Algumas semanas atrás, quando estreou Você Não Tá Convidada Para o Meu Bat-Mitzvah parecia que uma revolução tinha acontecido entre algumas das minhas alunas. Elas queriam escrever sobre o filme em trabalhos, enfiar em apresentações e todos os dias uma adolescente afobada me perguntava se eu já tinha visto com aquele tom de alguém que te conta algo que vai mudar a sua vida.
Eu demorei um pouco para ver porque eu não sou uma adolescente e a vida, mas no minuto que eu vi eu entendi. Era a primeira vez que eu via uma representação desse rito de passagem muito específico, que tende a vir um pouco antes dos ritos de passagem normalmente representados e que se equilibra em um mistura esquisita entre religião e metáfora. Porque o judaísmo é e não é uma religião, porque é uma religião, mas você pode não acreditar em nada e ainda fazer parte da comunidade, porque é também um povo e uma nação e um monte de coisas complicadas que eu ganho a vida tentando discutir com pessoinhas de 14 anos, um bat/bar mitzvah é ao mesmo tempo uma cerimônia de maturidade religiosa e de maturidade social. Você se torna um adulto aos olhos da religião o que quer dizer que você se torna um adulto aos olhos da sua comunidade.
Claro, ninguém espera de verdade que crianças de 13 anos sejam adultas (eu sei bem), mas existe uma pessoalidade que se conquista na adolescência. Um adolescente é alguém que nós tratamos como ciente de suas escolhas, como capaz de fazer escolhas (ainda que burras), como alguém que ainda não tem a experiência para fazer boas escolhas, mas que já possui o espaço mental para contemplar a ideia de escolhas e consequências. É um horror e uma delícia trabalhar com gente no início da adolescência porque a forma como eles estão pegos exatamente aí, entre serem responsáveis pelo que fazem, saberem disso e não conseguirem fazer a boa escolha é fascinante. Eu sempre digo que detestei mais do que todas as coisas na minha vida ser criança e prefiro me jogar de um prédio a passar por isso de novo (juro), mas eu não odiei tanto ser adolescente e é uma fase da vida para qual, enquanto escritora, eu volto bastante. Enquanto adolescente eu era um pouco mais livre. Enquanto adolescente eu pelo menos já era uma pessoa.
O que eu gostei no filme, é que embora ele fale das formas muito específicas pelas quais encenamos esse ritual de passagem específico, ele também pensa na ideia do ritual como metáfora, como algo que nós podemos imbuir de um significado pessoal. No filme, a questão é bem menos a cerimônia religiosa e mais a relação entre as duas amigas, a forma como a Stacy se torna adulta quando compreende que relações são uma via de mão dupla. E é aqui que mais uma vez eu finjo que estou fazendo uma resenha para fazer um ensaio e sair falando do que eu estou afim de falar.
Isso porque eu vi o filme dois dias antes do rosh-hashaná, o ano novo judaico, e eu estava pensando exatamente nos rituais que nós mesmos construímos.
Eu estou em um lugar muito esquisito da prática religiosa. Meus amigos ateus e céticos me diriam muito crente, meu (único?) amigo religioso me acha uma ateia. Eu acredito nas coisas de uma forma metafórica que costuma ter menos a ver com a coisa em si e mais com manter o mundo como um lugar de mistério, de guardar em mim a impossibilidade de compreender tudo. Eu não quero explicar todas as coisas e tudo que é místico e religioso fala exatamente disso, dos espaços da existência que nós nunca poderemos compreender. Eu não quero acreditar em uma transcendência porque eu quero que um sentido me seja dado para o mundo, eu quero acreditar porque eu quero guardar o espaço em que as coisas não fazem sentido. A possibilidade da mágica.
O que isso quer dizer na prática é que eu mando memes de astrologia para as minhas amigas um pouco pela piada, peço um jogo de tarô para minha bruxa particular sempre que me sinto perdida e estou constantemente tentando encontrar um jeito de comemorar os feriados judaicos de uma maneira que faça sentido.
Eu vou ser bem honesta e dizer que eu escolho meus feriados de acordo com meu próprio sistema de crenças particular e não com a hierarquia religiosa. Por exemplo, segunda que vem é yom kippur, o dia mais sagrado do calendário judaico oficial, um feriado solene de jejum, reflexão, sinagoga e perdão. Eu notei que ganharia um dia de folga do trabalho e mandei uma mensagem para uma amiga perguntando se ela queria almoçar.
