Como Vivemos Agora
Um bom tempo atrás, quando eu já tinha lido “Conversa Entre Amigos", mas não “Pessoas Normais” eu ouvi um podcast do New York Times Review of Books em que a editora de livros do NYT dizia ter gostado da Sally Rooney, mas não entender a histeria, era um comentário sincero e generoso, de quem quer entender um fenômeno do qual não participa. Uma das críticas do jornal, alguém na época com 32 anos, explica que parte da coisa é o reconhecimento geracional, são os millenials finalmente lendo algo que falava de como vivemos agora.
Quando eu ouvi isso eu pensei: sim, é isso. Eu gostei de “Conversa Entre Amigos", embora também não achasse a Sally Rooney a nova nobel de literatura (ainda não acho, mas vejo algo de muito significativo na literatura dela que é do que trata essa newsletter), mas mais do que gostar ou desgostar, mais do que apreciações literárias aquele livro tinha BATIDO porque ele falava de coisas que eu havia sentido e que pareciam particulares da forma como nos relacionamos agora e ele também autorizava que as coisas que eu vivi fossem matéria literária. No livro, a protagonista Frances estabelece um relacionamento com um homem que não vai para lugar nenhum, que ela não entende o que é, como é, para que é, o que ela quer daquilo. E o livro é isso. Não a história de um grande amor ou de um romance que se organiza eventualmente, só dessa ameba sentimental, de como é viver esse vácuo esquisito.
Meus anos de 2013 e 2014 foram completamente dominados por amebas emocionais parecidas. Por relacionamentos que não iam para lugar nenhum, que eu não sabia o que era ou o que queria deles. E embora eu tenha escrito muito sobre eles, como escrevo muito sobre tudo, esses textos eram entradas de diários, posts de blog, contos episódicos. Que a falta de forma em si, que a experiência da falta de forma, fosse o assunto de um romance não havia me ocorrido até eu ler “Conversa Entre Amigos".
Até hoje eu me lembro da primeira vez que li “A Redoma de Vidro". Eu tinha 17 anos e eu estava transtornada não pelo mérito literário da coisa, mas pela descrição do vazio existencial profundo que eu sentia, do tédio que ao mesmo tempo me matava por dentro e não me impedia de ir da aula para festa, para o carro, para a festa tal qual Esther Greenwood. Eu me lembro com muita clareza de uma cena em que Esther está no bar, refletindo sobre sua virgindade e o que isso diz a respeito de quem ela é e então pensa se vodca não seria sua bebida porque aquilo não tem gosto de quase nada, mas causa um efeito adorável no fundo do ser dela. “A Redoma de Vidro” é um grande romance, mas mesmo que não fosse, ele seria como uma sombra em cima de mim para sempre porque pela primeira vez na minha vida eu estava lendo sobre quem eu era, eu estava tendo meus sentimentos de garota de 17 anos insegura validados pela matéria da literatura.
Nem toda literatura é de identificação e, mais do que isso, não é desejável que identificação seja a única coisa que a gente busca na literatura. Eu tenho muitas opniões sobre uma certa vontade atual de validação no que se lê, da hiperidentificação e do desejo que a ficção represente um mundo como “deveria ser” em vez de como ele é (falando nisso, os assinantes da newsletter paga devem receber semana que vem um textinho sobre Succession). Mas ainda assim, a experiência de se encontrar num livro é quase um rito de passagem. E isso é verdade em termos de raça, gênero, orientação sexual e geração.
A histeria sobre a Sally Rooney, a crítica do New York Times captou muito bem, é esse sentimento de validação geracional. Uma espécie de “nós também somos dignos de termos nossas histórias contadas” ou “a forma específica de sermos jovens merece ter lugar numa página” e em nenhum dos livros dela eu senti tanto essa especificidade quanto no último.
Eu sei que escrevi um monte sobre relacionamentos nessa newsletter já e escrevi sobre relacionamentos falando da Sally Rooney. Mas ainda me parece relevante que os arranjos românticos sejam a matéria fundamental das tramas dela porque de tudo que a gente faz, a forma como a gente se relaciona amorosamente talvez seja o rompimento mais fundamental com tudo que veio antes. Talvez os millenials sejam a geração do “amor sem forma", não exatamente livre, mas tentando entender seus limites e liberdades entre a vontade individual e as formas herdadas. Mas nesse livro há algo mais a respeito dos relacionamentos: há a ideia de comunidade.
A Marianne de “Pessoas Normais” tem uma família que nós vemos como disfuncional e violenta no romance, mas fora isso seus personagens são apenas distantes das famílias. Elas são algo em outro lugar que os formou, não o organizador do presente. Isso também é uma das formas pelas quais a literatura dela captura quem nós somos, o que nós queremos. Ao pensar o relacionamento amoroso como passível de outras formas, o que no fundo nós estamos investigando é a possibilidade de outras formas de comunidade que não a família nuclear, genética, histórica. Ao final de “Belo Mundo Onde Você Está?” a sensação é precisamente de que uma comunidade se arranjou ali, de alguma maneira, que aquelas quatro pessoas estão conectadas pelos sentimentos que a gente tradicionalmente entenderia como familiar. Mas elas não são uma família.
