"Qual é a de homens e O Poderoso Chefão?"
Um ensaio sobre o gênio, os filmes de três horas e masculinidade
Minha opinião cinematográfica mais famosa, que atualmente a cada seis meses eu volto ao twitter para reforçar, é que eu sou uma enorme hater de filmes longos e acredito que (exceto pelo Tarkovsky, cuja proposta é outra, a gente vai chegar lá) não existe um único filme na história do cinema que precise de três horas. Talvez exista meia dúzia que sustentam três horas. Nenhum passa disso e segue excelente.
Sempre que eu faço esse ponto na internet, algum homem (nem todo homem, mas sempre um homem) cita O Poderoso Chefão nas minhas mentions como se só o nome do filme fosse um argumento em si. O Poderoso Chefão, essa obra-prima das obras primas, tem três horas e precisa de suas três horas e portanto eu estou errada. As vezes, quando eu estou disposta, eu argumento que o primeiro é um dos poucos filmes que sustenta suas três horas e o faz porque é basicamente dois filmes em um só e ainda assim, uns 15 minutos a menos faria horrores por ele. O segundo não precisava nem de meia hora a menos, mas de uma hora inteira a menos. Nesse ponto em geral o homem abandona a discussão, provavelmente certo de minha limitação intelectual.
Meu ponto com essa newsletter não é argumentar em que pontos eu cortaria O Poderoso Chefão II para que ele fosse um filme ótimo, mas analisar essa figura: o homem que sente o impulso de defender as três horas desse filme específico toda vez que eu falo mal não de nenhum outro aspecto do filme, mas de sua duração. Alguns elementos são centrais aqui: O Poderoso Chefão em si; o fato de que é sempre um homem que se ofende com a minha opinião; o fato de que a discordância dele sempre vem em um tom de ofensa pessoal.
Meu ponto com essa newsletter é pensar a relação entre um certo excesso representado por um tipo de cinema e a masculinidade. E sim, eu obviamente pensei em várias piadas comparando filme de três horas e tamanho de pinto, eu sou quem eu sou.
Contudo, piadas com pintos a parte, eu tenho pensado muito na relação entre a forma do épico, representada atualmente por esses filmes muito longos, masculinidade e processo criativo. Essas ideias não são novas para mim e elas vêm tomando forma mais ou menos desde que eu vi Oppenheimer, em julho, mas o impulso de escrever aconteceu enquanto eu via Assassinos da Lua das Flores e sentia um tédio brutal e agonizante durante as duas horas centrais do filme.
Assassinos da Lua das Flores é um filme de três horas e meia. Em termos de qualidade é certamente um filme que existe. As atuações são ótimas, a direção de arte é primorosa, a primeira uma hora é cativante, o final é excelente. Ali no meio tem duas horas que não servem para avançar a história, não servem para tornar esse mundo vivo e absolutamente não servem para dar qualquer vida interior à personagem feminina. Existem duas versões melhores desse filme: a de uma hora e meia, que é um filme centrado no assassinato e em formato de true crime, de preferência dirigido pelo David Fincher; e a de dez horas, que é uma série em que esse mundo respira, ganha solidez e contorno e em que as mulheres tão centrais para essa história se tornam algo mais do que cascas em roupas bonitas.
Eu não odiei o filme de forma objetiva, eu não achei que ele é ruim exatamente e ele não me ofendeu por falta de qualidade. Mas ali pela segunda hora eu fui tomada por uma onda de raiva e indignação que vinha de outro lugar e é um pouco isso que eu investigo nesse texto.
Primeiro porque todo filme, toda história, toda narrativa, é um recorte. Ninguém vai contar todas as histórias de todos os personagens. Eu entendo isso e eu nem sempre me incomodo com quando esse recorte exclui mulheres. Todo mundo sabe que meu gosto literário é algo tipo seu pior namorado da adolescência e eu tendo a defender cineastas que excluem totalmente mulheres de suas obras quando o interesse deles é masculinidade. Eu não preciso ver mulheres, eu não preciso saber de mulheres, a masculinidade me interessa muitíssimo, me conte histórias de homens.
Acontece que Assassinos da Lua das Flores não é uma história de homens. É uma história de homens que orbitam uma família de cinco mulheres e as relações dessas cinco mulheres entre elas e com o mundo é central para como esses homens as orbitam. Elas não poderiam ser outras mulheres e essa história seguir como segue. Elas não poderiam ter outras dinâmicas entre si e essa história seguir como segue. Elas determinam uma série de acontecimentos e desenvolvimento de personagem. Exceto que elas mesmas não ganham nenhum.
É significativo que boa parte da diferenciação entre essas mulheres e das mudanças nelas seja comunicado por figurino e direção de arte, duas funções tradicionalmente femininas no cinema (nesse filme a figurinista é mulher, mas até o diretor de arte é homem) e também que em um filme de três horas e meia o recorte escolhido seja o de deixar a subjetividade delas de fora.
Eu estou batendo na tecla da duração porque me parece um raciocínio lógico: as histórias são recortes porque não há espaço para se contar todas as ramificações possíveis, entretanto, em um filme de três horas e meia há espaço para mais coisa do que em um de duas horas. Assim como nas duas mil páginas de Guerra e Paz há espaço para muito mais que nas 200 de Nada de Novo no Front. E ainda assim, curiosamente quase todos os filmes com mais de duas horas de grandes Autores do cinema fazem a escolha de recortar fora as histórias de mulheres.
