Hoje seria dia da resenha para assinantes pagos, porém é meu aniversário e eu decidi fazer uma coisa meio “o aniversário é meu, mas quem ganha são vocês". Além disso, eu tenho uma newsletter porque sinto uma necessidade visceral de escrever sobre tudo que me ocupa a cabeça e meu aniversário obviamente me ocupa a cabeça. Então, pra vocês, um ensaio sobre fazer 35 anos.
Nos últimos dias eu tenho andado agitada, quase febril. Eu faço listas, corto listas, busco receitas, decido por coisas depois mudo de ideia. Eu vou encomendar tudo, eu vou cozinhar tudo. Eu não vou preparar nenhuma bebida, eu vou preparar três tipos diferentes de bebida. Não vai vir ninguém, vai vir mais gente do que cabe na minha casa. Eu estou, como todos os anos, planejando uma festa. Mas esse ano cada decisão que eu tomo parece mais importante
The white peacock spread his fan. The organ sounded. She wove white stephanotis into the thick braid that hung down her back. She dropped the tulle veil over her head and the stephanotis loosened and fell. The plumeria blossom tattooed just below her shoulder showed through the tulle. “Let's do it", she whispered. The little girls in leis and pale dresses skipped down the aisle and walked behind her up to the high altar. After all the words had been said the little girls followed her out the front doors of the cathedral and around past the peacocks (the two blue-and-green peacocks, the one white peacock) to the Cathedral house. There were cucumber and watercress sandwiches, a peach colored cake from Payard, pink champagne.
Her choices, all.
Sentimental choices, things she remembered. — Joan Didion, “Blue Nights”
A dois dias da festa, eu decido afinal me fazer um bolo. Eu decido por um bolo com cobertura de sour cream e avelã e cerejas marraschino. Escolhas sentimentais, o sorvete de iogurte e marraschino que eu vou sempre escolher se tiver a chance. Eu coloco na minha lista uma ida ao Santa Luzia. A agenda do dia da festa começa a se parecer com um treinamento militar: eu vou na yoga de manhã, passo no Santa Luzia, faço on bolo, faço a berinjela, arrumo a casa, tiro um cochilo, faço as pastas, tomo banho. Eu penso no pote minúsculo de cerejas marraschino que eles tem lá, o menor de todos, suficiente apenas para decorar esse bolo e no preço absurdo que até isso vai me custar e por uns segundos eu considero abrir mão delas. Então eu lembro que estou fazendo 35 anos e eu deveria comprar as cerejas caras. Se existe uma ocasião para as cerejas caras, é essa.
Quando eu fiz 30 anos eu dei uma grande festa. Eu pedi o terraço de um amigo, eu encomendei salgadinhos e dois bolos em uma confeitaria chique. Tinha luzinhas e champanhe cor de rosa. Eu usei sapatos de salto até a hora que não consegui mais e troquei por sapatilhas. Nas fotos, meus amigos todos parecem bêbados, todos se agarram felizes e em uma imagem específica alguém equilibra um copo de cerveja na cabeça. Eu amo essas imagens. Eu amo a ocasião que eu criei e eu amo que a polícia bateu na nossa porta por causa do barulho. Eu amo todas as escolhas que fiz, mas na época elas pareceram menos escolhas e mais só a forma como se organiza uma festa: uns elementos básicos que você joga juntos e as pessoas se divertem.
Quando eu fiz 30 anos todo mundo me disse que seria a melhor década da minha vida. Eu fui cética porque eu tinha vivido tanta coisa nos dez anos anteriores que era difícil competir, mas por outro lado, meus vinte anos foram o melhor dos tempos e o pior dos tempos. Eu experimentei de tudo e tudo é muita coisa. Eu viva desconfortável na minha própria pele, frustrada com as minhas ambições e o caminho longo para alcançá-las e incerta de que a pessoa que eu sou era digna de amor. Eu odiei cada segundo de ser uma criança e eu detestei menos ser adolescente, mas ainda assim. Meus 20 anos foram o primeiro momento de felicidade da minha vida. Uma felicidade manchada por nunca ter sido experimentada antes, mas felicidade. Eu não acreditava muito que algo pudesse superar a sensação de descobrir que minha vida podia ganhar a forma das minhas escolhas.
