É óbvio que essa não é uma newsletter que manda textos sob demanda, maaaas, uma resenha de Succession foi muito pedida e bom, era Succession, como que eu não ia escrever sobre isso? Tomei meu tempo (três semanas, contando em episódios horríveis de The Idol) para pensar sobre a série e aqui estamos. Vai ter spoilers, lógico, se você não assistiu Succession até agora, você merece.
Eu, como muita gente, comecei a ver Succession na pandemia. Eles já tinham ganhado uns prêmios e eu estava há tempos com a série na minha lista mental de “coisas que eu tenho que ver alguma hora, mas ainda não cheguei lá”. Daí eu estava trancada em casa contemplando um tédio de morte, não tinha quase nada de bom na televisão e eu pensei “bom, é a hora".
Eu não sou uma pessoa de maratonar séries. Se eu gosto muito de alguma coisa, é provável que eu mate em uma semana. Se eu gosto muito e os episódios tem meia hora, em uns três dias. Se eu não gosto muito (cof cof a última temporada de Ted Lasso) eu posso arrastar três episódios por duas semanas. Dito isso, eu vi as duas primeiras temporadas de Succession em uma semana.
Eu sei que muita gente demorou para se aclimatar, entender o que estava acontecendo ali e se acostumar com a ideia de que tinha que conviver com aquelas pessoas horríveis. Eu sabia que o Adam McKay estava envolvido e que portanto seria uma crítica meio pós-moderna do capitalismo contemporâneo e fui esperando isso. Eu imaginava que as pessoas seriam horrorosas e não tem nada que eu ame mais, os deuses me livre de ler sobre pessoas que eu quero defender as ações. Mas o que eu não esperava era um tratado sobre desejos humanos.
Porque por um lado nada é mais distante do espectador comum, a gente que circula na esfera dos mortais, do que três bilionários se matando para herdar o que é basicamente a Fox News. A quantidade de dinheiro mencionada ali é inimaginável, mas, mais do que isso, a quantidade de poder. Eu penso muito em qual a sensação de você ser um Freud, um Darwin, um Marx no mundo. Alguém que um dia teve umas ideias, escreveu sobre elas e o mundo inteiro, toda a história da humanidade, é diferente por sua causa. Eu sei que boa parte dessas ideias não foram captadas por homens geniais e eram reflexos de discussões e pensamentos flutuando em suas épocas, mas ainda assim! Você escreve um Manifesto Comunista de umas 120 páginas em tamanho brochura e todo mundo é diferente por isso.
Agora imagina você sempre saber disso. Você andar pela sua vida sabendo que qualquer decisão sua, qualquer dia de mau-humor pode afetar o destino de milhões de pessoas. Eu acho que entre as muitas coisas que essa série comunicou de forma genial, essa foi a primeira delas: o como cada pequena decisão dessas pessoas era infinitamente importante e também o como elas não se importavam com isso. Como qualquer jantar era frequentado por presidentes, ministros, reis e ninguém liga. Nada é importante, tudo é indiferente porque qualquer pessoa não convidada para estar naquela sala, não é uma pessoa de verdade. “No real human was harmed” como o Logan diz com todas as letras.
Essa é a parte abstrata e distante da série. Os momentos em que vemos para pensar sociologicamente e criticar um estado atual da sociedade do qual somos completamente vítimas. Ninguém ligando a HBOMax num domingo a noite se identifica com voar de jatinho para a Noruega de surpresa ou ter que pensar em lavar as toalhas de mesa porque disso depende o destino de uma Condé Nast da vida (e de todas as pessoas que trabalham nessa Condé Nast da vida). Nós não só não somos essas pessoas como somos o dejeto direto das escolhas delas. Assisti-las fazendo essas negociações na TV é como cair num mundo invertido. Nada nos diz respeito, tudo nos diz respeito, nós não poderíamos nos sentir mais alienados.
Esse é um lado da série e eu acho que ela faz de forma brilhante. Mas aí tem o outro. O que nos lembra que as pessoas tomando decisões inimagináveis e manipulando uma quantidade de poder que ninguém deveria ter são apenas pessoas. Gente feita de carne, osso, traumas freudianos e neuroses. Como eu, como vocês, como todo mundo.
Desde o início se fez muitas comparações entre Succession e Shakespeare, uma vez que as relações pareciam mesmo óbvias: três filhos brigando pelo afeto e herança de um velho que se recusa a reconhecer a própria finitude não é nada mais que Rei Lear. Se você soma isso com o criador ser um britânico e todo mundo estava o tempo todo procurando esses paralelos.
Mas vamos olhar para Shakespeare um minuto: Hamlet é a história de um príncipe da Dinamarca. Otello é um comandante de altíssima patente do exército veneziano. Ricardo III é literalmente um rei, assim como Rei Lear. Macbeth se torna rei. A Tempestade tem como protagonista um bruxo capaz de comandar os elementos. Todas esses personagens manipulando um poder muito maior do que seus espectadores teriam. Muito maior do que seus leitores ao longo dos séculos tem. E ainda assim.
Ainda assim, quatrocentos anos depois nós seguimos voltando para essas histórias como a pedra fundadora da nossa ficção, como narrativas que falam de algo profundo na maneira como contamos histórias, na maneira como pensamos, na maneira como existimos. O comentário mais batido, mas nem por isso menos certeiro, a respeito de Shakespeare é que ele sempre fala de algo universal e humano, de desejos e inseguranças no fundo de nós. De legado, ciúmes, ambição, insegurança, ressentimento, vingança. Sentimentos humaníssimos. Shakespeare portanto é o marco zero dessa confluência profundamente incômoda entre poder e humanidade que é o que torna Succession também excepcional.
