Poeta torturada
Uma resenha do The Tortured Poets Department, da Taylor Swift, mas também um ensaio sobre sentir.
Vocês sabiam que isso ia acontecer vai, não se façam de surpresos. Mas eu juro que — como todas as resenhas dessa newsletter? — é menos uma resenha e mais um monte de ideias sobre minhas relação com as coisas. Então haters, fiquem por aí.
No dia 18 de abril, no que era o auge de uma experiência de loucura coletiva (e quando que ser swiftie não é?) eu fiquei acordada até bem mais tarde do que deveria para ouvir 15 músicas novas da minha cantora favorita. Eu me acomodei na cama, acendi uma vela cheirosa, dei play e comecei a mandar mensagens só um pouco perturbadas para minha amiga. E daí, enquanto eu ouvia e enquanto eu mandava mensagens, eu fui pensando “não… peraí… a gente achou que isso era sobre o Joe Alwyn, mas é sobre o Matty Healy!” E é um pouco disso que eu quero falar, mas eu tenho um ponto, eu prometo.
Eu sei que uma das partes mais exaustivas do discurso em torno da Taylor Swift é essa caça ao tesouro por significado, como se ouvir o que no fundo é só música pop fosse como desvendar um documento esotérico que nos revelaria alguma verdade superior. E essa verdade é só sobre quem raios é a música. Eu sei. Eu mesma oscilo entre odiar isso porque acho que o significado mais profundo dessas letras está só na possibilidade vaga e sem fim de identificação por qualquer uma e achar muito divertido porque eu sou a fofoqueira residente do meu ambiente de trabalho e se você nunca navegou na deep web swiftie, minha amiga, a loucura é sem limites. Mas nesse caso específico eu acho que para quem, ou sobre quem, são essas músicas permitem a gente pensar em que tipo de relacionamento é digno desse tipo de investimento emocional e poético e é por aí que quero seguir.
Porque caso você não saiba, eu vou agora fazer um breve resumo do estado biográfico da nossa poeta torturada e por que esse álbum talvez ser sobre o Matty Healy surpreende não só as fofoqueiras investigativas que somos, mas a ideia mais geral do que é um relacionamento importante na vida de alguém. Durante os últimos seis anos, a Taylor esteve em um relacionamento estável, morando junto, etc e tal com o Joe Alwyn. Durante esse período, ela escreveu um monte de músicas do tipo eu encontrei a felicidade verdadeira e eu achava que o amor deveria ser algo que te consome e (cof cof) tortura e que tem que sempre ser uma paixão intensa, mas não, o amor é outra coisa. O amor é golden like daylight, é você cantando na cozinha, é dividir uma vida. Acho bonito, concordo em boa parte e acho que ela escreveu músicas ótimas sobre um tipo de sentimento e experiência que a gente não considera objeto de música.
My love was as cruel as the cities I lived in
Everyone looked worse in the light
There are so many lines that I've crossed unforgiven
I'll tell you the truth, but never goodbyeDaylight
E daí acabou. E ela anunciou esse álbum. E todo mundo concluiu o que parecia lógico: é sobre o desmoronamento desse álbum. Um álbum de divórcio. Um disco sobre o esfacelamento de tudo isso, sobre como essa ideia de amor não era real, ou sei lá, sobre como ela foi traída, ou traiu, ou não sei. Sobre isso. Sobre esse fim. Afinal, ele era de muito longe o relacionamento mais longo e importante da vida da Taylor, o fim dele tem que ter doído mais do que qualquer outra coisa.
E aí o disco veio. E de fato algumas músicas são sobre isso. Mas mais músicas são sobre o vocalista do 1975 que ela passou duas semanas dando uns beijos. E eu comecei a pensar muito nisso aqui.
Porque desde que sentimentos, romance e sexo entraram na minha vida, eu me debato com a contradição entre ser uma pessoa profundamente interessada nessas coisas, tanto quanto tema quanto como experiência e ser uma pessoa profundamente desinteressada na escada de relacionamentos da monogamia tradicional. Ao mesmo tempo, eu adoro desejar alguém, ter um crush, estar apaixonada, construir um relacionamento e pensar nessas nuances do amor e de dividir uma vida. Eu acho a forma como a gente se relaciona a melhor janela para o que significa ser humano e eu também gosto só de sentir as coisas, de experienciar todas as coisas que eu posso. Mas eu sempre encarei essas coisas como experiências em si, eu sempre desdenhei um pouco da ideia tradicional de compromisso e eu acho que as duas coisas não deveriam estar em contradição, mas na linguagem geral dos relacionamentos elas estão e eu demorei muito tempo para me achar aí.
