Eu tenho, e a essa altura isso já é minha fama, uma contradição literária importante: apesar de todo meu feminismo e de todo meu interesse em estar sempre analisando peças culturais pela ótica feminista, de tudo que eu já falei sobre a minha incapacidade de encontrar qualquer coisa sem lembrar que eu sou uma mulher e vivo no mundo como mulher, eu amo um bom livro de hominho. Não só um livro escrito por um homem, mas aqueles que o pior homem que você conhece cita como favorito: Thomas Pynchon, Kerouac, Cormac McCarthy, eu fui e fiz um doutorado sobre o Philip Roth, de todo mundo. Eu amo uma obra escrita do absoluto egocentrismo de um pinto, aquilo que sai da cabeça de escritores que não consideram muito sua própria condição de homem ao escreverem para homens sobre homens.
Parte desse gosto indefensável é só preferência estética, mas parte é porque embora pensar seriamente a experiência de mulher seja um dos meus eixos intelectuais centrais, eu também sou infinitamente, de uma maneira quase sedenta, fascinada pela masculinidade.
Porque vejam, a gente tende a pensar o masculino como neutro, todo mundo sabe disso. A experiência de ser mulher é experiência de ser mulher, mas a de ser homem é só experiência, assim como a branquitude tende a ser neutra, a heterossexualidade, etc etc. Um romance escrito por uma mulher é um romance escrito por uma mulher, um romance escrito por um homem é só um romance. Um romance de formação de uma mulher é o romance de formação de uma mulher, as o romance de formação de um homem é só um romance de formação. Exceto que não é.
O neutro é neutro porque é o padrão que se estabeleceu e contra o qual o outro precisa escrever. É quando o Edward Said fala do romance de contraponto, ele é contraponto porque você, excluído do cânone precisa escrever contra o cânone, se batendo com ele. E quando você se bate com algo fica bem claro que a neutralidade não é nenhum pouco sem corpo, nenhum pouco neutra.
Eu estou pensando em tudo isso porque nos primeiros dias de janeiro eu li A Educação Sentimental, do Flaubert, um romance de formação daqueles que você poderia usar para dar uma aula sobre “a estrutura do romance de formação". Eu não vou fazer isso aqui (só um pouco), mas eu faço isso toda vez que dou uma aula sobre Elena Ferrante e eu quero seguir nesse texto essa linha, sobre por que raios toda vez que eu falo de uma escritora do século 21, eu sinto que preciso voltar nessa forma do século 19 e por que falar de uma escritora que pensa a jornada intelectual de mulheres me faz sempre pensar no modelo “neutro” do que é uma formação.
Escolinha rápida de conceitos literários pra gente seguir em frente: o romance de formação é um termo do século 19 pensado basicamente para definir Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, mas que no geral está falando de livros em que um protagonista (nem seeempre um homem, mas normalmente um homem, vamos falar disso) se faz no mundo enquanto indivíduo. Porque essa é uma forma literária do auge do capitalismo, isso quer dizer que ele vai ter que se libertar das expectativas e demandas de sua família e comunidade e também ascender socialmente. Não é o ponto aqui, vocês podem ir ler sobre isso em teóricos sérios, mas existe uma relação direta entre a ideia capitalista do que é um indivíduo, as possibilidades de mobilidade social que a modernidade traz e a estrutura do romance de formação.
E daí vejam, eu falei que o protagonista não é necessariamente um homem, mas uma mulher também não é bem um indivíduo dentro da ótica capitalista. Mais do que isso, se libertar das amarras comunitárias, viajar o mundo e ascender socialmente por si só são coisas que nesse período são dadas apenas aos homens. Os teóricos sérios que vocês podem ler vão apontar Jane Eyre e Orgulho e Preconceito como possíveis romances de formação com protagonistas mulheres, mas o que significa virar uma pessoa quando você é mulher, especialmente do ponto da, ahem, educação sentimental, é radicalmente diferente e nenhum livro me fez pensar tanto nisso quanto esse.
