Tem esse vídeo que rodou a internet um tempo atrás, da Sally Rooney participando de uma mesa no Louisiana, um museu de arte moderna na Dinamarca. A gente não ouve a pergunta, mas ela está falando sobre relacionamentos e de como a ideia de que podemos viver sem ser em conexão com o outro é falsa porque mesmo a comida que nós comemos foi plantada, colhida e processada por alguém; as roupas que nós usamos foram produzidas por alguém; a gente sai de casa e pega um ônibus dirigido por alguém numa cidade governada por alguém. Ser humano é viver em sociedade e viver em sociedade é estar constantemente conectado com o outro. Nós podemos reconhecer e sermos intencionais nessas relações ou vivermos na ilusão de que elas não existem, ou são opcionais, ou só são relações dignas de espaço mental aquelas que você determina digna. A segunda opção, cada vez mais popular nesse mundinho que é a internet, é nada menos que uma visão extremamente liberal das relações humanas. Algo que a Sally Rooney, comunista literalmente de carteirinha, com certeza sabe.
Tem muita coisa emaranhada em o que a Sally Rooney escreve, as posições políticas dela, como ela é percebida, o que nós leitora tiramos disso e como nós somos percebidas e eu quero usar Intermezzo para tentar seguir essas linhas (e eu vou falar do livro também, se acalmem). A primeira coisa é que o projeto dela está todo nessa entrevista: enxergar o mundo por uma ótica marxista é enxergar que todos nós estamos relacionados, mas também que os detalhes de como vivemos derivam do sistema econômico amplo. Em termos de crítica de arte o que isso quer dizer é uma análise que pense como as histórias que nós contamos, os quadros que pintamos, etc. estão retratando e refletindo o modo de vida de uma sociedade e esse modo de vida é determinado principalmente por como o dinheiro se move.
Eu várias vezes me sinto andando em círculos nessa newsletter (ou só tudo está conectado, enfim), mas semana passada mesmo eu escrevi sobre Edukators e como o filme pensa nossos valores políticos em relação a nosso estilo de vida. Rooney vai um pouco mais além: o sistema e sua necessidade de manutenção criam a ilusão de que só existe um caminho de vida, uma estrada para se seguir, e os personagens dela estão constantemente se batendo com os limites dessa estrada, alguns conscientemente, outros não. A ilusão desse caminho único é importante porque, pela milésima vez, se relacionar monogamicamente, formar uma família, pensar em avançar no emprego, comprar uma casa, um carro, consumir e esquecer que seu corpo pode ser um objeto de prazer e não só de produção são elementos necessários à manutenção do capitalismo. E eu não quero apontar o dedo pra vocês aqui, o ponto é justamente que todo mundo está enredado nisso, que o sistema não se mantém sozinho, nós o mantemos.
Nobody when they're rejected believes it's really for extraneous reasons. And it almost never is for extraneous reasons, because mutual attraction - which even makes sense from the evolutionary perspective - is simply the strongest reason to do anything, overriding all the contrary principles and making them fall away into nothing.
Mas e se você é fundamentalmente contra ele? É possível viver de acordo com isso? Ou, é possível simplesmente viver de uma forma um pouco autêntica e sem ter toda sua subjetividade consumida pelo capitalismo tardio? Essas são as perguntas que a Sally Rooney levanta com seus livros e a resposta que ela parece estar tateando é que se é possível essa possibilidade está na forma cotidiana como nós vivemos e, principalmente, em como nós nos relacionamos e em não perder de vista que somos uma comunidade de pessoas nesse mundo.
Mas ela é uma mulher e ela escreve sobre relacionamentos e portanto é lógico que a percepção geral reduz o que é um exercício em pensar nossa vida e nosso sistema econômico de uma maneira muito próxima aos romances de formação do século 19 a meras histórias de amor. E as mulheres que leem avidamente esses livros em busca de uma reflexão a respeito de suas subjetividades no mundo contemporâneo e como elas podem se relacionar sabendo tudo que sabem sobre o patriarcado a sad girls obcecadas.
Porém, entre as muitas coisas que eu acho interessante na Sally Rooney está um engajamento dentro da obra com sua percepção pública. Em Belo Mundo, Onde Você Está?, por exemplo, a protagonista é uma escritora se batendo com a fama repentina e as coisas que falam dela. Aqui, eu não consigo não pensar que os dois protagonistas homens e o exercício formal na voz de cada um deles nasceu de uma reflexão a respeito de todo o discurso sobre ela ser uma escritora “de menininha” e cujos livros não tem uma elaboração formal (é claro que tem, nem toda transparência é ausência, mas enfim).
Quietly, they look at one another. Love at times indistinguishable from hatred. What they represent to one another: unsatisfiable desires. And yet she held his hand through the funeral.
