Eu peguei um livro da Louise Glück por acaso, como eu faço às vezes. Eu tinha o ebook de uma parceria com a editora, estou tentando ler mais variado do que só ficção contemporânea escrita por mulheres descompensadas e eu sinto uma vaga obrigação de saber comentar gente que ganhou o Nobel, então eu abri (metaforicamente? digitalmente?) um livro de poemas pela primeira vez em anos.
Eu tenho essa relação estranha com poesia, em que normalmente eu só não leio, mas aí eu tenho tatuado nas minhas costas um verso de Lady Lazarus e eu entendo completamente a Patti Smith ter comprado a casa do Rimbaud. Em Roma, eu toquei escondido todos os móveis do quarto do Keats enquanto um homem que não entendia (mas também não questionou) o que eu estava fazendo ficou de guarda na porta.
Então, eu só não leio. E de repente eu sou tão comovida por um verso que preciso dele na minha pele. A Louise Glück foi um pouco assim. Eu não sabia o que estava fazendo ali e então tinha sido atravessada.
Mais precisamente, eu fui atravessada por um poema chamado Perséfone, A Andarilha. O livro todo onde ele está (Averno, mas a coletânea que eu li tem mais dois) tem uma imagética de mitologia grega, Mediterrâneo, Averno é um lago perto de Nápoles que fica em uma cratera e que os romanos acreditavam ser a entrada para o submundo. Eu procurei no mapa para saber se eu já tinha visto, nessa viagem para a Itália, mas ele fica do lado oposto de Pompeia e também na direção oposta de onde eu vim.
Anos atrás, um ex me mandou uma mensagem contando que tinha visitado uma entrada para o inferno em algum lugar da Ásia Central. Ele tinha ficado profundamente assombrado, mas eu estava magoada e ele trabalhava no mercado financeiro, então eu só não dei atenção. Agora, eu queria um pouco lembrar o que alguém pensa quando olha na cara de uma entrada para o inferno. Mesmo alguém que não tem as mesmas palavras que eu.
Enfim, Perséfone é uma história que eu conheço. Ela é filha de Ceres, deusa da colheita e é raptada por Hades, senhor do inferno. Louca de dor, sua mãe transforma a terra em um lugar arrasado, frio e estéril até descobrir onde sua filha está. Quando descobre, ela a exige de volta. Eu até devolveria, Hades diz, mas acontece que ela comeu algumas sementes de romã e você sabe, todo mundo sabe, ninguém pode deixar o inferno depois de ter comido alguma coisa por lá. Vamos fazer um trato, ele continua, ela passa nove meses do ano com você e três aqui sendo minha esposa. Ceres não tem escolha exceto aceitar, mas ela tem a escolha de seguir transformando a terra em algo frio e sem vida por três meses do ano.
Eu conheço essa história porque fui uma criança mitologia grega, mas também porque na Galleria Borghese tem uma escultura chamada O Rapto de Prosérpina. Nomes diferentes, mesma mulher. Nessa escultura, um homem ergue do chão uma mulher baixa, mas não magra. Ele tem uma mão em sua cintura e outra na sua coxa esquerda. A mão da cintura, apesar do nome da escultura e da cena, parece terna, parece o toque de um amante. A mão da coxa afunda na carne, você vê a pele que cede, as pequenas crateras, imagina as bolinhas roxas que esses dedos vão deixar depois.
Eu estive em Roma quatro vezes, a primeira ainda era criança, e em todas eu me plantei diante dessa escultura, hipnotizada por essa mão que afunda na carne de mármore. Mais recentemente, toda vez que eu penso nessa imagem, eu penso também em uma fala de Hiroshima, Meu Amor: le fer devenu vulnérable comme la chair. Então, essa mulher, mesmo quando de mármore, é macia, é algo em que você põe a mão e deixa sua marca.
Eu nunca tinha pensado, até encontrar esse poema de Glück, que na versão que eu conheço da história ninguém pergunta a Perséfone o que ela quer. Ela quer voltar para a superfície? Ou ela se afeiçoou de alguma maneira ao submundo? Ela quer Hades como marido? Ela quer passar nove meses de cada ano com sua mãe? Glück pergunta:
I am not certain I will
keep this word: is earth
"home”to Persephone? Is she at home, conceivably,
in the bed of the god? Is she
at home nowhere? Is she
a born wanderer, in other words
Ela persegue um pouco essa imagem, da mulher que não tem lar em lugar nenhum e faz sexo no inferno e então diz:
she has been a prisoner since she has been a daughter.
No mapa identitário da família nuclear, eu nunca fui nada além de uma filha. Eu não fui irmã, eu jamais serei mãe e eu recuso - repetida, teimosa, infantilmente - ser uma esposa. Mais precisamente, eu fui filha de uma mãe e só dela. Meu pai foi pai para outros filhos, não eu. Como a Perséfone do poema, eu não encontro lar em lugar nenhum e eu criei invernos com as minhas idas e vindas. Glück diz, algumas estrofes depois, que a filha - Perséfone, mas talvez qualquer filha - é só carne, algo a ser passado de um lado pro outro.
Meu relacionamento com minha mãe não é bom, e à medida que nossas vidas se acumulam, muitas vezes dá a impressão de piorar. Estamos presas num estreito canal de familiaridade, intensa, que nos prende uma à outra. Às vezes se passam anos seguidos de exaustão, em que ocorre uma espécie de abrandamento entre nós. Depois a raiva vem de novo à tona, quente e nítida, erótica em seu poder de exigir atenção
Afetos Ferozes, Vivian Gornick.