Quando eu era adolescente, a linguagem cultural corrente era uma que apresentava como ideal de mulher aquela que era imune, ou ao menos pouco apegada, ao sofrimento de um coração partido. Você tinha que se envolver cautelosamente, estar sempre esperta aos garotos que podiam te machucar, não se abrir mais que ele e, principalmente, quando a coisa acabasse seguir em frente rapidamente, sem cicatrizes e “dando a volta por cima". É claro que essa era uma linguagem importada de revistas femininas e uma tentativa desesperada de adolescentes de amenizarem e esconderem o horror que é sentir qualquer coisa nesse momento da vida, mas também é claro que na época eu não via isso e acreditava que tudo isso era realmente como minhas amigas viviam a vida. E elas de fato navegavam suas experiências e relacionamentos assim, com cautela e desconfiança, evitando qualquer apaixonamento sem garantias de um namoro, o prêmio supremo, a declaração de compromisso que diria que ok, mesmo que você sofresse seria por algo digno disso e não pela humilhação de um desejo não correspondido.
All my mornings are Mondays stuck in an endless February
I took the miracle move-on drug, the effects were temporary
And I love you, it's ruining my life
I love you, it's ruining my life
I touched you for only a fortnight
I touched you, but I touched youFortnight
Eu, nem preciso dizer, não era adepta dessa filosofia. Mesmo na minha linguagem adolescente, eu argumentava que evitar os baixos da experiência seria também evitar seus altos. Que nunca arriscar sofrer por ninguém seria também nunca se apaixonar profundamente, nunca ser delirantemente feliz. Eu lia Rimbaud e declarava que negar o sofrimento era se condenar a uma existência morna e que nada era mais apavorante que isso. Eu não acho que minhas amigas descordavam de mim nesse sentido, elas só achavam o resultado desejável. Eu era romântica (e torturada) demais para isso.
Eu desde então cresci, dei nome e pensei com rigor sobre muitas dessas coisas. Eu mantive a experiência e a reflexão sobre nosso estar no mundo como meu maior interesse. E eu construí uma vida e uma identidade baseadas em acomodar esse temperamento que desejava ser consumido pela experiência e pelos sentimentos de desejo (a paixão, mas também a ambição e a curiosidade). Eu saí da análise adolescente de que sofrer é uma marca de profundidade, de que gente inteligente e perceptiva não pode fazer nada além de ser infeliz e sofredora. De que todo poeta é um poeta torturado. Mas eu ainda penso muito nisso.
Porque eu nunca tive um sonho de casamento ou entendi que meu desejo de ser amada (o que é claro que eu sempre tive) seria satisfeito na forma de um relacionamento exclusivo, com nome e caixinha certa, que evoluísse segundo os degraus que devia. E eu descobri que isso é irritantemente difícil de comunicar.
Dos meus 15 aos 17 anos eu tive um relacionamento sem nome ou exclusividade com alguém que eu considerava minha alma gêmea. Nós éramos pequenos românticos angustiados que acreditavam que nosso amor era mais profundo porque era livre, que outras pessoas não atrapalhariam essa conexão cósmica. Pode surpreender vocês, mas nós não estávamos errados. Quando a coisa acabou, não teve nada a ver com a falta de nome, ou as outras pessoas. Teve a ver com a gente, com o fato de que você não pode crescer e guardar uma alma gêmea do mesmo jeito. Mas o término, o primeiro, o oficial, foi dolorido não só por ele, mas porque eu não conseguia comunicar às pessoas que eu tinha o que é que estava doendo, que não era a perda do nome, era que a escolha que ele tava fazendo quebrava uma outra coisa. Foi muito solitário tentar fazer caber a minha dor na linguagem da dor das minhas amigas na época.
But you're in self-sabotage mode
Throwing spikes down on the road
But I've seen this episode and still love the show
Who else decodes you?The Tortured Poets Department
Desde então eu já me vi diversas vezes em várias variações dessa mesma situação. Ou eu estava em um relacionamento sem nome ou regras e tentava explicar, sem sucesso, que eu não queria começar a namorar, ou que ele parasse de ficar com outras pessoas, que me bastava a segurança do sentimento, que viria de outro lugar; Ou eu estava, mais uma vez sem sucesso, explicando que todos as red flags de uma situação não me importavam porque eu não queria que ela desse certo, eu só queria passar por ela. Ou eu estava, sem sucesso ainda outra vez, pisando em ovos para demonstrar a um homem que eu o desejava, mas não queria dele nenhum tipo de compromisso, que eu não era uma mulher louca. Em todos os casos, eu acabo tão frustrada que só desisto.
