No dia, em outra vida, outro mundo, em que foi anunciado que a Greta Gerwig ia dirigir um filme da Barbie, eu confesso que fiquei cética. Não por ela, que é uma das minhas autoras preferidas, mas porque eu não sabia se ela ia encarar a galhofa da coisa toda, a despretensão que era o único jeito desse projeto dar certo. Ela obviamente fez essas coisas, mas na época me pareceu que talvez a Greta fosse cool demais para um filme da Barbie.
Eu devia saber melhor do que isso.
Eu lembro (e por motivos que ficarão claros a seguir eu nunca vou esquecer) do dia de 2013 em que eu entrei para ver Frances Ha. Eu estava ansiosa pelo filme, tanto porque eu sou clichê suficiente para amar filmes em preto e branco quanto porque eu já era fã do Noah Baumbach, mas de alguma forma eu não estava pronta para a exata sensação daqueles anos ter sido captada em um filme. Assim como a Frances, eu tinha ambições artísticas. E assim como ela era difícil dizer o que eu fazia, porque eu não realmente fazia. Eu era acadêmica quando eu estava só no mestrado? Eu queria ser escritora, mas eu era uma? Eu sentia uma dissociação muito grande entre como eu pagava as contas e o que eu Fazia, mas eu ainda não tinha visto isso captado assim.
Eu também não sabia dizer, mas eu soube quando vi isso em tela, que o relacionamento mais importante da minha vida era com a minha melhor amiga. Que havia algo nessa relação que me revelaria para mim mesma mais do que todas as outras. Eu não era “undatable” exatamente porque a deusa sabe quantos dates eu ia na época, mas eu me sentia impossível de certa forma.
Tudo isso eu articulei mais tarde, no dia em que eu saí do cinema eu só me senti Vista. E aí o cara com quem eu estava ficando há um ano terminou comigo como se a gente estivesse saindo há duas semanas. Literalmente quando eu saí da sessão. Se eu fizesse um filme em que a personagem sai de uma sessão de Frances Ha e leva o fora que eu levei as pessoas diriam que era uma referência óbvia demais, mas essa é a vida. Acontece que eu nunca mais consegui desassociar esses dois acontecimentos não só porque óbvio, mas porque de uma certa forma um deles reforçou o outro. O fora patético que eu levei fortaleceu a experiência do filme que eu tinha visto me tornando ainda mais a Frances. Undatable.
O que os anos me ensinaram, sobre esse filme, sobre mim e sobre a Greta, é que o que me tocou é uma coragem muito peculiar dela de ser uma mulher que se expõe assim. Imperfeita, desconfortável, desengonçada. A Greta não é linda no padrão atriz de Hollywood, ela é grande demais e talvez fale gesticulando demais. A Frances é egocêntrica e iludida e eu entendo todas as pessoas que acham esse filme muito classe média sofre, mas me parece que a beleza dele está ali. Numa autora que não teve medo de colocar (e se colocar) uma mulher desgostável na tela. Uma mulher que ainda não era uma pessoa de verdade.
Eu sinto que essa busca por se tornar uma pessoa de verdade é um dos grandes temas da Greta. Quando uma mulher vira um indivíduo e por que é diferente de quando um homem o faz.
Eu penso na cena final de Ladybird, quando a Christine deixa um recado para os pais e diz “essa é para minha mãe” e fala sobre uma sensação específica de liberdade e nostalgia. Ela e a mãe não estão se falando a essa altura e essa não é uma história de “minha mãe é minha melhor amiga, minha grande influência, me ensinou a ser mulher", mas ainda assim há um entendimento de que a liberdade nunca tem o mesmo gosto para as mulheres. Que dirigir sozinha, os vidros abertos, na cidade em que você cresceu, vai ser sempre outra coisa.
Penso também como um pouco a jornada da Christine é deixar de se definir pelos homens, de querer ser definida por eles, para se construir com mulheres. Ela acha que o olhar do Timothé Chalamet vai torná-la alguém, mas no fundo é ela mesma que precisa fazer isso. Eu não sei se algum homem já teve a esperança (triste, mas também, as vezes, um alívio) de ser feito pelo outro da mesma forma.
Pensando por esse ângulo, nada mais óbvio do que um filme sobre a Barbie. Não apenas porque uma boneca é a metáfora óbvia para algo que é fabricado por outro (Coppelia, Pigmalião, temos mil histórias clássicas sobre dar vida a uma obra), mas porque a Barbie em si, essa boneca, nesse mundo, se faz de formas muito diferentes dependendo de quem olha.
Em um perfil da Greta Gerwig feito para o New York Times, a jornalista disse:
Gerwig leaped right to what else Barbie is: a potent, complicated, contradictory symbol that stands near the center of a decades-long and still-running argument about how to be a woman.
“Um símbolo potente, complicado e contraditório". Eu sempre brinquei de Barbies. Junto com um conjunto de playmobil estilo era vitoriana que só vendia na Europa (deem um Google, é a coisa mais a minha cara que já existiu) Barbies eram meu brinquedo preferido. Eu amava as roupas, os sapatos, o Mustang vermelho conversível e eu amava que elas eram ginastas, sereias, professoras, atrizes. Eu tive até uma Barbie cineasta. Eu tinha um único Ken e esse Ken era o Alladin e claro, a ausência de homens não impedia minhas Barbies de ter uma vida, digamos, sexual ativa. Para mim, a criança de classe média alta em uma família de intelectuais, aquilo era um material para contar histórias, um material sem fim de possibilidades.
