horas mortas, no tempo arrastado do nada para fazer que o que quer que esteja acontecendo nesse filme acontece.
É porque ela não tem mais nada para fazer exceto examinar o pai e a si mesma que Sophie constrói todas essas memórias e porque ela passa muito tempo olhando, mesmo sem saber para que, que coisas que ela ainda não compreendem começam a se depositar dentro dela. Coisas que serão arranjadas só muito mais tarde, quando ela rememorar tudo isso.
E aí a filmadora. A textura granulada do filme caseiro é uma metáfora perfeita para o fio da memória: pouco nítido, sobreposto de forma quase surrealista. Nas fitas dos anos 90 você começava a assistir uma festa de aniversário e de repente estava de férias na praia e então dois anos tinham se passado. Os vídeos eram recortes de tempos especiais, situações que mereciam ser registradas em imagem. O tipo de situação que guardamos na memória.
Nossa memória também é episódica, relacional e qualquer narrativa que busque usá-la como fio condutor está sempre em busca desse ritmo. Todo mundo sempre desejando o início de Em Busca do Tempo Perdido, a fluidez perfeita entre o gosto da madeleine e a memória da infância. Aqui, não só a filmadora, mas a textura precisa das filmadoras caseiras dos anos 90 é a madeleine.
E isso tudo é importante porque esse não é um filme fácil e óbvio sobre um homem de infância sofrida que teve uma filha cedo demais e hoje é um alcoólatra funcional. É sobre a filha dele, que não sabia de nada disso na época e hoje, adulta revisita memórias que sempre teve e as compreende por uma nova luz. É um filme construído a partir da luz que transparece por uma cortina, das coisas que a gente capta sem absorver, de como o trauma de um pai e a pessoa que ele é chega nessa menina. É um filme sobre tudo que ele tentou esconder e não conseguiu.
Nesse sentido, é uma obra que só poderia existir como filme mesmo, nunca como livro. Porque ela depende das imagens não analisadas e a literatura é sempre o campo da super-análise, escrever é nomear, escolher uma palavra é compreender, ou pelo menos a tentativa de compreender. Mas Charlotte Wells não quer compreender nada, ela quer só lembrar.
Eu tenho um momento jabá pra fazer, mas chegou muita gente nova aqui nos últimos meses, então ele vai ser duplo: primeiro, caso você não saiba, eu tenho um livro publicado! Ele se chama Você Não Deve Esquecer Nada e é uma análise do tema da memória e da identidade judaica na obra do Philip Roth. Você pode comprá-lo no site da editora, direto comigo (aí ele vem autografado!), na Amazon, na Martins Fontes da Paulista, ou na Ponta de Lança, uma livraria fofíssima na Santa Cecília.
E daí a novidade é que um pouco na mesma linha (eu retrabalhando e publicando minhas pesquisas acadêmicas) no ano que vem eu vou lançar um livro novo! Ele se chama Paisagens da Alma e é um ensaio a respeito da busca por um sentido no cinema do Bergman. Porém, como eu sou escritora independente em editora independente e o papel tá caro, o livro já está em pré-venda.
Essa pré-venda é uma espécie de financiamento coletivo, em que vocês compram o livro agora e nos ajudam a produzi-lo. Ele sai no primeiro semestre do ano que vem e é um trabalho que eu particularmente gosto muito (e eu nunca gosto do que escrevo). Quem estiver interessado, pode comprar aqui! (apoie sua escritora local!!!)
Isadora, onde posso assistir o filme? Estou numa fase tão saudosista, revisitando memórias... seu texto falou comigo e o enredo do filme me chamou a atenção. Obrigada. 😘