...I think we are well-advised to keep on nodding terms with the people we used to be, whether we find them attractive company or not. Otherwise they turn up unannounced and surprise us, come hammering on the mind's door at 4 a.m. of a bad night and demand to know who deserted them, who betrayed them, who is going to make amends. We forget all too soon the things we thought we could never forget. We forget the loves and the betrayals alike, forget what we whispered and what we screamed, forget who we were. — Joan Didion, “On Keeping a Notebook”
De certa forma, meu ceticismo se provou correto, e então não. No primeiro ano dos meus 30 eu fui morar em Los Angeles, eu conheci o Japão, eu dei a primeira festa nesse apartamento que é o primeiro lar de verdade que eu já conheci. E então eu fiquei um ano e meio trancada em casa. E eu não quero falar do ano e meio trancada em casa, mas eu quero falar de como nesse tempo o mundo pareceu descobrir que estávamos todos perseguindo coisas que não deveríamos perseguir: carreiras, dinheiro, enormes grupos de amigos, role todos os sábados a noite, baladas, drogas. O que deveríamos estar perseguindo era paz, família, se sentir satisfeito com trabalhar o suficiente e então aproveitar a própria casa. Eu entendo o apelo dessa imagem, mas eu não sou essa pessoa. E então esses anos foram um exercício de descobrir como ser quem eu queria ser.
É curioso porque teoricamente esse deveria ser o tema dos seus vinte anos, mas acho que nessa época a gente ainda tá tentando entender quem é e o que quer e testando o fato de que a vida é feita de escolhas e você pode moldá-las. Aos vinte você não sabe quem quer ser. Aos trinta, eu sabia, mas não sabia chegar lá. Aos 35, o que eu começo a entender (e portanto, as cerejas caras) é que talvez finalmente eu saiba.
Eu falo como se tivesse sido fácil, ou como se essa fosse uma newsletter motivacional, mas não é. Quando a gente emergiu do um ano e meio trancado em casa e o mundo tinha decidido que o legal era ser uma pessoa totalmente diferente da pessoa que eu era, isso me foi um soco no estômago. Eu entendo que algumas pessoas curem o fato de que família nunca foi nada além de sofrimento para elas constituindo a própria, mas eu não sou assim. Eu sabia com mais firmeza do que nunca que o caminho não era esse. Eu sabia também que nesse tempo morto o que eu tinha sentido falta era da Vida, da Experiência. As pessoas falavam em paz, mas eu não queria paz, eu queria ao contrário a tensão de não saber o que pode acontecer com você, de não ter mais certeza de tudo. Por outro lado, eu havia conquistado coisas e eu não queria abrir mão delas. E o trabalho de o que fazer com isso começou.
I've been under scrutiny
You handle it beautifully
All this shit is new to meI feel the lavender haze creepin' up on me
Surreal, I'm damned if I do give a damn what people say
No deal, the 1950s shit they want from me
I just wanna stay in that lavender hazeAll they keep askin' me (all they keep askin' me)
Is if I'm gonna be your bride
The only kind of girl they see (only kind of girl they see)
Is a one-night or a wife — Taylor Swift, “Lavender Hazer”
A primeira coisa que eu descobri é que a corrente do que quer que o mundo esteja fazendo é muito forte. Eu me peguei em mesas de bar justificando porque eu não morava junto com meu namorado de oito anos e por que a gente não tomava isso como um objetivo, um marco, um validador. Eu me vi justificando porque nós ficávamos com outras pessoas e o como isso é uma escolha ativa e fala da concepção de amor e também de individualidade que a gente tem. Eu expliquei para colegas de trabalho no fumódromo porque raios eu ainda tinha um projeto de pesquisa e um projeto de livro e meus planos de trabalhar no verão. E eu sentia o tempo todo que as pessoas me olhavam como se eu fosse doida.
Eu sei que pessoas específicas que estiveram nessas conversas específicas vão ler esse texto e falar “claro que não” e eu acredito nelas. O ponto não é esse. O ponto é que desde que eu tinha 15 anos e lia Camus na aula de geometria de um colégio obcecado por vestibular em uma cidade do interior de São Paulo (quem sabe, sabe) eu não me sentia tão descompassada com meu ambiente, tão tentando abrir um caminho de terra em meio a estradas largas e asfaltadas que levavam para o lugar que eu não queria ir. Por uns dois anos eu senti que se eu soltasse a corda só um pouquinho, eu seria engolida. Que se eu pensasse em desistir, eu ia desmontar. Que se eu olhasse para trás por um segundo que fosse, eu me transformaria em uma estátua de sal.
E então, esse ano, talvez por causa dos 35 ou talvez só porque eu me debati o suficiente, eu senti essas forças aliviarem.
