Existem alguns tipos de resenhas fáceis de fazer: um livro ótimo que eu amei, um livro péssimo que eu detestei, mesmo até um livro péssimo que eu amei (é fácil explicar o afeto por algo que não merece, vamos ser honestas). O que é difícil é tratar de um livro bom que eu não gostei.
Eu, como muita gente que eu conheço, li Caderno Proibido, da Alba de Céspedes, no último mês. E eu achei um livro até bom. Mas eu não gostei.
Tem algo de curioso nessa experiência e nessa resenha porque até pouco tempo atrás eu era muito atrasada no hype das coisas. Eu gosto muito de clássicos, as vezes não queria ler as traduções e o original estava muito caro, tinha preguiça de livro que tava todo mundo lendo e portanto acabava sempre chegando muito atrasada no bonde das coisas que todo mundo estava falando. Tudo isso não deixou de ser verdade, mas eu também passei a receber livros das editoras, ser chamada para resenhar para jornais e no geral só ter mais vontade de participar desses discursos e conversas e então esse ano eu me tornei alguém que lê o que tá todo mundo lendo.
Eu li A Pediatra quando todo mundo tava lendo (achei mais ou menos), li Quando Deixamos de Entender o Mundo quando todo mundo tava lendo (maravilhoso!!! livro do ano!!!) e aí li Caderno Proibido.
O livro é, como o título entrega, escrito na forma de diário por Valéria, uma dona de casa italiana dos anos 50. Em um domingo ela sai para comprar cigarros e decide comprar também um caderno de capa preta. Esse caderno é proibido em sua origem, uma vez que a loja não poderia vender nada além dos cigarros no domingo e esse início pecaminoso se torna uma metáfora para o que é verdadeiramente interditado: que Valéria possua uma subjetividade.
A ideia do romance é retratar como através do processo de escrita Valéria resgata sua vida interior soterrada pelo patriarcado, a família e a constante despersonalização sofrida pelas mulheres de seu tempo e situação. É supostamente um romance feminista. Um livro que busca demonstrar para o leitor os problemas e crueldades da situação de Valéria.
Eu entendo isso. Eu acho uma proposta interessante. A ideia de se recuperar um ser pela escrita eu acho inclusive fascinante e um paralelo robusto com narrativas de testemunho e relatos de brutalizações muito mais óbvias do século 20. Pena que a própria protagonista recupera um dos seres mais desinteressantes que eu já encontrei na literatura. Mais uma vez, eu entendo. Há uma vontade de retratar Valéria como uma mulher ordinária, uma mulher de seu tempo, alguém que é ao mesmo tempo vítima e algoz do patriarcado. Afinal, não somos todas em algum grau? Não é a coisa mais natural que muitas mulheres, como Valéria, tratem com hostilidade e censura uma liberdade que não temos, mas gostariam de ter? Talvez e eu não nego o valor do livro enquanto relato realista, ou enquanto espelho de uma realidade. Eu não nego sua qualidade de polaroid de uma pisque feminina nos anos 1950. Mas mais uma vez: pena que essa psique é um saco.
Eu tive empatia por Valéria em diversos momentos. Quando o marido a chama de “mamãe” eu queria gritar. Quando os filhos desdenham que ela pudesse ter algo a escrever em um diário eu senti suas horas de escrita roubadas como uma vingança. Mas quando sua filha, Mirella, reivindica uma liberdade e uma vida nova, Valéria apenas olha para aquilo como impossibilidade. Ela sente ódio e inveja, sentimentos compreensíveis, mas ela mesma não consegue articular isso e escreve, nesse que deveria ser o lugar de reconquista de sua subjetividade, que Mirella é apenas iludida.
De certa forma, talvez o que eu não tenha gostado (e, ironicamente, eu como Valéria tento entender o que penso no processo de escrever esse texto) é a falta de auto-consciência de Valéria. Ou mais ainda, a covardia dela. Não covardia da ação, essa eu acho que é o tema do romance e faz todo sentido, mas sua covardia do olhar, sua pouca disposição em reconhecer seus próprios desejos e impulsos. E isso é um problema para mim, mas é, objetivamente, um problema para o livro.
Porque, afinal, o que torna um romance feminista? Basta uma temática de mulheres oprimidas? Lançar luz sobre um problema social na melhor vibe “realismo soviético"? Ou um romance feminista é aquele que reconhece suas personagens mulheres como seres completos? Seres humanos dotados de contradição e de toda gama das emoções humanas? Porque se é o segundo, Caderno Proibido falha. Falha porque Valéria é presa em seu lugar de modelo, de exercício a respeito da mentalidade de uma dona de casa tradicional de 1950, a ela não é dada nem sequer a possibilidade de reconhecer seu ódio e raiva por seu lugar.
