Eu me lembro com uma clareza extraordinária da primeira vez que vi Encontros e Desencontros. Era 2004, início do ano, eu morava no interior de São Paulo, em uma cidade que nem é pequena, mas que é um fim de mundo espiritual que me traumatizou para o resto da vida. Eu me lembro da cena de abertura, a paisagem nublada de Tóquio na janela, a bunda da Scarlett Johansson em uma calcinha rosa transparente e da minha sensação desde aquele instante de que eu estava vendo algo novo para mim.
Em 2004 eu tinha 15 anos e vivia em São José dos Campos. Hoje, se me perguntassem se eu preferia ter um braço amputado a sangue frio ou morar lá de novo eu escolheria a primeira opção. Eu morei em muitos lugares depois, eu peguei ônibus infinitos que cruzavam Los Angeles a noite só para não contemplar mais um sábado a noite em casa, eu senti a solidão de ser abandonada e a solidão do estrangeiro. Eu senti muitas solidões. Nunca, nada como a que eu experimentei naqueles anos. Nada como o vazio sem ar e a câmera de eco que era meu pequeno mundo na adolescência. Nada como a angústia de que o quer quer fosse aquilo, não era vida, que eu estava só esperando. Esperando por coisas que aconteceriam, esperando por conversas que eu poderia ter, esperando para ser eu mesma.
Em determinado momento do filme, ainda contra a janela pela qual vemos a paisagem nublada de Tóquio, Charlotte tenta ligar para uma amiga. Ela fala palavras, a amiga fala palavras, elas não conversam. Desesperada de incomunicabilidade, Charlotte chora e então diz que não é nada, tudo bem, tchau. Eu lembro fisicamente de ver essa cena pela primeira vez. Eu lembro de sentir aquele diálogo no meu corpo.
Eu não tinha muita opção depois disso exceto achar que a Sofia Coppola era a artista mais relevante da minha vida, portanto eu fui até a Blockbuster local (aham) e encontrei não sei bem em que sessão As Virgens Suicidas, um filme que minha mãe lembrava por alto de ter visto no cinema e ser “muito esquisito". Eu tenho poucas lembranças dessa primeira vez, exceto, mais uma vez, da sensação corporal. Do encanto com as cores, a luz, a Kirsten Dunst. E da compreensão que correu pelos meus órgãos quando a Cecília diz “é óbvio, doutor, que você nunca foi uma garota de treze anos".
Eu já falei aqui do meu incômodo particular quando vejo gente da minha idade nostálgica pela infância na internet, da onda de ódio que me toma quando vejo posts querendo voltar para uma época sem responsabilidades. Eu acredito em todas essas pessoas, de verdade, não é daí minha repulsa. Não é porque eu duvido que elas tenham sido mais felizes quando tinham, 5, 6, 12, 15 anos. É porque eu não fui. E eu não fui de uma forma que até hoje eu consigo recuperar a sensação física. Nada na minha vida nunca mais foi tão ruim quanto ser uma garota de 13 anos.
Acontece, que embora a gente cresça, nós não abandonamos nossa forma anterior como uma lagarta. O corpo que eu trago hoje, a pele dentro da qual eu vivo, é a mesma que teve 13 anos. A mesma que chorou sozinha em uma sessão do meio da tarde de Encontros e Desencontros. em um verão modorrento no fim do primeiro ano de ensino médio, um ano em que eu sentira desejo, abandono e incompreensão em quantidades que eu não sabia absorver.
We felt the imprisonment of being a girl, the way it made your mind active and dreamy, and how you ended up knowing which colors went together — The Virgin Suicided, Jeffrey Eugenides
Nesse fim de semana eu reassisti As Virgens Suicidas. Não foi a primeira vez, ou segunda, ou décima, mas mais uma vez eu me senti comovida por como o filme captura a experiência de ser adolescente em um subúrbio entediante. Tocada por como tomadas do céu sem nuvens parecem tão sufocante. E também intrigada pela reação quase fisiológica que eu sigo tendo por essas imagens.
Eu estava pensando nisso, tentando organizar ideias para uma newsletter quando ouvi um podcast da London Review of Books chamado How to Plot an Abortion
Quando eu dei play, eu achei que plot vinha no sentido de planejar, que seria um podcast talvez entrevistando mulheres que vivem onde o aborto é ilegal (oi, gente) a respeito de como elas chegaram lá, como conseguiram. Ou organizações que oferecem abortos ilegais falando de como isso era feito. Mas não, plot aqui é trama, no sentido literário. Como ficcionalizar um aborto. Como escrever sobre um aborto.
O podcast começa, claro, mencionando a Annie Ernaux, mas não O Acontecimento, que só aparece mais para frente. O livro que a entrevistada começa citando se chama Les Armoires Vides, algo como os armários vazios em francês. É um romance dos anos 1970 e nele a protagonista fala do próprio corpo pós-aborto como os armários de uma cozinha quando tudo aquilo que foi comprado para alimentar a casa já acabou. Ela fala também (ao menos segundo a entrevistada desse podcast) de como ela buscou na literatura representações da sua experiência e não encontrou.
Eu parei nessa hora, eu sabia que eu havia encontrado algo importante.
A entrevistada continua, mencionando uma tese do Bourdieu que considera que em muitos sentidos a literatura é o que nos ensina a sentir. Eu acho que, claro, no mundo como é hoje nós podemos falar da cultura em geral, mas o ponto é que nossos sentimentos e nosso entendimento do mundo não se forma no vazio, ele é moldado diretamente pelas representações de sentimentos e do mundo que nós encontramos na ficção. A Ernaux fala disso em A Vergonha, de como a literatura clássica francesa junto da publicidade ensinou a ela a forma apropriada — ou seja burguesa, ou seja não a da família dela — de se viver. Eu venho pensando obsessivamente nisso, nesse projeto muito louco de voltar na literatura de mulheres desesperadas como Madame Bovary e Anna Karenina e pensar se o que esses livros me disseram que era amor não era só desejo.