Eu sei que algum homem vai mandar um email de resposta para essa newsletter com um filme que contradiz isso (Titanic contradiz isso, eu já vou facilitar para você) como se a existência de uma excessão minasse o que eu estou tratando como tendência coletiva. Eu amo isso no homem que te responde na internet, ele está sempre muito crente de que se existe uma exceção que seja ao seu argumento, então ele não se sustenta. É claro que existem filmes longos com mulheres relevantes, Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles é um filme de três horas e vinte sobre uma mulher dirigido por uma mulher, mas há algo na atual onda de filmes muito longos que são dirigidos por homens e falam de homens ao mesmo tempo que desviam os olhos da crise da masculinidade que grita como um tema dentro deles.
Em Assassino da Lua das Flores há uma série de confluências temáticas nesse sentido: os indígenas — vistos por aqueles homens brancos como inferiores, doentios, menos viris — possuem a riqueza que eles creem ser de seu direito. As mulheres controlam a chave dessa riqueza, uma vez que podem se casar com os homens brancos. Toda a história é uma história de homens que se sentem roubados e diminuídos contada em uma forma que não investiga isso por um momento.
Acho uma pena, uma vez que o Scorcese costumava ser um bom analista da masculinidade em crise, mas não acho estranho. O Scorcese interessado em eviscerar a dignidade masculina era o de Taxi Driver, um filme de menos de duas horas, orçamento apertado e escrito pelo Paul Schrader um homem que não é assim exatamente hétero. É um filme feito na constrição, no trabalho para que tudo coubesse em uma forma um tanto minimalista e eu acho que existe uma relação aqui. Não exatamente entre minimalismo e possiblidade de criticar a masculinidade, mas entre o trabalho braçal envolvido em uma obra, nossas ideias de gênio e a masculinidade.
Explico: a ideia tradicional de gênio é aquela do artista iluminado, cujas ideias geniais vêm espontaneamente e só precisam ser colocadas no papel. Ele é um preferido das musas (sempre mulheres as musas, claro) e portanto suas obras lhe vem prontas, elas são geniais porque passaram por ele, o gênio. Nessa ideia o processo artístico é quase escrita automática, iluminação ou possessão, toda ideia brotada nessa mente genial é digna de chegar ao público.
É essa ideia que o homem nas minhas mentions defende quando defende O Poderoso Chefão. O filme é genial, o Coppola é um gênio e portanto ele precisa ser perfeito como está, retirar coisas dele não o tornaria melhor, apenas castraria esse criador genial.
Uma outra visão do processo artístico, uma menos ligada a ideia de masculinidade e expressa com muito mais conforto por artistas mulheres, entende a arte como lapidação e trabalho quase braçal. A ideia surge, mas a arte é técnica, é esforço, é estar ali no dia após dia tirando coisas, acrescentando coisas, lixando, polindo.
Quais dessas ideias leva mais a filmes de três horas e meia?
Eu não estou dizendo que alguns homens não enxerguem a arte como esse trabalho disciplinado (o Philip Roth de todas as pessoas via assim), mas que a imagem popular do gênio não é uma mulher. Mulheres não são geniais, elas são no máximo esforçadas. Portanto, uma artista mulher não se formou em um mundo que lhe diz que toda ideia que nasce de sua cabeça é brilhante e merece ir parar no produto final, um artista homem sim.
Essa ideia vai de encontro ao Tarkovsky também e o motivo pelo qual eu abro a exceção dos filmes longos para ele: em Esculpir o Tempo, ele fala do cinema exatamente como o título indica. O tempo é um bloco amorfo, tal qual um mármore de Carrara, e fazer um filme é retirar partes dele até revelar a forma ali dentro, da mesma forma que Michelangelo revela o Davi. Isso é revolucionário e central: fazer um filme não é fabricar tempo, mas lapidá-lo. O tempo existe, um filme o recorta. É exatamente por isso que eu, mesmo sem o quadro de análise feminista desse texto, sou tão dura com filmes longos, porque é como se eles não escavassem o tempo o suficiente para revelar a forma lá dentro e também por isso que eu perdoo quando o Tarkovsky faz. Porque ele não está em busca do Davi, da obra-prima, da narrativa perfeita, o que ele quer é criar essa experiência da escultura no tempo, que seu expectador navegue por partes trabalhadas e não do mesmo bloco de mármore temporal. Um filme do Tarkovsky é como uma escultura pela metade, uma mão que brota de um grande bloco de pedra perfeitamente detalhada e um corpo que se funde com o material bruto. É essa incompletude o ponto. Essa não finalização. Se tivesse duas horas, Andrei Rublev seria uma escultura perfeita, não tendo ela é um meio do caminho que fala de outras coisas.
Mas um filme do Scorcese não é isso. O Poderoso Chefão não é isso. E o homem que vem defender essas escolhas não acha que o que torna esses filmes especiais é sua falta de lapidação. Ele os acha perfeitos. Perfeitos porque foram feitos por homens geniais. E os homens geniais que o fizeram, e se acham geniais, veem o livre correr de suas ideias como válido, digno, útil. Que nesse livre correr não passe a ideia de dar vida interior a uma mulher é apenas um detalhe.
Me sinto obrigada a dizer que eu TENTEI colocar uma imagem da piada com O Poderoso Chefão em Barbie, mas a internet falhou em me entregar isso. Estou indo agora mesmo no SAC da internet reclamar.
Adorei essa sua perspectiva. Quando você falou das 2h ou 10h fiquei pensando também como cada formato tem uma 'versão canônica' e O artista das 3h e tanto se sente no direito de colocar a forma a seu serviço enquanto A artista trabalha com a forma que há. Mesmo que naquele caso esse 'serviço' não esteja cumprindo papel nenhum, exceção no caso do Tarkovsky que você citou.
Ótimo texto e apesar de gostar de O poderoso chefão admito que já há algum tempo tenho fugido de filmes com mais de duas horas e dedico especial ranço a filmes de três horas. E sim, Tarkovski é gênio!