Eu sei que hoje não é quarta, mas fim de semana passada eu tive uma gripe horrenda e tinha uns freelas pra entregar e é isso né, três dias atrasada, mas tá tudo bem, segue o jogo
Dez anos atrás, quando Girls estreou na televisão, eu corri para ver. Eu já tinha visto Tiny Furniture, o primeiro filme da Lena Dunham, e adorado e tudo no trailer parecia feito para mim. Eu acompanhei todas as temporadas, amei e odiei a série e ano passado, quando todos os textos sobre “os dez anos de Girls” começaram a aparecer eu decidi rever tudo.
Eu já escrevi para os assinantes pagos sobre essa revisita, sobre como eu reavaliei a série distante das think pieces da época e como ela me fez pensar sobre ser jovem e o que é que eu sentia tanta falta mesmo em ter 24 anos. Mas desde então, eu tenho pensado muito na personagem da Jessa e na minha identificação com ela e em tudo que o tempo me disse sobre isso.
Quando eu comecei a ver Girls, algo nela me atraiu e me pareceu familiar, mas também parecia egocêntrico que daquelas quatro personagens eu decidisse que a mais parecida comigo era a mais bonita e glamourosa, mesmo que insuportável. Todas elas eram insuportáveis, achar que você era a Jessa era só achar que sua insuportabilidade vinha num pacote mais bonito. Eu não queria ser essa pessoa, a que acha que seu jeito peculiar de ser insuportável é mais charmoso que os outros, e elaborar uma identificação com alguém com o rosto da Jemima Kirke só me pareceu uma projeção de quem eu queria ser, não de quem eu era, então eu fingi não ter notado isso. A Hannah era a escritora, a Hannah serviria como projeção das minhas questões. Claro, ela é a pior de todas, mas esse era um traço redentor, não? Me aceitar como a pior delas e não como alguém com algum traço positivo.
Dez anos se passaram, minha carreira de escritora andou tão aos tropeços quanto as da Hannah (que com certeza teria um substack hoje em dia) e aos 33 eu liguei o primeiro episódio de Girls de novo. E lá estava ela, aquela personagem com a estética que diz “eu sou boêmia e intelectual", com os cigarros, o sotaque indecifrável, sempre chegando de Paris e forçando os outros a prestarem atenção nela porque ela está sempre no meio de derrubar tudo em volta e fazer os outros pegarem os vasos antes de cair. Sempre atrasada para o próprio aborto. Sempre criando algum tipo de caos que impede as coisas de seguirem o rumo que deveriam. Eu conhecia aquela personagem. Eu era aquela personagem.
Mas a coisa de ficar mais velha é que me permite ver o glamour, o show, a performance toda como um disfarce, mais do que um sinal de que você é uma escolhida estética dos deuses. Ser essa personagem não deixava de ser uma projeção de quem eu queria ser, mas para ela, como para mim, quem eu queria ser sempre foi uma maneira de proteger quem eu era de verdade.
Tem um episódio de Girls que me dói mais que todos os outros. Do meio para o final da segunda temporada, a Hannah acompanha a Jessa em uma visita aos pais dela no norte do estado. Antes delas sequer encontrarem com eles, quando elas estão na estação de trem a Hannah diz que ninguém estar lá para buscá-las é seu maior pesadelo, que desde pequena ela temia ser a última na festinha ou na escola. A Jessa só dá de ombros e resolve a questão, muito pouco surpresa. E aí está tudo que você precisa saber sobre os pais dela.
A Hannah tem medo de um abandono que no fundo ela nunca experimentou, a Jessa só levanta a saia e atravessa o trilho do trem porque é mais um dia na vida dela. Quando o pai dela tenta se justificar por uma série de coisas, tudo que ela diz é “eu sou a filha". Eu sei que parte do trabalho de ser adulto é ver seus pais como pessoas normais e cheias de falha, mas o que a Jessa diz ali é que essa não foi uma descoberta da vida adulta para ela. Não foi só quando as coisas ficaram difíceis que ela percebeu que alguma vez ia cair e seus pais não iam pegar. Eles nunca pegaram para começar.
Eu entendo isso. E mais do que tudo, eu entendo nos meus ossos e me sinto abraçada como nunca me senti por uma peça de ficção, quando ela diz para a Hannah “não finge que seus pais são meus pais". De todas as coisas que ter pais ruins te deixa sem na vida, a coisa que me parece mais presente é a incapacidade de comunicação com todo mundo que não teve pais ruins. O que me levou uma vida inteira para entender é que a experiência de ter uma boa família é tal que ela te protege de sequer contemplar o tipo de vazio que eu, a Jessa, vários outros, estamos falando. Vocês não podem saber, eu não posso te explicar, nós vamos ter que viver no descompasso dessa experiência que é só minha (bom, não só minha, mas vocês entenderam a linha de raciocínio). Quando ela pede à Hannah, que teve pais imperfeitos, mas “fazendo seu melhor", para ela não fingir que a experiência delas é em algum grau comparável, eu decidi aceitar essa personagem pelo que ela poderia revelar de mim para mim mesma.
