Existe sempre um desafio em se falar sobre adaptações que é entender a obra como ao mesmo tempo uma leitura de um texto já existente e uma criação autônoma. Você não pode fazer o que quiser, senão não é uma adaptação, mas também a coisa precisa existir em si e não apenas grudada em de onde saiu. Para piorar, nem sempre a obra funcionar em uma dessas coisas quer dizer que funciona na outra.
Por exemplo, eu nem acho O Grande Gatsby do Baz Luhrman um filme ruim, ele conta sua história e funciona enquanto obra. Porém, é uma adaptação terrível porque de todas as coisas ele não entende o que essa história está dizendo para começar. Eu sei que inclusive esse meu critério de uma adaptação se sustentar por captar o espírito da obra é polêmica, já que tem gente que espera fidelidade da trama. Eu, sinceramente, não dou a mínima pra fidelidade da trama, mas acredito em se capturar um clima, uma sensação, a mensagem, a alma da coisa.
Também acho idiota aquele papinho de que o livro é sempre melhor. O filme vai sempre ser uma leitura, feita por uma pessoa que visualizou aquelas imagens diferente de você. Eu mesma sempre gosto de ler antes não porque ligue pra spoilers, mas porque gosto de imaginar as coisas sem nenhuma influência, quero criar minha própria imagem mental. Mas é preciso tomar o filme sabendo que a do diretor não vai ser igual a minha e que nós podemos entender a mesma coisa dessa história, mas acessá-la por outros caminhos. Me parece que quase sempre essa afirmação de que o livro é melhor vem da frustração pelos responsáveis terem escolhido abordar a obra por um caminho que não é o seu.
Tudo isso para falar que também me dói quando uma adaptação de uma obra que eu amo é ruim. Ruim porque não a transmitiu bem. Ruim em si. E sim, eu vou falar de A Vida Mentirosa dos Adultos, mas também queria dizer que eu fui cheia de esperanças.
Eu não sou cética com adaptações, eu gosto de ver como outras pessoas vão materializar a mesma história que eu li. Por outro, eu sou muito cética com a Netflix, que hoje em dia eu acho a empresa mais nociva que existe ao mercado do cinema, mas eles tinham acabado de me entregar Sandman e eu queria acreditar que eles iam conseguir. Não conseguiram.
A Ferrante talvez seja um caso curioso, é verdade: se os livros dela são tão cheios de acontecimento que parecem novelas, esses acontecimentos também estão sempre a serviço de uma jornada interior muito sutil, cheia de nuances e ambiguidades. Porém, eu sou cineasta de formação, eu acredito no audiovisual como uma linguagem completa e tão capaz de comunicar ambiguidades e interioridades quanto a literatura. Sofia Coppola tá aí. O Bergman tá aí, pelo amor de deus. White Lotus tá aí com a atriz que fez a Daphne mostrando cinquenta emoções diferentes no espaço de trinta segundos. Dá pra fazer. Dá, se você sequer tenta.
Me parece que o primeiro erro de A Vida Mentirosa dos Adultos é jogar fora a jornada interior da Giovanna, ou simplificá-la ao extremo. No livro, a personagem aprende não que ser adulta significa mentir, mas que crescer é abrir lugar para a ambivalência e a contradição, sair de um lugar de valores bem definidos e passar para um em que certo e errado é muitas vezes impossível de se avaliar. É a passagem de alguém que acredita na hipocrisia, para alguém que compreende o abismo muitas vezes intransponível entre as coisas que acreditamos e a forma como agimos.
Isso vai embora totalmente da série. Ali, a Giovanna é alguém que só sabe ter raiva de todos e se acreditar correta. Então, ela toma as atitudes que toma no final e, porque toda essa ponderação moral nunca aconteceu, nada disso parece fazer sentido. Perder a virgindade com um conhecido insignificante e até mesmo repulsivo só faz sentido para uma garota que decidiu que o sexo é algo desprovido de moral, só uma coisa que você faz. Se o sexo segue essa coisa repleta de certo e errado, como continua para a Giovanna da série, por que tomar essa atitude?
O curioso é que a série inclui uma narração em off. Um recurso que eu acho preguiçoso e anti-cinematográfico, mas que costuma pelo menos servir para transmitir a vida interior de personagens que o roteiro não foi capaz de comunicar. Mas a narração não fala de nada disso. Ela não fala do que é sutil, do que é complicado, do que torna as histórias da Ferrante desprovidas de vilões e mocinhos (exceto o Nino Sarratore, o Nino é a escória dos homens sim).
Me parece, escrevendo isso, que mais do que adaptar a série tenta domar a narrativa do livro. Ela tenta conter aquele turbilhão de correntes muitas vezes confuso em uma linha que possa ser apresentado a um executivo de marketing de uma empresa como a Netflix: “é a história de uma adolescente rejeitando a vida burguesa dos pais". Eu consigo até ver a pessoa explicando como a cena de sexo no final é o ápice da rejeição do mundo de classe média alta, um gesto de rebeldia adolescente. Todo mundo entende rebeldia adolescente, rebeldia vende. A gente tem aí uns sessenta anos de ser mais fácil entender Holden Caulfield como rebelde do que como de luto.
Mas nessa narrativa domada, como fazer caber Ida? A escritora que rejeita quase conscientemente a heterossexualidade, inscrevendo (agora sim, em um ato profundamente rebelde) o fazer criativo firmemente no domínio do feminino? Não acho que seja nenhum pouco por acaso que de tudo que cai fora são as experiências lésbicas as mais radicalmente apagadas dessa história. Porque a que elas contam é outra, não é sobre rebeldia e morais burguesas, mas sobre a relação muito profunda entre libido sexual e criativa, entre o corpo que faz sexo e que pensa. É disso que Ferrante fala, mas isso é perigoso, subversivo.
Eu costumo falar muito que boa parte da radicalidade da Ferrante vem dela contar a história de mulheres normais. Lenu não é um gênio, é uma garota que aprende a pensar. O gênio, afinal, é um ideal masculino, desencarnado de uma forma que só os homens podem ser. Mas onde a Ferrante se torna radical também é nessa relação entre corpo e feminino e criatividade intelectual. Nessa via estreita entre filosofia e sexo. Nesse livro especialmente é impossível separar o desejo sexual de Giovanna por Roberto de seu encanto pela mente dele.
Mas como fazer tudo isso caber numa apresentação para executivos de marketing? Mais fácil contar a história de uma adolescente burguesa se revoltando contra os pais. Essa não complica ninguém.
Muito interessante sua análise Isadora. Li o livro e não consegui passar dos primeiros 15 minutos da série, não sei, aquilo ali não me pareceu em nada com o que eu havia lido, zero identificação ou vontade de seguir assistindo. Sua análise deu nome para meu desconforto....
Adorei seu texto. Comecei a série sem antes ler o livro, e tô num devagar e sempre... não me prendeu. Fiquei pensando "poxa, parece tudo tão simplista pra uma história da Ferrante". Suas percepções vão me dar o empurrãozinho que precisava pra investir no livro, mesmo.