Em janeiro de 2005 eu tinha 16 anos, era um verão quente, melecado e em fevereiro eu começava o terceiro ano do ensino médio. Meus amigos estavam em casa, ou na praia, adiantando matéria ou aproveitando os últimos dias antes do ano do vestibular em uma escola que achava que a existência acabava se você não passasse no vestibular. Eu estava em Porto Alegre, dormindo em uma barraca com um garoto que não era meu namorado porque a gente acreditava em amor livre, bebendo vinho barato, provando ácido pela primeira vez e discutindo o papel da ação direta nas políticas de esquerda e em seguida brigando com esse mesmo garoto porque ele achava que eu fumava maconha demais e nós precisávamos manter nossa consciência alerta porque o embotamento era uma estratégia do capital.
Eu tinha amigos que boicotavam a Nike ou a Coca-Cola, eu andava com um bottom anti-Bush na mochila e nós frequentávamos Fórum Social Mundial e manifestações contra a Alca. A gente via a fase maoísta do Godard e pintava cartazes em favor do perdão da dívida do terceiro mundo. Era o início dos anos 2000 e parecia razoável que nós nos reuníssemos em condições insalubres sob o slogan de quem Um Outro Mundo É Possível. Porque, de um jeito que eu sinto que nunca vou conseguir comunicar, parecia que era. Era o terceiro milênio, nós éramos jovens e parecia, de verdade, que as contradições do capitalismo iam fazê-lo colapsar sobre si mesmo.
Eu não preciso contar pra vocês que isso não aconteceu. Mas parecia que ia acontecer. E Edukators é um filme retrato e produto desse exato momento, dessa brecha em que pareceu que nós estávamos olhando pra algum tipo de precipício da história.
No filme, Jan e Peter, dois caras de uns 20 e poucos anos morando em Berlim pré-gentrificação de Neuköln invadem casas de milionários e rearranjam as coisas como forma de dar um susto neles, criar a sensação de paranóica e que nem todo o dinheiro do mundo os torna assim tão protegidos quanto eles acham. Coisas acontecem, tem um triângulo amoroso, um rolê que dá errado e meio por engano eles acabam sequestrando um rico que diz ter sido parte do Bader-Meinhoff Komplex, um braço armado da esquerda alemã nos anos 1970.
Olhando daqui há algo de pessimista nesse arranjo sim, os jovens de uma geração que achava que poderia mudar o mundo olhando para um velho que também foi um jovem que achava que poderia mudar o mundo. Talvez o que o filme quisesse dizer é que todos nós acabaríamos assim, ainda que o final aponte para um comprometimento maior dos protagonistas, é engraçado ver daqui porque não aconteceu e naquela época eu não sei se nós teríamos imaginado que 20 anos no futuro o mundo não teria mudado nada, mas nós, de certa forma, também não.
Porque parte da narrativa desse filme se baseia na ideia de que querer mudar o mundo requer um tipo de inocência que você só tem quando é jovem, mas ser jovem é também uma maldição. Porque você não sabe quem você é e o mundo é todo mundo novo, muito atraente, uma grande distração. Eu não concordava antes e eu não concordo agora com o menino que me dizia que usar drogas e beber era contraprodutivo politicamente, porque anestesiava nosso cérebro e destruía nossos corpos, mas eu entendo o ponto dele e sempre entendi. Mas eu sou uma mulher e se eu já falei sobre como o ato de escrever vai estar sempre condicionado ao corpo que escreve, a política também é sempre feita do corpo que temos.
Nessa minha vida de acampar em Fórum Social Mundial não foi um, ou dois, homens de DCE que me disseram que uma luta pelos meus direitos reprodutivos ou pela integridade do meu corpo atrapalhavam a revolução. Acho curioso, como se o corpo feminino não fosse historicamente uma propriedade privada. Como se a família não servisse exatamente à manutenção da mulher e da prole como propriedade privada. Como se a base da moral burguesa fosse qualquer coisa além de erodir a solideriedade com todos aqueles que não compartilham sua conta bancária e controlar de quem é o filho porque imagina alguém que não compartilha seu material genético acabar com as suas posses?
É por isso que eu digo que entendo o ponto do garoto que me dizia que as drogas que a gente usava eram políticas. Ou apolíticas. É claro que elas são. Porque nosso corpo é, porque o sistema econômico do tráfico colocado em movimento é. Infinitos homens de DCE tentaram me dizer que como eu transo e como eu voto não eram coisas interligadas, mas por favor. E eu acho que de tudo é essa percepção que esse filme capta muito bem: como você vive é como você vota.
Em uma cena, que deveria ser a mais dolorida, ou aquela que nos faria revisitar toda uma vida assistindo esse filme 20 anos depois, Hardenberg - o milionário sequestrado - conta como acabou virando de lado: você se casa, aí tem filhos, aí seria bom se eles pudessem viver em uma casa maior, ou andar em um carro mais confortável, sair de férias e ter coisas. E aí um dia você acorda e seu voto foi conservador. Jan diz isso não vai acontecer comigo, Hardenberg dá de ombros como quem diz, claro que vai.
Mas aí nós estamos aqui. Uma geração de 30 e poucos anos infinitamente criticada pela dificuldade de alcançar os marcos tradicionais da vida adulta, da respeitabilidade. Ou talvez pela resistência em viver sob uma moral cujo o único ponto é a manutenção do capital.
Por favor, óbvio que está cheio de faria limers por aí e eu nem quero dizer com tudo isso que ter filhos ou comprar o carro maior é em si o ponto. O ponto é a conexão. O ponto é que como você vive determina quais seus valores são e quais seus valores são diz como você vota. Com quem eu transo é em quem eu voto porque quem eu transo é uma das coisas que me mantém fora da moralidade capitalista. Porque eu sou mulher e meu corpo não deveria ser meu, não deveria ser um objeto de prazer e gozo, seja esse prazer qual for. Ele é um objeto reprodutivo que eu me recuso a usar como tal, mas sigo usando para comer ostras e beber martinis e que eu carrego todas as semanas para um emprego que o coloca diante de um bando de adolescentes, mas onde eu tiro consolo do fato de que é um trabalho que existe para além da produção de mais capital. E eu não digo com isso que eu sou um exemplo de coerência política (eu absolutamente não sou), mas que talvez um marco da minha geração de militância jovem seja pensar nisso: como a gente vive é político.
Portanto faz todo sentido que esse filme, que é tão, mas tão produto de um certo momento e de uma política feita de uma maneira tão específica que eu mal consigo contar sobre ela para quem não estava lá, seja o que uma amiga chamou de “uma comédia romântica de esquerda". Que tanto quanto um filme cheio de discussões que eu vi acontecer em salas de CA da USP ele seja um filme sobre três jovens se relacionando e pensando o afeto que desenvolveram por um milionário. É um filme sobre política e é um filme sobre o trio de protagonistas, pelados em uma cama dividida.
Queria deixar bem claro que minhas palavras exatas foram: comédia romântica alemã comunista
Isso fala muito sobre toda esquerda: qual o "ponto de virada" que faz eu - ele - eles - nós deixar para trás todo um idealismo, abandonar utopias e dizer "não sou mais"?
E qual o "ponto de virada" de quem abandona "utopias irreais" e abraça o realismo utópico?