Porque uma coisa que rever Girls fora do discurso da época te dá é uma possibilidade de avaliar melhor a qualidade do texto e a sutileza da construção das personagens. Cada vez que a mãe da Marnie aparece, eu entendia ela um pouco mais e esse episódio te oferece todos os buracos e camadas que tornam a Jessa tão insuportável, mas talvez a mais perdoável de todas elas.
Porque quando ela está na clínica de reabilitação fugindo como o diabo da cruz da terapia em grupo eu reconheci todos os momentos em que eu não queria contar uma história que fazia os outros olharem como “pobre de você". Quando você diz em voz alta “nem os meus pais me amaram” aquilo te transforma em uma ferida horrenda e aberta caminhando pelo mundo e ninguém quer ser visto como a versão emocional de um corte cheio de pus.
É melhor ser vista como uma sedutora glamourosa, como uma cidadã do mundo e um espírito livre. É melhor ser aventureira e vagabunda do que alguém que tira uma onda maior do que o aceitável da validação masculina (ou feminina, ou tanto faz). É melhor ser conhecida por nunca sair de casa desarrumada, nunca sem um batom vermelho ou o cabelo arrumado do que dizer que existe um medo inexprimível de ser vista como uma bagunça, uma coitada, alguém fora do controle.
Vejam, porque existe nesse texto, e na maneira geral como eu escrevo um truque de ilusionismo. Eu escrevo como quem diz “olhem um raio-x da minha alma, vejam as coisas mais feias que aconteceram comigo, olhem para toda essa vulnerabilidade e transparência". Mas escrever não é ser olhado, é olhar. Quando eu escrevo com esse aparente desprendimento da minha própria privacidade o que eu estou fazendo é saindo de mim mesma, do lugar de vista, para um lugar de olhada. Eu olho para mim, organizo, reempacoto e ofereço para vocês em uma narrativa que faz sentido, que me conforta. Escrever sobre si mesma é escrever a si mesma, é inventar sem parar a própria história.
A Annie Ernaux fala muito disso, de como ela escreve a vida para segurá-la na mão, para ter o controle. Escrever é ordenar. E existe aqui um outro ensaio que não vem ao caso hoje sobre as implicações de ser uma mulher que escreve assim quando a história da literatura sempre colocou as mulheres no lugar de olhada. O que acontece quando agora sou eu que olho? E quando eu ao mesmo tempo olho e sou olhada? Quando eu olho para mim mesma? Eu reconquisto minha autonomia ou eu sirvo um clichê de escritora doida que o universo quer engolir?
Eu penso na Taylor Swift, talvez a artista mais obsessivamente controladora que existe, e que ao mesmo tempo escreve letras confessionais. Sim, claro, a exibição da intimidade. Mas qual intimidade? Quando eu transformo uma relação fracassada num conto, quantas vezes eu faço isso para retomar o controle que ser deixada me tirou?
Rever Girls aos 30 e poucos anos me permitiu aceitar que eu me via naquela personagem, mas também não só porque ela era interessante, mas porque ela era insuportável de um jeito não menos insuportável. É curiosa a libertação que peças de ficção podem causar. Eu sou contra aquele discurso fácil de que a ficção boa é aquela que causa identificação até porque quando falamos disso estamos falando de uma identificação em nível social, como se o que eu precisasse fosse ver outras personagens judias e isso vai eu fazer me sentir vista.
Entendo isso, não diminuo a importância, ainda mais no audiovisual muito comercial. Mas principalmente na literatura, eu acho que mais libertadora é uma certa identificação das feridas e processos mentais, de “essa pessoa sente/sofre/se angustia” como eu, eu não sou a única. Eu não sou a única reescrevendo minha história constantemente porque a versão verdadeira dela me expõe, nem a única para quem a beleza é a defesa mais necessária.
É engraçado que numa série com uma escritora que justamente escreve de forma confessional e exibicionista, a personagem que me fez pensar sobre escrever de forma confessional e exibicionista foi outra. Mas é isso a ficção pra vocês.
O que acontece quando agora sou eu que olho?
Adorei o texto! Pode compartilhar o artigo que você comentou? Fiquei super curiosa aqui...