E então, com esses dois homens muito diferentes, que pensam e portanto são representados com formas narrativas muito diferentes, Rooney constrói uma reflexão sobre como viver e os limites e possibilidades da nossa intenção no mundo como ele é hoje. E sim, porque viver é se relacionar, essa escolha passa de uma forma fundamental pela maneira como eles se relacionam. Um com o outro e com seu entorno. Em relacionamentos amorosos, mas também não.
O mais velho dos dois, Peter, é alguém que acredita em vencer no jogo. Se ele concorda ou não com esse jogo não importa muito, ele nunca parou para pensar, o que ele sabe é que estar no topo é mais confortável que estar embaixo. Ele, afinal, não veio da elite, mas tem a certeza de que se ele fizer parte dela e conseguir apagar o fato de que não esteve sempre ali, tudo vai ficar bem para ele. Essa lógica faz o mais absoluto sentido. O problema é que você não pode ganhar o jogo do capitalismo só profissionalmente, para ser parte da elite mesmo é preciso ter o estilo de vida: as roupas certas, a casa certa, a família certa e para isso o relacionamento amoroso certo. O que é um problema para Peter porque ele está apaixonado por duas mulheres ao mesmo tempo, as duas, de formas distintas, pouco apropriadas e ainda por cima elas não tem nenhum problema em dividi-lo.
A tragédia de Peter é a tragédia do desejo, ou mais precisamente que a gente nunca deseja o que deveria. Ou que nossos desejos raramente estão em harmonia. Ele deseja ser uma pessoa plenamente encaixada na elite da sociedade. Ele também deseja uma menina de 23 anos e sua melhor amiga. Ele pode, claro, abrir mão de um desses desejos, mas isso é sempre uma tragédia pessoal. E o ponto aqui não é que ele não possa viver com as duas, ou se relacionar da forma que ele quer, porque ele pode, mas é possível fazer isso e ainda estar plenamente inserido no sistema?
I try too, yeah, Ivan answers. Some kind of order in the universe, at least. I do feel that sometimes. Listening to certain music, or looking at art. Even playing chess, although that might sound weird. It's like the order is so deep, and it's so beautiful, I feel there must be something underneath it all.
Ivan, por outro lado, não quer estar inserido no sistema. Contudo, Rooney não é tão simplista a ponto de nos dar um herói revolucionário gatinho. O que ela constrói é alguém que desde sempre foi tão naturalmente excluído pelo modo padrão de se fazer as coisas que conseguiu olhar para tudo de fora e se excluir. Ivan quer trabalhar só o mínimo para viver, se recusa a andar de avião e só usa roupas de segunda mão. Por outro lado, ele é muito provavelmente um incel e sua recusa em participar de um sistema que eventualmente vai torrar todo mundo não nasce de um amor pela humanidade, mas de um profundo desprezo.
E de novo, porque não estamos falando de heróis e vilões do capitalismo tardio, mas de gente real pensando como viver nos limites desse sistema, Ivan é também um insensível. Porque ele se exclui com tanta facilidade do sistema ele não consegue ver por que para os outros algumas coisas custam, porque pisar para fora do caminho estabelecido seja tão difícil. Ele não sabe quão bom pode ser do lado de dentro, então é claro que é fácil sair e pedir que os outros saiam. Ivan não vive fora porque ele se sacrifica, ele só nunca teve a chance de estar dentro. Mas e se ele tivesse?
Pessoalmente, eu não gosto de nenhum dos dois, mas eu sinto empatia por Peter. Pode ser porque ele tem a idade mais próxima da minha, ou porque a briga com os limites impostos para o desejo é algo que eu me identifico. Ainda assim, eu amo a Rooney que escreve o Ivan e a sensação de que, enquanto parte do público a lê como essa tonta escrevendo historinhas de amor, ela coloca passagens que se parecem demais com os momentos de Anna Karenina em que o Lievin decide te dar uma aula sobre modernização dos métodos agrícolas na Rússia. É irônico em diversos sentidos que boa parte da filosofia política de Rooney seja colocada na boca de um adolescente crescido potencial incel que jamais se filiaria ao partido comunista irlandês. É irônico, mas comunica o ponto.
E o ponto é que estamos todos relacionados e todos nós estamos no mundo respondendo a esse sistema. A gente não tem total opção de como. Mas temos alguma. E essa alguma está principalmente no espaço entre a gente e o outro.
penso muitíssimo sobre a parte lá no início de Intermezzo que o Peter pensa: 'Exausto, bêbado, envergonhado. Querendo perdão. Retirar tudo. Viver a vida certa.'
Muito bom. Agora quero ler Sally. Nunca tive vontade de embarcar num livro dela.
Um beijo.