Esse ano, em uma noite de quinta feira, eu me peguei em uma festinha com amigas que eu não tinha um ano atrás, contando de quando eu tinha 25 anos e por um segundo, eu parei de lamentar o momento em que eu estava. Porque a forma que meu cansaço de resistir tinha tomado foi uma nostalgia que eu sabia muito bem que era injustificada. Eu sei o que foram meus 25 anos, eu sei o quanto eu sofri e sangrei porque eu queria acreditar que eu poderia ser amada e eu queria que alguém, alguém que não eu mesma, vamos deixar claro, me fizesse acreditar nisso. Ao mesmo tempo, o que o mundo esperava de mim e quem eu era ainda eram coisas em sincronia e quando eu falava dos meus planos de longo prazo as pessoas olhavam com condescendência e se tem algo que eu descobri na vida é que condescendência é sempre um espaço.
Eu me peguei nostálgica por ir pra balada duas vezes na semana. Por provar drogas novas e corpos novos e estar quase sempre mergulhada nas potencialidades de tudo. Eu me odiava profundamente e era errática de um jeito que eu ainda não sabia compreender. Mas eu não estava me justificando, e eu tive saudades disso.
E então. Então era quinta feira e eu estava contando para amigas que eu não costumava ter de quando eu chorei tanto que fui parar no pronto socorro e eu Entendi. Que eu não iria mais chorar assim, não pelas mesmas coisas. Mas era quinta feira e eu tinha uma taça de vinho na mão e pessoas que eu amava. E no dia seguinte eu iria acordar e sair para um trabalho que sim, claro, as vezes eu odeio, mas no geral me parece um privilégio enquanto forma de pagar as contas. Que eu agora lia livros e escrevia para jornais e era paga por isso. Que uma semana depois eu iria ser contratada para um trabalho que nem nos meus sonhos mais loucos. Que eu ia escrever ficção. Que as coisas iam dar certo para mim.
Para além da nostalgia, quando você tem o tipo de ambição que eu tenho, o tempo parece sempre um inimigo. É uma das torturinhas de estimação do capitalismo: é preciso tempo para subir e chegar onde você quer, mas se você não sobe meteoricamente parece que você está falhando. Minha vida inteira eu tinha querido estar onde estou agora e agora que estou eu lamento não ter chegado antes. Mas eu não poderia ter chegado antes. E eu não poderia ter o que eu queria ter mais cedo porque eu não era uma pessoa capaz dessas coisas ainda. Porque o tempo é a experiência e não faz sentido querer sentir tudo e conhecer e viver tudo e não querer o tempo que me permite que tudo isso aconteça.
Drink up baby, stay up all night
With the things you could do
You won't but you might
The potential you'll be that you'll never seeThe promises you'll only make
Drink up with me now
And forget all about the pressure of days
Do what I say and I'll make you okay
And drive them away
The images stuck in your headPeople you've been before
That you don't want around anymore
That push and shove and won't bend to your will
I'll keep them still — Elliot Smith, “Between the Bars”
Eu não conclui nada disso naquele dia, eu estou concluindo tudo isso agora enquanto escrevo esse texto. Naquele dia eu só senti um contentamento muito profundo que me seguiu desde então. A ideia de que talvez eu tenha segurado por tempo suficiente, de que eu me expliquei e resisti e não olhei para trás e não ouvi as correntes em volta. E o barulho abaixou. E a estrada que leva para onde eu não quero ir ainda é bela e asfaltada e sem limite de velocidade. But I still only travel by foot and by foot is a slow climb.
E aí meu aniversário virou a esquina. E eu não tenho mais 30 anos, eu não tenho mais nem sequer trinta e poucos. E eu desisti de ficar apavorada. Eu aceitei que eu ganhei a vida que eu quero, com unha, com dentes, com sangue, com derramar tudo que eu tenho dentro de mim em palavras e torcer para que isso me leve a algum lugar. Eu não tenho escolha além de envelhecer e o tempo vai acontecer comigo, quer eu queira, quer não. Mas a vida que eu quero, talvez seja um presente que ele me dá.
E então as listas, o bolo, a festa. A ideia de que eu preciso materializar tudo isso na possibilidade de cerejas caras.
Hoje acordei no meu aniversário e pensei “tudo o que eu quero é sentar e tomar meu cafezinho com calma e ler minhas newsletters pra começar a comemorar esse dia”, e daí surpresa, abri o Substack e me aparece uma newsletter de aniversário! Parabéns, xará de niver :) gostei de compartilhar esses sentimentos com você!
Parabéns! E obrigada pelo texto. Oenso nisso sempre que chego a um novo "patamar" na trilha do auto desenvolvimento: por que eu não aprendi essas coisas antes? Por que eu não agi dessa forma 10 anos atrás pra eu chegar nos 32 tendo realizado muito mais na vida? Mas, talvez, se eu não tivesse passado por tudo que passei (por não saber X, oi agir de forma Y), eu não teria conquistado coisas que tenho hoje (algumas que sonhei muito)...