E aqui a gente volta para o The Tortured Poets Department e as músicas sobre o Matty Healy: elas estão exatamente nesse espaço. Na mulher louca que quer demais. Na mulher louca apaixonada em uma semana. Na mulher louca vivendo muito loucamente essa paixão que não vai para lugar nenhum. E que escreve sobre isso sem tentar dizer “não, não, calma que eu não sou louca".
Eu não estou dizendo que a Taylor não se interessa pelos rótulos, monogamia e escada tradicional dos relacionamentos. Todas as músicas que de fato são sobre o Joe parecem elaborar a frustração justamente com o fato de que ela queria se casar. Ela provavelmente queria casar e ter cinco filhos fumantes com o Matty Healy, mas isso não importa. O que importa é que o fato de que foi curto, de que não teve as validações externas, não tornam a coisa menos intensa, não fazem ela não escrever sobre. Porque muita da linguagem que me formou me diz que eu preciso esconder qualquer intensidade não validada porque senão eu sou louca. E me dá um conforto imenso ouvir essas músicas que dizem, eu tava meio louca sim, mas é isso aí.
Did you take all my old clothes?
Just to leave me here naked and alone
In a field in my same old town
That somehow seems so hollow now
They'll say I'm nuts if I talk about the existence of you
For a moment I was heaven struckDown Bad
Porque, embora eu ache que a Taylor não esteja pensando na dicotomia entre intensidade e compromisso, ela manipula ideias muito conectadas à minha experiência: a visão de que a mulher que deseja e não é correspondida sai humilhada. Eu já escrevi sobre isso antes, sobre como nossa cultura transforma o desejo feminino (por sexo, por amor, por qualquer coisa) em uma diminuição e a mulher que deseja em patética. O homem que morre de amores é torturado, a mulher é uma histérica. A diligência com que minhas amigas de adolescência evitavam se colocar nesse lugar tinha a ver com um impulso de evitar sofrimento psíquico, claro, mas também com o fato de que esse sofrimento é exacerbado por um sentimento de humilhação que é externo, que nos é imposto. Desejar é se humilhar. Desejar muito é estar obcecada e estar obcecada por um homem te diminui (aqui as políticas de gênero são importantes, eu não acho que seja totalmente inválido se o objeto do desejo é uma mulher, mas é em parte outra newsletter).
Pense em quantas vezes você ouviu, ou disse, “amiga, você é melhor do que ele", ou “ele não merece isso", ou “você está obcecada por um homem medíocre” como se o desejo estivesse no objeto e se ele não é digno então você também não é. Paixão Simples, da Annie Ernaux, é todo sobre isso e o como essa lógica se propõe feminista e libertadora, mas só segue organizando tudo a partir do homem.
Esse desencaixe entre a vontade de intensidade e o desinteresse pelo compromisso que eu sinto não é tão diferente da Taylor falando de como estar completamente apaixonada por um cara em algo curto a fazer ser vista como louca porque as duas coisas nascem de um mesmo lugar. Do fato de que nossa cultura criou a narrativa de que tudo que uma mulher tem que querer é o casamento, o compromisso e a segurança de um homem em casa. Não querer isso, ou investir seus sentimentos antes de ter a garantia disso, é loucura. Mesmo para as mulheres modernas, liberadas, feministas (eu tenho muitas questões com um feminismo pop que quer se livrar do desejo, MUITAS QUESTÕES), para essas minhas amigas que me dão conselhos em bar, a verdadeira libertação não é entender o desejo como seu e viver a coisa a partir do ponto de vista da sua experiência. É transcender o desejo, a paixão, é “não precisar de homens", é não perder a cabeça por eles. Exceto, claro, que exista a confirmação da reciprocidade. E a gente gira em círculos.
Uau!!!
nossa, eu achei muito interessante esse seu ponto de vista porque ele foi uma análise mto bem feita e também passou distante da minha percepção. interpretei como duas coisas: 1 o fim de um relacionamento saudável deixa um coração partido trágico, bonito e ao mesmo tempo digno, como a gente vê em so long london, diferente de smallest man e 2 a maior parte das canções de relacionamentos dela foram sobre "quase algos", porque sinto muitas coisas nessas situações acabam sendo não ditas, enquanto os proprios relacionamentos longos saudaveis permitem nossa expressao. adorei ler essa nova perspectiva, acho que acrescentou mto :)