Não é que eu não sinta respeito pelo feriado em si, mas a proposta dele não faz sentido para mim. Há coisas que eu acho bonitas, como a ideia de que Deus não pode te perdoar pelos pecados que você cometeu contra outras pessoas e de que é preciso reparar o mundo um pouco para pedir esse perdão. Teve um ano em que eu fui assistir a Sagração da Primavera exatamente na noite de yom kippur e achei perfeito. Eu poderia, é claro, deixar de lado a parte do perdão divino e pensar em um dia de perdão particular, em refletir e ser uma pessoa melhor. Mas nada disso me interessa e então eu sigo em frente.
Por outro lado, o ano novo judaico me interessa profundamente. Anos-novos sempre me interessam e esse, que vem sempre colado no meu aniversário (e portanto ano-novo pessoal) guarda uma aura. Uma vez, muito tempo atrás, quando eu era criança e perguntei por que o calendário judaico tinha tão mais anos, me explicaram que o rosh-hashaná é o aniversário da criação. Eu acho isso bonito até hoje, pensar em uma celebração de que o mundo todo durou mais um ano, mais uma volta, tudo isso que a gente chama de criação e eu não acho que foi criado, mas nem por isso é menos mágico. O mundo, a existência de estrelas e lontras e ipês roxos e água do mar e Proust, é uma impossibilidade completa e eu estou pronta para tirar um dia do ano para admirar isso, o quão improvável, encantadora e frágil é toda a realidade.
O rosh-hashaná também vem, aqui no Brasil, na virada para a primavera. Eu sei que São Paulo não tem estações como sei lá, Nova York e nós estamos passando por 33 graus quando ainda é supostamente inverno, mas existe sim um ritmo de estações muito marcado nessa cidade. Em março aquela luz de outono dourada e baixa que todo mundo acha tão bonita, em setembro a sequência de ipês brancos, roxos, amarelos, eu nunca sei bem. As cerejeiras que florem na USP. Os dias que se alongam.
A semana do rosh-hashaná foi a primeira em que eu notei a mudança da luz. Eu sai do trabalho um dia as 17h e vi que ainda era dia de verdade, que já havia começado a escurecer depois das 18h. Eu me lembrei então de uma amiga que uma vez, morando no hemisfério norte, escreveu que o chanuká (que acontece em dezembro) era quando, no momento mais escuro do ano, nós convidamos a luz a entrar. Essa frase ficou comigo desde então, a ideia singela e simbólica me parecendo ao mesmo tempo poética e precisa. Nessa semana agora, quando fazia 33 graus as duas da tarde, eu achei os alunos mais inquietos, mais preguiçosos e notei que eu também estava assim. Nós abrimos as janelas da sala e concluímos que o calor era tanto que instintivamente nós todos achávamos que o verão estava chegando, que o ano acabava, que a gente já poderia estar largando mão das nossas obrigações acadêmicas como se não fosse só o segundo mês de aula.
O que me cativa em pensar nessas mudanças de luz, nos feriados religiosos como marcados por elas e na forma como uma onda de calor torna o trabalho impossível para gente acostumada a tirar férias de verão é que tudo isso revela o quanto nós não somos seres totalmente dominados pela lógica capitalista do trabalho. Ou pelo menos o como nós inserimos na lógica capitalista do trabalho uma sensibilidade ao mundo à nossa volta, as sutilezas do real, aos detalhes do que poderia ser chamado de criação. Quando se discute horário de verão, um argumento comum é que os dias mais longos ajudam no faturamento de bares e restaurantes. Sim, porque se saímos do trabalho e ainda há luz, todo mundo tem a sensação de que ainda há vida a ser vivida, quando a noite precoce nos diz que é hora de ir para a casa. É óbvio, pequeno, a serviço de uma discussão econômica e ainda assim símbolo de nosso laço inquebrável com o mundo concreto, as coisas que existem, a realidade não fabricada.
O rosh-hashaná cair quando eu acabei de fazer aniversário, e portanto já estou pensando nas estações do meu corpo, e a luz começa a mudar, me fazendo pensar nas estações do mundo, o torna meu feriado preferido, o que não quer dizer que nessa noite eu vá à sinagoga, ou a um jantar de família ou a qualquer das coisas que deveria ser feita. Em parte, eu não vou à sinagoga porque nunca vou, embora eu viva dizendo que as vezes eu até gostaria de ir (e é verdade), em parte porque ir nessa época requer um planejamento que eu só não tenho. Eu não vou a um jantar de família porque eu não tenho família, como vocês leitores já estão cansados de saber. E aí todo ano eu me pego diante de como criar um ritual (viram? fez sentido eu ter começado falando do filme).