Sendo justa, eu gostaria que nossa geração investigasse muito mais as possibilidades de comunidades não-familiar e amor não-romântico. Sendo perfeitamente honesta, eu acho que a família tem que acabar tanto quanto o carro tem que acabar, uma vez que enquanto estrutura só serve à manutenção do aprisionamento feminino e da propriedade privada (e quem disse nem fui eu, foi o Engels). Mas na minha literatura eu aceito o que eu tenho e o que eu tenho é o retrato de que pelo menos a gente pensa nisso, pelo menos a gente questiona, pelo menos a gente liberta as nossas tramas do confinamento familiar.
Aliás, minha coisa favorita e absolutamente a coisa que eu acho mais millenial em “Belo Mundo Onde Você Está?” são as personagens que pensam em tudo o tempo todo, analisam tudo o tempo todo e mandam longos emails reflexivos uma para a outra. E isso porque hoje foi um dia normal na minha vida e nesse dia normal da minha vida eu discorri sobre como estamos vivendo “a baixa idade média” do capitalismo no telegram, recebi uma resposta a respeito do “capitalismo tardio” e expliquei o conceito de punctum do Roland Barthes em áudios do whatsapp. Em um dia normal eu escrevo no messenger do Facebook a respeito da moralização da política na internet e tuíto sobre existencialismo. E isso é só como a gente vive.
Sim, claro, é um recorte. Mas é um recorte bem fundamentado no universo da Sally Rooney, no qual os personagens são sempre escritores, gente que trabalha em editora, estudantes universitários com tendências a serem acadêmicos. A pessoa que vive de analisar o mundo hoje não consegue nunca parar de analisar esse mundo e o faz de formas cada vez mais casuais em parte porque as ferramentas estão aí, a gente pode de fato se comunicar o tempo todo, e em parte porque tudo está entrando em colapso bem na nossa frente. Ou, em palavras que eu de fato usei numa mensagem de texto hoje “a pessoa intelectual e hiperconectada em um mundo em falência".
A falência do mundo é algo curioso de se observar. Porque, por um lado, não tem nada efetivamente que a gente possa fazer e parando para pensar agora, talvez a tal moralização da política seja só uma maneira das pessoas não encararem essa verdade. Por outro, é razoavelmente desejável que o capitalismo entre em colapso, considerando que isso ainda valha a pena frente `as consequências do desastre climático que provavelmente vai causar essa queda. E enfim, tudo está entrando em colapso o tempo todo e nós não só temos consciência disso como temos as ferramentas para falar disso o tempo todo. Considerando esse estado das coisas me parece muito mais verossímil que alguém mande um email refletindo a respeito do plástico como símbolo da falência estética do capitalismo tardio do que se apaixone, tenha filhos ou forme uma família. Nós somos uma geração criada na mamadeira da internet, o mundo está entrando em colapso e eu não sei o que esperam que a gente faça senão mandar longos emails refletindo a respeito desse caos que eu não posso evitar. Ou pelo menos ler sobre gente fazendo isso.
Uma pausa para os nossos comerciais:
Eu estou, chiquérrima, no episódio da semana passada do Rádio Companhia, o podcast da Companhia das Letras falando, é claro, sobre Philip Roth. Você pode ouvir aqui.
Como dito ali em cima essa newsletter tem uma versão paga e você pode assinar aqui.
Em setembro
Eu li:
Uma Tristeza Infinita, do meu amigo pessoal e agora correligionário Antônio Xerxenesky. Eu gosto demais de como ele conjuga trauma coletivo e reflexão histórica com aspectos pessoais e dá quase ares de mistério a temas seríssimos. A escrita também é uma delícia.
Belo Mundo Onde Você Está?, da Sally Rooney, óbvio né, não vou falar mais desse livro do que já falei nessa newsletter inteira, exceto que é com certeza o melhor dela, embora meu preferido ainda seja Pessoas Normais.
História da Sua Vida e Outros Contos, de Ted Chiang, o Borges do século XXI. Não acredito que demorei tudo isso pra ler esse livro. Já quero ler o novo.
Eu vi:
Enquanto Somos Jovens, do Noah Baumbach (tá pra alugar no Apple+), que eu ainda acho super bem construído e um comentário social hilário, mas reassistindo achei o final preguiçoso. Bonequinha de Luxo, do Blake Edwards (baixei, tá em lugar nenhum) porque eu fiz aniversário e amo esse filme, mas da última vez que eu vi para essa muitos subtextos me pareceram mais explícitos do que eu lembrava. Shang-Chi (no cinema!!! Mas logo deve entrar no Disney+) e como eu gosto de um filme de super-herói idiota, todo filme de super-herói devia ser idiota, morte aos filmes pretensiosos da Marvel. Clube da Luta, do David Fincher (no Prime Video) e meus amigos, como pode esse filme ainda ser um puta filme??? Puta filme. Melhor ensaio a respeito da masculinidade contemporânea que já fizeram, te amo David Fincher.
De televisão eu tava lerdíssima e só vi a segunda temporada de Modern Love (no Prime Video). Fofa, mas a primeira é melhor.
O que eu ouvi:
Eu vou roubar nessa categoria porque eu acho que todos vocês deveriam ouvir pessoas inteligentes conversando sobre a melhor coisa da televisão atual, então na real é o que eu estou ouvindo e eu estou ouvindo o recap que o The Watch vai fazer de Succession.