Porque A Educação Sentimental começa com Frédéric, um jovem meio aristocrata, mas também meio remediado, fazendo uma viagem de barco na qual ele conhece uma mulher, mais velha e casada, por quem ele se apaixona à primeira vista. Frédéric é um fissurado em livros românticos (e o que isso faz com ele versus o que faz com Emma Bovary é uma linha interessante que eu pensei agora, mas não vou seguir) e sonha que o que vai fazer sua vida ser uma VIDA é viver um grande amor. Claro, cara. Enfim, uma série de coisas acontecem, ele vai pra Paris, ele volta de Paris, franceses queimam coisas, ele tem um caso com uma démi-mondaine (eu amo essa palavra), mas segue sempre apaixonado pela Sra. Arnoux, a melhor mulher de todas, a mais bonita, a mais virtuosa, uma santa.
Ele sabe de todas essas coisas sobre ela quando se apaixona? Não, quando se apaixona ele não sabe de absolutamente nada sobre ela. Mas ele se apaixonou e portanto, porque ele se apaixonou, ela deve ser todas essas coisas. Uma das coisas que torna esse livro excepcional é que embora o Frédéric seja um homem medíocre incapaz de olhar para mulheres sem ser como objetos, o Flaubert não é isso. O Flaubert é o homem que escreveu Madame Bovary e mudou minha vida e a da Ferrante e de várias outras mulheres leitoras que eu conheço. Ele, enquanto escritor, está ciente da falsidade da dinâmica de apaixonamento do Frédéric e nos mostra isso diversas vezes, o que por sua vez foi o que me permitiu entender esse movimento e extrapolar daí.
É importante para o Frédéric que ele ame uma mulher perfeita. Em diversos momentos, o Flaubert nos mostra vacilos na perfeição dela que o Frédéric precisa fingir não notar, já que se ela fosse imperfeita não seria digna do seu amor. Vejam, ele não a ama porque ela é perfeita, ela é perfeita porque ele a ama. Se as qualidades da Sra. Arnoux precedessem o apaixonamento, então esse seria uma relação de duas vias, um sentimento causado pela subjetividade do outro. Mas porque o apaixonamento precede essa ilusão de perfeição ela não pode, nunca, ser um sujeito e seguir sendo amada.
Pois é.
Agora vamos parar um minuto para a descrição que a Jane Eyre nos faz do Sr. Rochester:
Altura média e peito consideravelmente largo. Tinha um rosto moreno, com traços severos e uma fronte pesada: os olhos e as sobrancelhas unidas pareciam irados e frustrados naquele momento; ele ja passara da juventude, mas ainda não chegara à meia idade; teria talvez uns trinta e cinco anos. Eu não sentia medo dele, e apenas um pouco de timidez. Fosse um jovem cavalheiro bonito, de aparência heróica, eu não teria ousado ficar assim a questioná-lo
Leitor, ela casou com ele. Mas ele não é, de forma alguma, um ideal de beleza. Jane inclusive nos diz com todas as letras que se ele fosse bonito ela não teria sentido a atração que sente. Mesmo quando eles se conhecem mais a fundo e Jane o considera uma alma gêmea isso não o transforma em nenhum ideal de homem ou virtude. Ela sabe quem ele é e é por isso que a confissão final - “leitor, eu me casei com ele” - soa quase como quando você conta envergonhada para sua amiga que voltou com aquele ex que ela jurou de morte.
O mesmo movimento acontece em Orgulho e Preconceito. Ok, o Sr. Darcy é mais bonito e eventualmente Elizabeth passa a ver nele um homem inteligente, correto e leal, mas isso não apaga seus defeitos de ser orgulhoso e desajustado social. Tanto para Jane, quanto para Elizabeth o conhecimento do sujeito precede o apaixonamento e mesmo a paixão não apaga os defeitos deles aos olhos delas. Elas amam, como indivíduos, outros indivíduos.
Mas tem uma outra questão. Eu falei que o romance de formação exige uma ascensão social do protagonista. Acontece que, embora Frédéric e Wilhelm Meister e David Copperfield possam conquistar seu lugar no mundo por eles mesmos, Jane Eyre e Elizabeth Bennet só podem subir se forem escolhidas como esposas por um homem em posição superior. Aqui estamos falando de elevação econômica concreta, mas o processo simbólico me parece relevante: enquanto mulher você é elevada pelo olhar de um homem, não importa o quão imperfeito ele seja.
