Quando eu vi o trailer de Todo Tempo que Temos pela primeira vez eu xinguei todos os responsáveis por terem colocado dois dos meus atores preferidos em um filme que parecia ser tudo que eu mais detesto. Não é nem que eu odeie filme de gente doente, ou morrendo, mas nada me irrita mais do que o filme engenhado para te fazer chorar. Eu acho tristeza uma emoção barata e o truque mais vagabundo que qualquer narrativa pode usar é iludir o receptor de que ele experimentou algo de profundo simplesmente porque ele ficou triste (e sim, eu estou falando com você Uma Vida Pequena).
Melancolia é uma coisa. Te fazer contemplar o como a morte é súbita, inevitável e injusta (como faz o Almodóvar em O Quarto ao Lado) é uma coisa. Criar uma narrativa em que coisas horríveis acontecem e você tenha que confrontar a miséria humana também. Tristeza é outra coisa. E pior ainda: fazer o espectador ou leitor chorar é apenas caso de criar empatia suficiente por um personagem raso suficiente e ter algo horrível acontecer com ele. Acho que existe lugar para isso, como acho que existe lugar para todo o entretenimento (e as vezes chorar é um entretenimento), mas é barato e vazio. E eu odeio.
Mas eram dois dos meus atores preferidos, então eu fui ver o filme. E ele é isso, mas também não é. Infelizmente, eu detestei ainda mais.
Isso porque, e eu sempre dou crédito onde ele é devido, o filme é bastante bem feito. Claro, ele conta uma história triste e no fim das contas é esse sentimento que ele quer provocar, mas na maior parte do tempo isso é feito com uma mão leve, permitindo que o que há de trágico nessa história se desenvolva mais ou menos naturalmente. Os diálogos são espirituosos, há momentos engraçados, o filme quer fazer algo mais do que te deixar triste, ele se supõe uma reflexão sobre o tempo, a vida, a inevitabilidade da morte, quão fugidias são todas as coisas.
Eu respeito isso. É uma história triste, mas que se acha melancólica. É um filme que no fim não se sustenta se o espectador não chorar, mas fazer o espectador chorar não é o objetivo maior dele. O diretor espera que você chore porque pensou em coisas e não só porque ele torceu seu braço com recursos já bem testados do cinema clássico. Tudo bem, aqui eu fui surpreendida.
Mas eu também fui surpreendida pelo quão absolutamente machista e conservadora é essa história. E é disso que a gente vai falar porque essa é minha newsletter e eu preciso tirar isso tudo de dentro de mim.
Todo Tempo que Temos é a história de Almut e Tobias, um casal que se conhece porque ela o atropela no dia em que ele assinou os papeis de divórcio do primeiro casamento. Acho fofo como Hollywood decidiu acomodar que a trajetória das vidas hoje é um pouco menos linear e ninguém encontra o amor da vida toda na primeira tentativa. Desde que encontre na segunda, é claro, mas a gente chega lá. Enfim, eles se conhecem assim, se apaixonam e começam um relacionamento.
Porém, ambos tem mais de 30 anos e é claro (claro!) que quando você é uma pessoa de mais de 30 anos em um relacionamento de algumas semanas, você decide conversar sobre filhos. Afinal, se vocês não tiverem essa conversa, então todo esse apaixonamento e dias gostosos não servem para nada e ninguém com mais de 30 anos tem tempo a perder apenas se apaixonando. Por favor millenials, vamos acompanhar o programa. Então eles tem essa conversa. Ou melhor, Tobias começa essa conversa, Almut fica (justificadamente) puta, mas depois isso passa porque sim. Sei lá. Eles são almas gêmeas e é por isso que as coisas nesse filme acontecem.
Acontece que nessa conversa, Tobias diz que seu relacionamento anterior acabou porque ele queria muito filhos e embora sua companheira parecesse quere-los, quando chegou a hora de pensar concretamente, ela mudou de ideia. Almut teve o problema oposto: ela não queria ter filhos e sua companheira (é claro que a mulher domesticada vai ser uma bissexual) fazia questão.
Vejam, eu estou ironizando essa conversa e a forma óbvia como o filme a apresenta, mas na verdade eu acredito que essa é a questão fundamental de um relacionamento que se propõe de longo prazo. Isso porque eu vejo um relacionamento principalmente como a sua escolha de dividir a vida com alguém, de caminhar junto e construir uma existência que é compartilhada e comum. Cada um segue um indivíduo, mas é como se fosse traçado um espaço em que cada um desses não se move sem afetar o outro. Meio tipo um pas de deux de ballet.
Considerando isso, ter filhos ou não é sim a questão fundamental. Se se relacionar é dividir uma vida, me parece essencial concordar em qual vai ser essa vida, como ela vai ser, o que cada uma das partes quer e espera dela. Eu sei que a ideologia do amor e dos relacionamentos vendida pelo cinema é outra e diz que se você ama muito uma pessoa tudo isso é acessório. Mas gente, por favor. Vai ver é por isso que tá tão cheio de gente achando se relacionar tão difícil, porque ninguém pensa que é preciso querer viver da mesma forma. Ninguém precisa se relacionar só com iguais, mas sim, eu acredito que você tem que querer as mesmas coisas da vida e do mundo e ter filhos altera radicalmente tudo isso.
Eu acredito em pessoas mudarem de ideia sobre essa escolha, mas eu também acredito que na medida em que você está certa da sua posição em relação a isso, é um não negociável e um motivo mais do que justo para algo acabar.