Porque seguir essa linha do Bourdieu tem algo de bonito e algo de perverso. É claro que é bonito para todos nós que lidamos com literatura pensar que a ficção reflete o mundo e faz o mundo ao mesmo tempo (eu mesma escrevi sobre isso outro dia), ou que as pessoas buscam nas palavras dos livros um guia para como sentir, como ser uma pessoa no mundo. Mas aí eu sou uma mulher. E todas essas mulheres, as que me ensinaram sobre se jogar embaixo de um trem por conta de um amor desesperado, foram escritas por homens.
Se a literatura nos ensina como sentir e a composição apropriada do mundo (e aqui a gente pode pensar que não precisa ser a composição burguesa, mas podemos reformulá-la, etc, etc) ela também me ensinou que na composição apropriada do mundo eu sou olhada. Essa linha que eu quero seguir com esses livros não se dissocia disso, uma vez que o que eu quero é investigar o quanto o que eles estavam fazendo era domesticar esses sentimentos, era fabricar o universo em que o sentimento correto para uma mulher é amor, não desejo. O quanto tudo que habita a nossa interioridade não é nosso, mas imposto, criado em um corpo outro e transplantado, como um órgão que não nos pertence.
Eu penso na Ernaux comparando o corpo pós aborto com armários vazios e frustrada porque não encontrava na literatura nada que lhe falasse dessa experiência. Ano passado, quando O Acontecimento saiu aqui e todas as minhas amigas estavam lendo, uma delas comentou com um homem do desconforto físico e da angústia desse livro e ele disse algo nas linhas de “eu entendo". Ela me contou isso e mesmo antes de saber por que ele tinha dito isso eu me senti indignada, uma vez que nenhuma justificativa poderia realmente fazer sentido. Isso porque o aborto é uma experiência do corpo e ele não habita o mesmo corpo para quem isso é possível.
Seguindo essa linha de raciocínio, mais uma vez eu acho que encontrei algo.
Eu, como muita gente, só fui ler a Ernaux pela primeira vez quando os livros dela começaram a chegar aqui e eu senti uma revelação parecida com aquela tarde no cinema em 2004. Uma sensação de que meu corpo compreendia aquilo. Uma sensação de por que essa outra mulher havia criado essa peça de arte eu agora talvez pudesse criar.
Eu venho dizendo muito de como a Ernaux reorganizou as coisas para mim, de como tudo que eu achava que era a escrita e a minha escrita foi revolucionado pelo encontro com ela. Isso é verdade. Ao mesmo tempo, eu não entendia bem o por que. Não tem problema e eu não estava tentando entender, eu só sentia que algo me tinha sido revelado e de repente eu era capaz de uma escrita que eu não era antes. Me parecia ter algo a ver com a validação dos sentimentos e da experiência que ela faz, da restauração de uma certa dignidade que o resto da literatura tira das mulheres. Então, ouvindo esse podcast eu entendi.
É o corpo.
Porque o projeto da Ernaux não é apenas autobiográfico, mas o de uma investigação de como a subjetividade dela é formada pelas correntes sócio-históricas: o nascimento nas classes mais baixas, a passagem para a classe média burguesa, a sofisticação do capitalismo de consumo, o gênero. Ela não conta a história da própria vida para falar da própria vida, mas para falar de como a maneira que ela sente e pensa é condicionada por seu lugar de classe e gênero. O como a experiência coletiva de ser uma mulher a forma. O como a experiência coletiva de viver nesse corpo forma todas nós.
O que tem me deixado tão transtornada na escrita dela é que é uma escrita encarnada e ciente dessa encarnação. É lógico que toda escrita parte de um corpo, todo texto nasce de mãos que empunham uma caneta ou deslizam por um teclado, contudo, as dinâmicas de poder do mundo permitem aos homens terem uma experiência neutra da própria fisicalidade. O corpo deles não é um corpo e portanto a mente não é determinada por esse corpo. É só o mundo, só a realidade. Mas, de novo, eu sou uma mulher.
Porque eu sou uma mulher, quando eu encontrei Madame Bovary aos vinte anos, algo ali me encantou e algo sempre me pareceu fora de lugar. Eu amo coisas demais nesse livro e ao mesmo tempo Emma sempre me pareceu artificial, fugidia, eu não tenho nenhuma memória física dela como tenho de Cecilia Lisbon, da Ernaux personagem, da Lenu. Ela não é um corpo como eu sou um corpo, ela não é o mesmo corpo que eu.
Eu não quero dizer com isso que nós não podemos ler ou escrever sobre corpos que não são os nossos. Mas que o vai e vem entre a literatura que reflete o mundo, que faz o mundo e os corpos que fazem essa literatura e consomem essa literatura não é neutra. Que há um habitar do corpo. Que talvez seja por isso que eu sigo tão interessada em questões de romance, sexo, desejo, relacionamentos e por que me parece o tempo todo tanto que elas têm a ver com desvendar meus caminhos na literatura. Escrever um aborto quase escapa à ficção porque talvez pouquíssimas experiências nos levem da mesma forma aos limites do corpo, a um corpo inegável, inescapável. Ao corpo que todos esses autores homens não podem imaginar.
O corpo que eu sinto contrair toda vez ao ouvir que a vida nunca fica tão ruim quanto para uma menina de treze anos.
Por isso não me convenci que a ferrante é um homem.
Meu analista morreu, ainda estou de luto, não consigo procurar outro... Ler esse texto hoje foi muito importante, me levou pra lugares onde eu costumava ir na análise, obrigada.