Eu amo, nessa passagem de Afetos Ferozes, o uso que Gornick faz da palavra erótica. Eu amo também o título do livro, a animalidade da palavra feroz. Na sequência desse parágrafo, ela conta que a mãe vive acusando a filha de detestá-la. Gornick não confirma. Ela também nunca nega.
A primeira vez que eu li esse livro, ele causou uma revolução em mim. Porque ele é a história da formação intelectual de uma mulher judia, mas também pela clareza com que ela delineia seu relacionamento com a mãe. O ódio, a violência e a incapacidade de se afastar. A mãe de Gornick é cruel muitas vezes e, ainda assim, você sente que se a autora a abandonasse isso seria ainda mais cruel.
Talvez Perséfone não queira voltar para casa, mas se ela não o faz, não há nada além de inverno.
É muito difícil contar para alguém que você nunca quer voltar para casa. A menos que sua mãe tenha te colocado na rua, feito passar fome, espancado, ou coisa assim, você sempre está em dívida nessa relação. Ela sempre teve um motivo, ela te pôs no mundo, ela te ama. Como se isso fosse a justificativa de qualquer coisa. Como se um homem que me amava não tivesse um dia me segurado com tanta força que meu pulso estalou. Quando ele chorou vendo meu braço enfaixado, eu o perdoei, mas não contei para ninguém porque sabia que nenhuma das minhas amigas o teria perdoado. Se minha mãe tivesse feito a mesma coisa, ninguém nunca teria me perdoado.
Eu gosto também daquela passagem em Ladybird quando a personagem pergunta se a mãe gosta dela. “Eu te amo", a mãe responde. É, ok, a filha concorda, mas você gosta de mim? Porque, você vê, as duas coisas não são a mesma coisa.
Em Frio O Bastante Para Nevar, a narradora leva a mãe para uma viagem ao Japão. Ela não sabe bem por que, elas não são próximas, mas ela se preocupa em fazer escolhas que agradarão à mãe. Ainda assim, em certa passagem, ela comenta que nota que a mãe está cansada, mas finge não ver. É uma pequena crueldade, ela sabe. Não o forçar a mãe a andar mais, mas o não ver.
Por outro lado, um pouco depois, ela conta de quando foi visitar a família do marido e conheceu o pai dele. Ela fala de um homem que quis conhece-la, que se mostrou para ela e toda essa parte dá ao leitor a impressão de um tempo agradável, de abertura e conforto. É o único momento em que você sente isso. A narradora não diz do contraste, mas conta da mãe que se veste no banheiro, que não compartilha qualquer impressão sobre o que vê e que a procura cada vez que ela se afasta mais como quem precisa de um bote salva-vidas que de uma companhia.
Ela não acusa a mãe. E essas personagens não são as judias escandalosas de Afetos Ferozes. Nada nesse livro é feroz.
Na casa da minha mãe há uma foto de uma criança loira com maria-chiquinhas e um vestido preto de bolinhas brancas. Essa criança não tem a franja que eu tenho hoje, e tinha na época em que essa foto foi tirada, e ela tem olhos azuis, que minha mãe tem, mas eu não. Um dia, minha mãe comenta qualquer coisa como se fosse eu nessa foto. Eu me assusto. Não sou eu, corrijo, é minha prima. Nós somos parecidas como irmãs, eu sei disso, mas ela é minha mãe. Não, ela insiste, é claro que é você. Eu não discuto.
Quando eu era muito nova, eu morei com esse homem que quase quebrou meu pulso. Um dia, ele me disse que me amar era muito difícil e então eu deixei que ele consumisse toda minha vida, na esperança de provar o contrário, mas eu sabia que ele estava certo. Não era a primeira vez que me diziam isso.
Muito mais recentemente, eu quis dizer para alguém: mas você não sabe como me amar é difícil. Você não sabe das pessoas que não conseguiram e de como eu sou fria, esquiva, cruel quando ferida. Mas eu estava ferida e não tinha (ainda?) sido cruel, então eu engoli.
Um pouco mais a frente no livro, Glück escreve uma nova versão do mesmo poema. Nesse, Perséfone morre, é por isso que ela desce ao inferno. Eu não tenho nenhum motivo para achar isso, mas me parece que, no primeiro, a narradora sabe só o que é ser uma filha. No segundo, ela é uma mãe. O segundo me tocou muito menos.
Que texto forte! Amei as referências, amei como você fala sobre a relação de filha e termina falando sobre a relação com um companheiro. Deu um nó aqui na garganta. Essa passagem é muito simbólica. Aaaa e não lembrava dessas cenas de Ladybird, mas lembro que amei esse filme, e não lembrava o porquê. Com certeza essas mesmas cenas devem ter me pegado na época. Aaaaa, e um livro muito bom que também traz o tema mãe é O verão que mamãe teve olhos verdes. Uma pancada. Beijos e abraços!
Uau! Que texto maravilhoso e tem o título do meu livro favorito da vida. Tenho uma frase de uma temporada no inferno tatuada e decorei ele pela metade no passado de tão obcecada que era. Ah, pra vc não me achar incongruente, a Madame Bovary tem o mesmo peso pra mim! Passaram tantas coisas e lembranças da minha relação com a minha mãe na cabeça enquanto lia. Causou um maremoto aqui logo pela manhã. Obrigada ♥️