Mas Todo Tempo que Temos discorda de mim. Eles têm essa conversa, ou melhor, essa briga não resolvida e seguem em frente. Certo, foi você que disse que eles têm mais de 30 anos e o relógio está correndo, mas ok, vamos seguir em frente. Seguimos em frente e então Almut descobre um câncer de ovário.
Para mim é aqui, em uma cena que não dura mais do que cinco minutos, que estão todos os problemas do filme. Porque Almut, ao descobrir seu câncer, recebe duas escolhas: ela pode realizar uma histerectomia completa, ou seja, a remoção de ambos os ovários e seu útero, o que diminuiria muito a chance de o câncer voltar, mas significa que ela nunca mais poderia gestar um bebê; ou ela pode remover apenas o ovário afetado, seguir capaz de parir uma criança, mas correr o risco de uma recaída.
Eu acho essa escolha um tema excelente para um filme. Porque existem uma série de camadas, nuances e conflitos nessa escolha. Claro, ela disse que não queria ter filhos, mas é óbvio que dizer isso e ser confrontada com o fechamento total dessa porta é outra coisa. E o que significa ter filhos, afinal? É necessário gestar e parir uma criança, ou eles poderiam discutir adoção? O que cada uma dessas escolhas significa para a noção que Almut faz dela mesma como mulher, para sua libido, para sua qualidade de vida? Como alguém com 34 anos confronta uma menopausa precoce?
A escolha apresentada a ela me parece impossível, torturante, algo que qualquer mulher passaria noites em claro ponderando, revirando, pesando cada pró e contra e cada escolha e tudo que você imaginou que sua vida seria e tudo que você achou que era e tudo que você sabe de si mesma e também a forma como nós sempre nos surpreendemos.
Mas ela faz tudo isso? Não. Ela pensa por cinco minutos e então diz a Tobias “eu não queria ter filhos, mas com você eu quero". E Tobias, apresentado como um “homem bom” questiona a escolha dela? Pergunta se ela pensou direito, levanta a ideia de adoção, diz “eu quero muito filhos, mas talvez não valha o risco"? É claro que não. Ele só aceita o presente que é a continuação de sua linha genética. Eles choram e seguem em frente.
Eu não acho, de forma alguma, que o problema é ela optar por manter seu sistema reprodutor, embora eu ache um problema que a narrativa a puna por isso mais adiante. Eu sou uma mulher que nunca quis ter filhos e ainda assim eu ficaria apavorada com a ideia de ter meu útero e ovários removidos assim. E eu acho um arco humano, rico e sensível se essa mulher que achava que não queria ter filhos reconhecesse algo diferente em si mesma quando viu essa porta se fechar. Eu acho que a escolha que Almut faz não é um problema, mas a maneira como o filme a apresenta é.
Porque ela não pondera, não reflete, não pensa. Ela só é tomada pelo impulso maternal movido pelo amor romântico como a mulher que ela é. E depois, quando essa escolha a matar, porque é óbvio que o câncer volta e ela morre, não há espaço para arrependimento, raiva, frustração nada disso.
Porque de novo, eu acharia um arco humano, rico e sensível se ela fizesse essa escolha e mais na frente, quando descobre a recaída, sentisse raiva de si mesma, se perguntasse se a escolha foi a certa, se ressentisse de Tobias por ele não ter sugerido diferente. É assim que pessoas são. Nós escolhemos as coisas e não somos capazes de sustentar reações racionais quando as consequências surgem. A vida é assim. Ninguém sabe o que vai vir, nós fazemos as melhores escolhas possíveis e depois sentimos raiva. Acontece.
Mas é lógico que essa bela narrativa de impulso maternal não pode ter uma mulher se arrependendo da escolha que vez, nem se quer em um break down motivado pelo fato de que ela tem câncer e vai morrer. Ela pode apenas achar que ter parido essa filha valeu a pena. Parido, não criado, porque ela vai morrer quando a menina ainda é pequena e não vai criá-la. Mas valeu a pena.
Eu sou a última pessoa a dizer que a escolha racional, ou a que vale a pena, é a que leva a longevidade. Eu não acredito nos nossos corpos como templos ou como feitos para durar, mas como veículos da experiência. E pensando assim, eu acho que a escolha de Almut faz todo sentido. Mas eu queria ter visto isso como uma escolha, como algo que um indivíduo inteiro, dotado de subjetividade, impulsos contraditórios e sentimentos complexos fez.
Não como o único destino possível para um corpo de mulher.
Adorei... sou uma mulher que nunca quis ser mãe. Agora estou na menopausa precoce com 41 anos, com endometriose e miomas. Eu, meu marido e meu médico conversamos bastante para chegar à decisão da histerectomia. Engraçado que esta semana me peguei assistindo a vídeos de bebês fofos e até chorei outro dia (sim, isso é muito brega e cafona, eu sei)... Não que eu tenha mudado de ideia, mas dói, sim, pensar que seus órgãos reprodutores serão retirados do seu corpo... achei sua visão sobre o assunto muito sensível...
No final ainda fica parecendo que na real ela gosta mais de cozinhar que de passar tempo com a filha né…. E não entendi pq ela simplesmente não congelou os óvulos que ainda tinha pra depois fazer barriga de aluguel. Eliminaram essa opção do filme pra fazer o drama.