Ao mesmo tempo, é claro que a Barbie é uma mulher impossivelmente magra e linda e quando eu brincava com ela sempre loira de olhos azuis. Eu posso enquadrá-la ao mesmo tempo como algo que me autorizava a ser ambiciosa e hiper-feminina e algo que me obrigava a ser ambiciosa e hiper-feminina. A Barbie ao mesmo tempo diz que você pode pilotar um avião de salto alto e que você TEM que pilotar um avião de salto alto.
Eu tenho pensado muito nessa questão e ela me pega de uma forma visceral: eu gosto de roupas e maquiagem e uma série de coisas tradicionalmente femininas e eu me recuso a vê-las como fúteis e não uma forma de expressão. Por outro lado, a beleza é uma moeda de troca poderosa demais quando se é mulher e eu me vejo constantemente ansiosa coma possibilidade de perde-la. E revoltada que ela deveria importar tanto. E ansiosa com perdê-la. Eu sou, de muitas maneiras, uma mulher ciente das armadilhas do padrão de beleza, presa nelas e beneficiária delas.
O que o mundo me diz é que eu preciso ser bonita. O que eu acredito é que eu não deveria me importar com isso. A realidade é que o mundo te recompensa por obedece-lo. A Barbie cai na mesma armadilha: ela quer te dizer que tudo bem ser ambiciosa e gostar de batom. O que ela acaba te dizendo é que você precisa gostar de batom e ser ambiciosa.
O filme sabe disso. O monólogo da America Ferrera vai exatamente no ponto de como se espera que sejamos tudo o tempo todo e isso é completamente impossível. Acontece que ao mesmo tempo, ele dá uma solução para a consequência mais paralisante dessa exigência que é, como ninguém é tudo o tempo todo, todas nós nos sentimos insuficientes o tempo todo. Mas porque deveríamos ser tudo, ninguém é capaz de enxergar a própria insuficiência pela realidade que ela é e todas nós estamos sempre andando por aí nos crendo GRANDES FALHAS.
Não as Barbies. Uma Barbie ouve que é a voz de sua geração e diz “eu sei". Eu absolutamente não sou essa pessoa. Se um dia eu ganhar um Jabuti eu subir lá em cima e dizer que todos os outros indicados mereciam mais do que eu. Em parte porque as vezes eu acredito nisso, em parte porque eu me sinto muito compelida a performar o tempo todo o que se espera de mim que é não acreditar que eu sou suficiente. Toda vez que eu me pego muito segura de algo, muito certa dos meus próprios talentos, eu sinto imediatamente uma obrigação de baixar minha bolinha, de me colocar no meu próprio lugar. Achar que eu sou menos do que eu sou é ok, achar que eu sou mais é um defeito imperdoável.
Esse movimento tem o efeito muito real de manter as mulheres fora dos lugares. E de manter todas nós colocando rios de energia em primeiro se convencer de que você deveria tentar, depois controlar o sentimento constante de insuficiência e ainda ter uma aparência perfeita ao longo de tudo isso. Como disse a America Ferrera, é literalmente impossível ser mulher.
Mas não é impossível ser uma Barbie. E curiosamente não era impossível ser Jo March no Mulherzinhas da Greta Gerwig. Ou ser a Frances Ha, por mais undatable que ela fosse e eu acho que é aqui, nesse lugar, que está o projeto feminista da Greta. A Barbieland nos dá a imagem do que pode ser um mundo em que as mulheres não se sentem insuficientes o tempo todo e não te engana que isso é por acaso. Elas são assim porque a estrutura do mundo delas é assim. Mas constantemente, em vários outros pequenos momentos, ela se colocou nesse lugar, ela colocou as personagens dela nesse lugar. Nenhuma delas perfeitas. Nenhuma delas sentindo que devia pedir desculpas por isso.
tempos atrás eu vi um vídeo que falava que os dinamarqueses aprendem desde cedo que ninguém é melhor que ninguém (só não lembro se a régua era "todos somos bons o suficiente" ou "ninguém é bom o suficiente"), e isso reflete no modo deles de se vestir e de evitar chamar a atenção o tempo todo. aparentemente fui criada por um pai que segue esses princípios sem ser dinamarquês e sem estar na dinamarca, rs, (claro que com a régua de que eu nunca poderia me achar melhor do que ninguém e não do somos todos iguais) e isso refletiu de forma muito ruim no meu comportamento como adulta porque eu realmente não me acho boa o suficiente em nada e levanto, frequentemente, os mesmos questionamentos que você levantou no texto. e, escrevendo esse comentário, agora me questiono se as crianças dinamarquesas são criadas sem comparativos e se eu fosse criada dessa forma, nesse momento, se eu me sentiria uma pessoa de verdade.
Que alívio e empolgação esse texto proporciona! Obrigada por nos oferecer essa reflexão sobre esse algo incaptável da mulher profissional que está sempre preso na garganta.