Já enquanto homem, você se eleva por si mesmo e o fato de que seu olhar, dotado de um gosto impecável, escolheu uma mulher sem defeitos te valida. Nas palavras da poeta Taylor Swift:
The idea you had of me, who was she?
A never-needy, ever-lovely jewel
Whose shine reflects on you
No fim, o que a estrutura desses romances de formação nos diz é que um homem se faz por si mesmo e sua escolha de mulher coroa uma subjetividade formada sozinha. Que o Flaubert, um homem mais perceptivo às dinâmicas de gênero que a média, perceba isso e satirize um pouco não tira a realidade, a sátira faz sentido quando pode ser encontrada na vida. Por outro lado, uma mulher se faz quando olhada, quando escolhida por um homem que não precisa ser perfeito, ele só precisa te ver como válida.
Vamos pensar agora na Ferrante e aquele momento ainda no primeiro livro em que a Lenu se apaixona pelo Nino. Ela se apaixona porque ele lhe parece inteligente e interessante, mas principalmente porque ela parece inteligente a ele. O fato de que ele olha para ela e enxerga um potencial a eleva, a faz pessoa. E esse barato, minhas amigas, ele é suficiente pra você arrebentar sua vida inteira atrás desse homem.
Em vários momentos da tetralogia é o olhar do Nino que impele a Lenu a se fazer, a pensar, escrever, largar o marido, sair pro mundo. Ela é constantemente feita pelo olhar dele. Mas a Ferrante não é um escritor do século 19. E ela não é um homem. E porque ela não é nenhuma dessas coisas a validação do Nino é também ilusória, ela desmonta quando ele é pego comendo a empregada feia de um jeito grotesco no banheiro da casa (sim, spoiler, se você tá aqui e não terminou a tetralogia, o que você tá fazendo aqui?). Ele, e Lenu, acreditavam nele como Frédéric acredita em si: o olhar ordenador do mundo capaz de elevar mulheres à deusas. Mas ali, naquele momento, a Elena percebe que ele não pode fazer isso.
Na Frantumaglia, quando conta da sua experiência com Flaubert, a Ferrante fala de um fascínio por uma frase de Madame Bovary, quando Emma diz da filha “como é feia essa menina". Toda a obra dela gira mesmo um pouco em torno disso, de mulheres sendo feitas feias, belas, inteligentes, burras, boas ou más pelos olhares dos outros. Olhares mais complexos, porque ela é mais complexa: de homens sim, mas também das mães, da melhor amiga e, lá no fim, bem no fim, de si mesma.
Porque ela não é um escritor do século 19, mas mais do que tudo porque ela não é um homem, a Ferrante escreve protagonistas com a possiblidade de formarem elas mesmas. Mas o caminho, o caminho é um horror.
Vista da semana
Li, na semana passada, Tédio Terminal, da Izumi Suzuki. Gostei, deixei umas ideias sobre ele no Instagram e to pensando se trago para cá.
No dia da morte do Lynch me senti compelida a uma homenagem e vi Lost Highway, amo como ele usa clichês do noir e uma trama a la Vertigo para explorar o aspecto de delírio dessas formas
Também assisti Swimming Pool, um filme do Ozon que eu amo, ficou anos impossível de achar e agora tá passando no Mubi (deixei link de 30 dias grátis pra vocês porque eu sou legal). Gosto muito das associações entre desejo sexual e apetite, do aspecto onírico e da vibe thriller de verão. Vai aparecer num ensaio aqui breve.
Por fim, vi Nosferatu, mas esse obviamente vai ganhar um texto só pra ele.
Saí de Babygirl e lembrei de Annie Ernaux, texto excelente da
Nunca tinha pensando no olhar nos diferentes romances de formação, mas, de fato, a mulher se faz quando se vê sendo vista e o homem ocupa a posição ativa de quem olha (pra si e pras mulheres). Ótimo texto!
Isadora, você já leu o homem não existe?