Porque essas pessoas são pessoas. E eu acho que é aí que mora o incômodo que sustenta toda a série. Com frequência eu lia gente indignada porque os personagens faziam escolhas burras, ou tinham uma ideia deturpada deles mesmos, ou ficavam caindo nos mesmos padrões que eles já deveriam saber como termina. Agora me digam, quais de vocês não fazem isso?
Para além deles serem bilionários decidindo o destino do país, eu sei que a gente se incomoda quando personagens ficcionais são muito humanos. Eu escrevi muito sobre Girls recentemente, mas é uma série vítima disso. Philip Roth é um escritor que as vezes causa esse incômodo. A Ferrante. Quanta gente não ficou absolutamente revoltada com o hábito da Lenu de voltar pro Nino ou de se deixar ferir pelas palavras da Lila de novo e de novo? E quem de nós não faria isso?
Eu entendo que parte do impulso humano de gostar de histórias é porque elas nos oferecem um mundo mais organizado do que aquele no qual vivemos. É um lugar comum dizer de certos acontecimentos da vida que se eles fossem transpostos para a ficção ninguém acreditaria. Isso porque se espera que a ficção tenha alguma ordem, alguma lógica, que os personagens se movam de alguma maneira e passem por transformações significativas. Bom, se Freud disse alguma coisa sobre a humanidade é que nós caímos sempre nos mesmos padrões e estamos de certa forma condenados a reviver por toda vida nossos traumas de infância.
E o que é isso senão Kendall Roy?
O que acho que muita gente perdeu nas comparações entre Succession e Shakespeare é que a coisa de Shakespeare é exatamente essa: pegar figuras maiores que a vida e mostrar o como no fundo, em seus desejos e traumas, eles são iguais a gente.
Succession é Rei Lear e Rei Lear é uma história sobre o desejo de validação e também de libertação que vem com o poder. Em entrevistas de divulgação da última temporada o Jeremy Strong falou muito de como via o Kendall como Ricardo III. Ricardo III é uma história a respeito da ambição tão desmesurada que deforma algo dentro de você. No final, quando o último episódio cortou para a tela preta, eu me virei e disse “ela é Lady Macbeth". Lady Macbeth uma personagem monstruosa tornada monstruosa em parte por sua falta de liberdade de ação no mundo. Não podendo ter poder nenhum, ela rasteja como as cobras para tomar conta do próprio destino.
As consequências do que esses personagens fazem são imensas porque essa é a estratégia: quando você amplifica o poder e a influência de um personagem fica mais claro para o leitor o que está em jogo. Quando o complexo de Édipo não elaborado do Hamlet coloca em jogo todo o reino da Dinamarca é mais claro o quanto esses traumas regem nossas vidas. Romeu e Julieta é o ápice dessa estratégia, sei lá quantas pessoas mortas em três dias como símbolo da violência e do poder desorganizador do desejo. A democracia americana destruída (se é que, cof cof, um dia existiu) porque três adultos querem ser amados pelo pai monstruoso. Nada é mais humano do que querer ser amado por seus pais e a dor que vem de não ser.
E eles nunca saem. E enquanto espectadores contemporâneos educados em formas narrativas extremamente clássicas (e emburrecidas, vamos ser honestos) nós ficamos revoltados que nenhum deles nunca entenda o que está fazendo. Nunca tenha um momento de compreensão. Nunca vá pra terapia. Mas essa é a humanidade para vocês.
Succession é Shakespeare, mas Shakespeare é outra coisa. Shakespeare é um escritor de tragédias e a tragédia é uma forma que vem de um mundo em que a autonomia humana era um conceito absurdo. A tragédia é a forma literária de um mundo em que nós não somos nada, em que nossos sentimentos são absurdamente violentos, mas nossas ações estão restritas pela vontade dos deuses e o fio do destino. Ifigênia vai sempre morrer. Édipo vai sempre matar o pai e casar com a mãe. É impossível sair da roda.
E, curiosamente, nós seres humanos que nos acreditamos plenos de autonomia e donos de nossos próprios destinos seguimos voltando exatamente para essas formas narrativas. Para a tragédia. Para Shakespeare. O produto mais comentado da mídia mais moderna possível é uma tragédia clássica. Porque talvez a humanidade só seja o que seja é a jogada final (e brilhante) de Succession é lembrar o espectador disso: não há arco, no fim a gente só foge para acabar onde começou. Igual Édipo.
Agora um minuto para os nossos anúncios:
No início do ano eu dei um curso de organização e escrita acadêmica que foi muito legal. Achei que tivemos discussões ótimas e todo mundo (eu inclusive) aprendeu muito e encontrou alguma paz nesse rolê tão solitário que é a pesquisa. Então decidi repetir.
Já abri as inscrições porque dá outra vez lotou meio rápido e de repente abro duas turmas (mas não sei!!! então corram que já tem bastante vaga preenchida), mas o curso acontece em agosto. São quatro encontros pra gente pensar e discutir a prática da pesquisa, estratégias e ferramentas para tornar a vida de todo mundo mais fácil.
Vai acontecer nas quintas a noite e vocês podem se escrever aqui.
Tal qual Taylor Swift, coloquei um easter egg nessa newsletter. Darei um biscoitinho metafórico para quem souber de onde veio o título desse texto.
Que bom que você escreveu!
Genial como sempre, Isadora!! Daqueles textos que vou ler pq deixa a gnt pensativa hahahahah