Existe um tipo de livro, ou mais precisamente um tipo de proposta literária, que me interessa muito: a confusão deliberada entre ficção e autobiografia. É claro, nenhuma biografia é objetiva e mais ainda nenhuma autobiografia. A nossa memória é ficcionista e um livro legível e interessante exige um preenchimento de detalhes que ninguém poderia lembrar. Nesse sentido, toda autobiografia faz essa proposta, claro. Mas existem escritores que buscam aliviar o máximo possível essas contradições e enganos, diante da impossibilidade da realidade, eles tentam chegar o mais perto que dá. Outros, por outro lado, querem o contrário, confundir ainda mais essas fronteiras, enganar deliberadamente o leitor. São esses que me interessam. Os que, de certa forma, mentem.
Por uma série de motivos (o maior deles as pessoas que me criaram) eu reviro um pouco os olhos para a ideia generalizada de que a honestidade é um valor e a mentira algo danoso por si próprio, como se todos nós tivéssemos a obrigação de revelar parte de nós mesmos segundo demanda. Se alguém me pergunta o que fiz tal dia e pelo motivo que for eu não quero contar (o que me parece um direito meu), responder “eu não quero te responder” fere nossos códigos de convivência de um jeito que só inventar algo não o faz.
Eu sei que quase todo mundo me diria que essa é uma mentira inocente, que ela não causa danos. Eu concordo, porque no fundo eu acho que são poucas as mentiras que causam algum dano, mas também penso que todas elas nascem de um mesmo lugar: nossa necessidade de apresentar uma história para os outros. Quando mentimos sobre algo o motivo é apenas que preferimos apresentar uma outra versão, de nós mesmos ou do mundo, para a pessoa com quem estamos interagindo. A ficção, pensando assim, é uma mentira legalizada. A autobiografia mentirosa um meio de pensarmos as narrativas que contamos para formar quem somos.
Eu me interesso tanto por esse assunto que meu doutorado foi sobre o Philip Roth, rei da mentira autobiográfica, e que em um dos seus primeiros livros, Minha Vida de Homem, escancara pro leitor a rede em que ele vai cair muitas vezes mais tarde. O livro abre com dois contos, que Roth chama de “ficções úteis", relatos escandalosos de um escritor que larga tudo pra fugir para a Itália com a filha adolescente da esposa (alô Humbert Humbert). Depois deles vem o corpo da história, chamado de “minha verdadeira história", no qual o narrador - Peter Tarnopol - conta uma narrativa muito menos dramática, mas que é a clara inspiração para os contos que vieram antes.
O que essa forma diz é que a ficção pode ter âncora na vida real, pode ser inspirada nela, pode até ser tão próxima a ponto de fazer o leitor acreditar que o que lê é realidade. Mas algo acontece no processo de transformar acontecimento em texto, na alquimia literária as coisas se concentram, aumentam, distorcem. A vida está ali, mas também não está. É uma mentira e não é.
A Alice Munro fala sobre isso quando anuncia três dos contos de Vida Querida como autobiográficos no “sentimento", mas não nos fatos. Há algo da experiência que se transmite ali, ainda que as coisas não tenham acontecido exatamente desse jeito. Roth, de novo, abre sua autobiografia com uma carta endereçada a seu alterego, Nathan Zuckerman. Depois do relato esse alterego responde acusando esse livro de fazer o oposto dos contos de Munro: os fatos estão ali, mas a verdade não.
O que me interessa nessa bagunça entre a autobiografia e a ficção é exatamente isso: a possibilidade de que a verdade objetiva não comunique nenhuma verdade de fato e que a mentira revele algo mais, algo de mais verdadeiro, de mais, por falta de outra palavra real. Que as histórias que nós escolhemos contar sobre nós mesmos nos exponham mais, ainda que seu objetivo seja esconder algo.
Em Minha Vida de Homem, embora as “ficções uteis” não contem o que aconteceu de fato com o personagem, elas revelam seu desejo. Ele quer fugir para a Itália com uma quase adolescente, ele quer descartar sua mulher por uma versão mais nova dela. Que ele não o faça diz menos sobre o personagem do que o fato de que ele fantasiou sobre isso.
Esse entendimento guia parte do projeto da Annie Ernaux também, que se apresenta como um devassamento completo da intimidade, uma autobiografia radical. E contudo.
Contudo, Ernaux organiza seus livros por linhas temáticas, por associações simbólicas que um evento de sua vida desperta. Ela abre O Acontecimento , livro sobre um aborto ilegal feito nos anos 60, com o relato de quando estava esperando o resultado de um teste de HIV nos anos 90. Ela realmente pensou no aborto enquanto estava sentada naquela sala? Ou faz sentido literário associar essas duas ocasiões em que a sexualidade dela é punida? O teste foi realmente uma madeleine macabra ou ela está apresentando uma história a respeito da relação de uma mulher com seu próprio corpo e desejo e isso é mais real do que qualquer coisa que ela possa ter realmente pensado naquela sala de espera?
Um tempo atrás eu escrevi sobre identificação com personagens e as histórias que eu conto para mim mesma. Semana passada alguém, que não estava em plena posse das faculdades mentais, mas não importa, me disse que eu queria ser a Annie Hall, mas era a personagem do Woody Allen. Eu ri, mas fiquei pensando nisso, na pessoa tão obcecada com a própria apresentação que eu sou. Com a própria mitologia. Com a minha obsessão por esses escritores, pelo Roth, que não para nunca de pensar em como se apresenta para o mundo.
É curioso ser um escritor autobiográfico. É, certamente, um exercício egocêntrico. Eu passei as últimas semanas trabalhando um conto a respeito de algo que eu não sabia que tinha vivido, que na época que eu vivi eu não saberia definir nos termos que o faço agora. Enquanto eu narro algo que nunca aconteceu, e que na época eu não poderia dizer que queria que tivesse acontecido, eu penso na Alice Munro. Esse conto, a história de uma adolescente descobrindo o desejo por uma amiga, é certamente autobiográfico no sentimento. Se eu escrevesse sobre o que de fato aconteceu - eu só nomeei esse desejo anos mais tarde e demorei ainda mais anos para pronunciá-lo em voz alta - isso é mais verdadeiro do que a história de duas meninas se beijando na beira de uma piscina? Isso fala mais ou menos de mim?
Ou: isso fala de mim uma versão que eu prefiro? Enquanto penso a respeito da realidade da ficção, da verdade revelada nas minhas mentiras, eu alguma hora conto uma mentira que revela uma versão mais indesejável de mim? Não necessariamente pior, em termos morais, mas menos glamourosa, menos interessante. Eu sou, e eu sei disso, uma pessoa interessada demais na performance, no meu estar no mundo e em controlá-lo. Eu escrevo sem nunca tirar os olhos disso. O que isso tudo revela? Que verdade uma ficção que nasce daí pode expressar?
Estou lendo agora Operação Shylock e seu texto caiu como uma luva. Amei
Ain, Isa, te adoro, obrigada por esse texto.