É difícil, talvez uma das coisas mais difíceis da literatura, escrever sobre alguém mais “simples” do que você. Philip Roth fala sobre “A Pastoral Americana” que embora ele tenha construído o Sueco (um homem absolutamente simples se comparado aos outros protagonistas de Roth), ele não poderia torná-lo narrador do romance, porque ele jamais conseguiria considerar como é olhar o mundo por olhos tão desprovidos de neurose. Em Klara e o Sol, Kazuo Ishiguro tenta narrar o mundo pelos olhos de uma IA, um ser por definição muito mais simples que os humanos. Eu acho que ele falha terrivelmente e tudo que há de problema no livro (que também, não é no geral um livro ruim) vem da incapacidade dele de balancear um narrador que olha para o mundo com muito menos nuances do que ele, mas que deveria ter mais entendimento do que seu autor lhe dá. Nesse sentido, Valéria se parece demais com o robozinho de Ishiguro.
Céspedes lhe dá o peso da opressão do machismo e dá a ela um desejo de escape. Mas nega sua possibilidade de revelação. Sempre que Valéria se aproxima disso, sua autora a faz recuar com uma mão pesada de quem quer que sua protagonista fique para sempre ali, nesse lugar exemplar que a criadora lhe deu. Muitas vezes na leitura eu tentava acomodar esses impedimentos, me dizendo que afinal ela era uma mulher dos anos 50. Mas Mirella também é, de certa forma, e o salto que ela dá não permite que sua mãe não seja capaz de dar nenhum passo. Não é assim que a história se dá: em uma geração somos escravas completas e na outra totalmente livres. Mirella fala como alguém de 2022 poderia falar. Valéria fala como alguém de 1800 poderia falar. Onde, nisso tudo, estão os anos 1950?
Mais uma vez: o livro não é ruim, há uma série de intenções interessantes e eventualmente uma narrativa atraente. Mas qual o ponto de escrever uma obra supostamente feminista e negar a sua protagonista qualquer tipo de libertação mental, mesmo quando o desenvolvimento narrativo o pede?
Nessa primeira newsletter de setembro não vai vir o que eu li ou vi em agosto porque agosto foi um mês horrível e sendo honesta eu não li quase nada. Mas na segunda desse mês, que vem dia 22, eu incluo o que vi e li em setembro. Até lá, quem quiser se promover pra versão paga recebe toda semana uma cartinha falando disso.
Mas isso não me impede de incluir o famoso momento jabá: Para quem é de São Paulo, amanhã ( dia 02/09), as 19h, eu estarei na Livraria Ponta de Lança para falar do meu livro, de literatura judaica, de identidade e essas coisas todas. Eu também vou assinar livrinhos, então quem ainda não comprou meu primeiro filho, quem comprou, mas ainda não pegou autógrafo, ou só quem quer me ver tagarelando, passe por lá.
Isadora, entendo muito a sua relação com a Valeria - e da muita raiva dela mesmo. Mas eu acho que a força da história estava justamente ali, na incapacidade de revelação dela. Ela vê e se recusa a enxergar. Essa recusa, para mim, era quase uma tentativa de não rolar uma dissociação cognitiva, de não querer entender tudo o que estava de errado com ela mesma. Para mim, esse era o grande drama e o grande conflito. A incapacidade de Valéria de enxergar não fala, para mim, da falência dela como mulher dos anos 1950, mas da falência da sociedade com ela. Ela rema, rema e morre na praia - e é doído demais. Ai, desculpa o textão, é que eu amei o livro 🙈
Eu adorei Caderno Proibido. Tive raiva da Valéria em muitos momentos também. Ela é antagônica com relação a seus sentimentos. Ela quer mas não quer. Ela não dá o braço a torcer por ter se descoberto através da escrita, porque ela tem crenças muito enraizadas. Acho que a intenção de Alba era essa mesma, causar esse desconforto nos leitores. Mas super te entendo. Quando tenho raiva dos personagens, acho que não gostei do livro. Hehehe. Mas sentir algo profundo em relação a um personagem, como a raiva, significa que a autora mandou bem. ;)
Ah, eu também queria gritar quando o marido a chamava de "mamãe". Queria gritar por ela!
Um beijo! Chegue aqui agora e já adorei sua news