No início do mês, quando eu escrevi sobre não ter gostado de Caderno Proibido aconteceram duas coisas que eu não esperava: primeiro, foi o post com mais respostas da história dessa newsletter; depois, muitos dos comentários tentavam reposicionar o que eu tinha dito elencando o que pra mim eram problemas do livro como qualidades.
Antes de começar esse texto, que reflete um pouco sobre essas coisas, eu quero deixar algo claro: isso não é de forma alguma uma crítica a quem comentou. MESMO. Na verdade, eu achei a coisa mais interessante do mundo. Primeiro porque isso é o que eu gosto de ter uma newsletter, acho que mais que qualquer espaço na internet hoje em dia, essas cartinhas que chegam no email de vocês permitem diálogo e troca verdadeiros e sei lá, mas não faz sentido ficar tendo diálogo se a gente só vai concordar. E depois porque como eu disse naquela newsletter, eu achei o texto difícil exatamente porque o livro não é ruim, eu acho o livro bom, mas eu, eeeeeu, não tinha gostado. E poder olhar para como nós gostamos ou desgostamos de uma mesma característica é algo fascinante.
Mas justamente, na internet do ano de 2022 nós termos conversado sobre opiniões divergentes me fez pensar em várias coisas que então eu quis organizar nesse ensaio para continuar a conversa.
A primeira coisa que me chamou atenção nas respostas àquele post, foi como muita gente quase pediu desculpas por ter gostado muito mais do livro do que eu. Eu entendo. Embora isso aqui seja só uma newsletter de internet, eu sou alguém com um doutorado em letras, eu trabalho oficialmente como crítica literária e pode parecer que de repente uma autoridade disse que essa coisa que você gosta é ruim. Por um lado, era eu mesma que eu estava colocando nesse lugar, mas deixando isso para lá eu me vi pensando o como a internet virou um lugar hostil para o gosto.
Porque o gosto não tem nada a ver com qualidade. Eu, particularmente, sou um grande fã da Saga Crepúsculo (minhas amigas amam essa informação), mas longe de mim defender Stephanie Meyer ou a atuação da Kristen Stewart naqueles filmes. Inclusive quando ela começou a trabalhar com o Olivier Assayas eu achei que ele tava muito doido porque essa mulher só tinha uma expressão. Mas boa parte do discurso online (no twitter, no instagram, no tumblr na época em que ele ainda permitia pornografia) iguala seus gostos a sua personalidade e se você não tem os gostos certos, você não tem a personalidade certa e então todos nós estamos sempre na defensiva sobre o que gostamos ou não.
Mais recentemente ainda, a opinião que temos sobre certas peças culturais se tornou um marcador de moralidade. Eu tenho um milhão de problemas com essa confluência entre política e moral que tem rolado e essa ideia de que ter a opinião política certa é ser uma boa pessoa (e mais ainda que ser uma boa pessoa é algo que a gente deveria almejar politicamente), mas isso é assunto para outra newsletter. Para essa a questão é que certas obras acabam se tornando Boas, porque levantam as questões certas, ou Problemáticas, porque não levantam, e nossa relação com elas nos coloca como pessoas Boas ou Problemáticas e ninguém quer ser uma pessoa Problemática na internet de 2022.
Eu não estou dizendo que exatamente essas coisas apareceram nas reações à newsletter do início do mês. Mas eu sou uma pessoa extremamente online que na maior parte do tempo escrevo para outras pessoas extremamente online e tudo isso de alguma forma molda como a gente se relaciona com o outro e com o mundo. Aliás, talvez esse seja o grande tema da minha ficção que existe só muito marginalmente porque eu nunca paro pra escrever, mas ENFIM. Essa divisão entre offline e online é coisa dos anos 90 e hoje como nós nos colocamos em todas as esferas se relaciona e é claro que como a gente reage a uma opinião sobre qualquer coisa tem a ver com como a gente sente que tem que se posicionar na internet.
E por que eu falo isso? Porque uma resposta que apareceu muito e me chamou bastante a atenção me dizia que sentir raiva da personagem, ou detestá-la, era um sinal de que o livro era bom. E eu super concordo com isso!!!! Eu concordo tanto com isso que eu odeio absolutamente todos os personagens da Série Napolitana, um dos meus livros preferidos da vida. E mesmo em Caderno Proibido, eu detesto o personagem da Valéria como “pessoa", mas o adoro como personagem. E é aqui que eu queria chegar.
Eu acho que cada vez mais a conversa sobre narrativas na internet junta essas duas coisas. Gostar de um personagem como “pessoa” (aqui estamos usando uma terminologia absolutamente técnica tirada das vozes da minha cabeça) quer dizer algo como eu gostaria de ser amiga dessa pessoa na vida real. Gostar de um personagem como tal quer dizer que você gosta de acompanhar os desenvolvimentos dele, mesmo que seja uma pessoa que você jamais iria querer chegar perto na vida real. Os dois se confundem e muita gente de fato tem dificuldade de gostar de obras quando não gosta dos personagens enquanto pessoa. Eu mesma sou alguém que meu tipo de personagem preferido é Daemon Targaryen (eu vou escrever uma newsletter só sobre o quão perturbada eu estou pelo quão sexy o Matt Smith está nessa série e não, eu não tenho terapeuta, é por isso que eu sou escritora). Mas era previsível que eu não ter gostado do livro seria lido como eu não gostar da Valéria e eu fiquei surpresa até por essa não ter sido uma resposta que eu havia esperado.
Eu não gosto da Valéria como pessoa, de fato, mas mais do que isso eu não gostei dela como personagem. Não é que as ações dela me deram raiva, mas que eu a achei desinteressante. O marido dela, por outro lado, uma pessoa terrível, eu achei um personagem interessantíssimo e talvez eu gostasse mais de um romance investigando a interioridade dele. Isso não é necessariamente um defeito do livro, isso é uma questão de gosto meu. Enquanto crítica, e agora sim vestindo o chapéuzinho oficial de trabalhadora da literatura, eu ainda acho que o livro tem problemas, não o suficiente para ser ruim. E certamente não existem problemas suficientes que impeçam alguém de gostar do que seja. Mas boa parte da minha resposta fala mais sobre mim do que sobre o livro, assim como os comentários que tentavam reposicionar meus sentimentos falavam mais do comentarista que de mim.
Porque fica aí a riqueza da literatura quando é boa, ela servir pra nos revelar a nós mesmos.
Quando vai sair seu livros de ensaios? Adoro tudo que você escreve <3
Isa, a impressão que tenho é que as pessoas estão há tanto tempo acostumadas a estarem em redes sociais baseadas na validação de uma imagem positiva (olá, Instagram! olá, Twitter!) que meio que se sentem meio intimidadas quando chegam a um espaço onde podemos discutir com mais calma e foco, daí esse sentimento de quase que pedir desculpas por discordar de alguma coisa.
Quanto ao ponto pessoa vs. personagem, seu texto me lembrou uma das opiniões mais burras que eu li no Twitter, quando um usuário famoso disse que Seinfeld é uma série que envelheceu mal porque "os personagens hoje seriam eleitores do Partido Novo" (lembrar dessas palavras sempre me dá raiva rs). E é bem isso: nem de longe eu seria amigo na vida real de um Jerry ou um George, mas é justamente como personagens - o ego inflado, a misantropia, a mesquinhez, entre tantos outros pecados - é um dos motivos que faz que a série seja tão interessante para mim.
Abraço!