As primeiras imagens de Houria (que ficou traduzido aqui como “Dançando no Silêncio", mas eu não gosto desse título porque sempre quero dizer “Dançando no Escuro", um filme que amo, mas que renderia um texto totalmente diferente), filme novo da Mounia Meddour, mostram a protagonista, a tal da Houria (interpretada pela Lyna Khoudri, que eu acho uma estrela) dançando o lago dos cisnes em uma laje com enormes fones de ouvido bluetooth na cabeça.
Eu identifico rapidamente, meu olhar treinado tanto pela faculdade de cinema quanto por 15 anos de ballet clássico, que os pés na sapatilha de ponta não são da atriz. A gente nunca a vê de corpo inteiro e embora ela seja uma dançarina competente, o que ela faz com os braços não justifica a técnica perfeita dos pés. Não me importa. A diretora faz da limitação um elemento criativo e cria no espectador desde o início o sentimento de fragmentação que é de certa forma o tema desse filme.
A Mounia Meddour é a mesma diretora de Papicha, um filme de alguns anos atrás a respeito de um grupo de meninas durante a guerra civil argelina que usa um desfile de moda como forma de expressão individual. Nele também a Lyna Khoudri faz uma garota especialmente talentosa que se torna líder de um grupo. É possível dizer que os dois filmes são variações do mesmo tema, repetição da mesma forma. Mas mais uma vez, eu não me importo. Porque mais uma vez, a limitação me parece virar projeto.
Papicha é um filme no qual eu penso muito porque eu não sou uma pessoa de chorar no cinema. Eu choro lendo livros, na privacidade da minha cama, mas no espaço público da sala de cinema junto de várias outras pessoas que supostamente estão sendo tocadas da mesma forma que eu, a coisa toda me parece tanto artificial quanto pornográfica. Eu sei que tem algo de errado comigo quando eu acho a ideia de chorar em público pornográfica, mas se você assina essa newsletter, você já sabe que essa não é a única coisa de errado comigo. Enfim. Eu não sou de chorar no cinema, pode acontecer as vezes, se a pessoa comigo for alguém íntimo, mas não é algo que eu faço com facilidade ou conforto.
(Um dia, nessa newsletter, talvez eu conte de como topei ir ver Interestelar com um cara que eu pegava eventualmente porque ele pagou os ingressos do Imax e foi uma experiência horrível porque eu só segurei o choro por mais ou menos uma hora e meia porque jamais que eu ia chorar na frente dessa pessoa que eu não conhecia de verdade, mas sabia que tinha bem mais problemas que eu)
Mas em Papicha eu chorei por mais ou menos uns 45 minutos da uma hora e quarenta e cinco do filme. E sinceramente, nem eu sei por que. Pode ser a história de amizade feminina, a comunidade e o afeto que aquelas garotas constroem e que em bate por eu ter sido alguém que também só encontrou afeto genuíno quando construiu essas comunidades. Pode ser que eu estivesse distraída em relação às ferramentas da narrativa cinematográfica e me deixei cair em armadilhas que normalmente não caio. Pode ter sido a ideia da arte como essa coisa que restaura a humanidade em tempos sombrios, uma vez que, como eu já disse aqui, eu acredito na nossa capacidade de fazer arte como aquilo que existe de divino do mundo. Pode ter sido tudo isso junto. Mas quanto mais eu penso nisso, e então quando eu vi Houria, eu concluí que em boa parte é a forma precisa pela qual a Mounia Meddour capta ser uma mulher brilhante enclausurada.
Eu falei que Papicha é um filme de alguns anos atrás, mas ele é de 2019, sendo exata. Em 2019 eu tinha acabado de voltar de um ano na Califórnia, estava (achava eu, acabou sendo dois) a um ano da defesa do meu doutorado e o Bolsonaro era presidente. Eu tinha conseguido todas as bolsas, ganhado todos os prêmios, conquistado todos os professores do meu departamento, morado em Berlim e em Los Angeles e impressionado pessoas nesses dois lugares. Eu tinha sido chamada de brilhante e promissora em eventos em Boston e Lisboa. E naquele momento tudo aquilo parecia para nada.
Eu não sou alguém com a mente teórica mais original do mundo e falar em público é algo que me desperta sentimentos de quase morte, o que quer dizer que eu não sou a acadêmica mais natural do mundo. Eu sou muito didática, mas minha linha de raciocínio e minha escrita natural são essa coisa caótica e serpenteante que vocês lêem aqui. Que vai e volta. Que joga associações e só la na frente entende como todas elas se alinham. Eu apresento em congressos sem ler e com uma aparente naturalidade que existe porque se eu fosse ler e se eu não tivesse ensaiado a ponto de parecer natural eu não ia dizer duas palavras na frente de uma sala. I've never been a natural all I do is try, try, try e quando a essa altura da vida tentar muito te levou bem longe, o baque de olhar para todo esse esforço e sentir que ele não vai servir para nada porque uma parcela absolutamente medíocre e ressentida da população decidiu que o PT não dava mais é suficiente pra te fazer parar de respirar.
Eu me desesperei com muita coisa ao longo dos quatro anos de governo Bolsonaro, muitas dessas coisas mais importantes do que eu mesma e a minha carreira, mas porque eu sou só humana, eu me permiti muitos desesperos pela coisa ambiciosa que eu sempre tinha sido e por tudo que eu tinha me feito passar em nome disso só para ter o tapete puxado debaixo de mim assim. Por um elogio gigantesco da burrice.
E Papicha é um filme sobre esse sentimento. Essas meninas brilhantes e cheias de ideias originais e vívidas, dispostas a trabalhar e criar coisas sufocadas por homens minúsculos. Eu gosto de como a Meddour olha para a guerra civil argelina por esse ângulo também. Séculos de colonização e rixas religiosas e tudo mais, mas no fundo, na vida das pessoas comuns, é um monte de homens minúsculos sufocando um país inteiro de mulheres.
Houria é sobre isso também. Desde o início do filme o sentimento de falta de saída está lá, afinal, para onde pode ir uma bailarina clássica na Argélia? Houria não parece querer ir embora, mas a melhor amiga dela lhe pergunta o tempo todo “o que tem aqui para nós?” O espectador já sabe que quase nada, mas quando esse quase nada se torna ainda menos a dimensão da falta de saída te engole.
Eu gosto mais de Papicha do que Houria porque sinto que as vezes nesse segundo filme os símbolos se tornam óbvios demais e a necessidade de mostrar a falta de alternativa para essas mulheres descamba a história para o melodramático. Por outro lado, as imagens dessa garota enclausurada contra o mar azul de Algiers são do tipo de sutileza poética que me fazem acreditar que um diretor é um autor. Talvez os dois filmes sejam repetitivos, nos dois a Lyna Khoudri faz uma garota com um carisma extraordinário e um talento acima da média que acaba presa nas suas circunstâncias. Mas eu não me importo, porque também essa repetição é o que torna cada um desses filmes mais fortes: elas querem sair, elas não podem, talvez essa diretora queira falar de outras coisas, mas ela também não pode.
No dia 03/06 acontece nosso clube do livro sobre Middlesex, depois de muito me bater com como combinar horário e ter outras discussões, eu finalmente tive a brilhante ideia de criar um grupo no Telegram (as vezes eu sou lerda, perdão)
O encontro custa 20 reais e quem quiser participar pode entrar direto no grupo clicando aqui e aí eu passo todas as informações de pagamento e tal
Ahhhhh, quero muito assistir ambos! ♥️ Inclusive, lendo seu texto, lembrei das vezes em que tive crises de choro no cinema. Que constrangedor, misericórdia! 😅