Ano passado eu tentei dar um jantar com meus amigos, nenhum deles judeus. Deu errado e eu fiquei muito ferida por isso, sentindo que em um dia que eu queria celebrar a minha comunidade, qualquer que ela fosse, eu havia descoberto que não tinha comunidade nenhuma. Essa percepção não estava errada, mas as coisas mudaram do ano passado para esse. Por outro lado, eu tinha acabado de dar uma festa enorme e tanto não tinha a energia para outra, quanto eu não sentia a necessidade de reunir minha comunidade, uma vez que eu tinha acabado de experimentá-la. A sensação que ano passado eu queria, agora não fazia tanto sentido. Então eu deixei o tempo passar e cheguei ao dia sem planos.
No fim, eu fiz uma aula de yoga, fui para casa, pedi comida e assisti Annie Hall ~sob o efeito de substâncias~. No dia seguinte eu escrevi sobre as estações, a luz, os marcadores engraçados de uma identidade e sobre ter tirado o tempo para avaliar a vida que eu fiz para mim. Eu pensei muito em como toda vez que eu encontro um certo amigo meu ele tenta me convencer que a única coisa que eu deveria fazer enquanto judia é abluções e eu fico entre achar que ele só está sendo ridículo e que a coisa totalmente tem um ponto. Eu fiz cruzadinhas do New York Times ouvindo um disco do Arcade Fire. Eu decidi escrever essa newsletter. Eu achei que fez todo sentido.
“This book is called "Blue Nights" because at the time I began it I found my mind turning increasingly to illness, to the end of promise, the dwindling of the days,the inevitability of the fading, the dying of the brightness. Blue nights are the opposite of the dying of the brightness, but they are also its warning.”
― Joan Didion, Blue Nights
Não assisti o filme (ainda) e agora estou instigada. A forma que você chegou em um outro assunto, refletiu e conectou tudo foi genial. Acredito que toda essa questão de espiritualidade, contemplação da vida e o que ela possui (ou não) no oculto não precisa – nem deve – ser limitada, classificada, mas aceitada e incentivada. Não sei se traz um sentido, mas deixa a existência menos pacata, menos bege.
Amiga, gostei TANTO dessa newsletter!! Curti muito todas as interpretações e comentários sobre os diferentes rituais. Essa é uma coisa que penso com alguma frequência, mas com uma visão muito diferente, porque cresci em meio a uma família com religiões muito variadas, mas as pessoas mais próximas a mim sempre foram agnósticas sincretistas ou atéias. E, na real, foi essa multiplicidade de visões e práticas que sempre me fez questionar por que certos rituais existem.
Não sei se já conversamos disso, mas me considero atéia e tenho práticas e rituais pessoais que muita gente lê como espiritualizado, então entendo demais esse seu momento em que religiosos te lêem como atéia e ateus te lêem como espiritualizada kk.
Mas tudo isso é só pra dizer que todas essas considerações me lembraram muito uma das minhas coisas preferidas sobre o carnaval, que é que, apesar de ser uma data móvel, ele sempre acontece na temporada de peixes! E, pra mim, isso faz muito sentido e vejo como aproximação de duas lógicas não científicas diferentes, porque tanto o carnaval brasileiro quanto o signo de peixes são sobre se perder, desconectar da realidade. Peixes tem muito a ver com inspiração, outros mundos, é uma fantasia. E o que fazemos no carnaval é literalmente se fantasiar. O carnaval é uma fantasia, um sonho, um momento desconectado do tempo-espaço. É quando a gente transcende a realidade e a consciência seja com álcool e outras drogas, seja simplesmente com a alegria. A maioria das músicas de carnaval são sobre um amor passageiro; algo efêmero mas que vai sempre estar em um sonho de amor. E todas as marchinhas são sobre pura felicidade, o momento que você esquece tudo e só celebra a existência em si. O carnaval é esse momento em que a gente invade todas as ruas da cidade pra esquecer as dores e celebrar a vida e os sonhos e todos os nossos prazeres. E, tipo, essa é simplesmente a coisa mais pisciana possível kkkkkk
Também acho incrível que a temporada pisciana é a quando se fecha o ano astral. Então acaba que o carnaval é uma espécie de ano novo, nesse sentido. O que só deixa ainda mais especial quando a gente fala que o ano só começa depois do carnaval, porque astrologicamente falando, É VERDADE!!
Enfim!!! Achei que você, como carnavalesca, gostaria também dessa brisa.