Outro dia, ou mais especificamente no dia em que o Elon Musk substituiu meu passarinho fofo e azul por um X horroroso, eu finalmente abri o convite do BlueSky que tinham me mandado há semanas e encarei a tela por uns 15 minutos. Fechei sem fazer login.
Uma semana depois disso, uma amiga minha me perguntou se eu estava lá e eu disse que ainda não. Ela me contou que estava adorando, que tinha um ar de Twitter em 2012 quando ninguém da sua vida real tinha e eu disse que ia entrar. Ainda não entrei.
Não é que eu não entrei porque eu seja extremamente apegada a um pedaço de terra virtual. Nem é que eu queira começar a viver uma vida low-profile desapegada das redes sociais. Eu sei que eu vou entrar alguma hora, que eu vou fazer posts com mais informação pessoal do que qualquer pessoa gostaria de ter porque eu sou extremamente millenial e portanto extremamente online e tanto minha personalidade quanto minha percepção de mundo e minha vida social são moldadas pela mediação da internet. É que antes de fazer isso eu queria pensar um pouco nessa mediação da internet.
Mês passado eu estava em um bar conversando com um amigo do trabalho quando ele me diz “ah, você conhece minha ex-namorada". Eu faço cara de prossiga, pensando que nós dois somos pessoas de 30 e poucos anos, classe média alta, faculdade de humanas da cidade de São Paulo e portanto sim, eu devo mesmo conhecer a ex-namorada dele. De alguma universidade por onde eu passei, do mercado editorial, dos amigos dos meus amigos. Então ele me conta quem é e sem a menor ironia, sem estranheza, como se fosse uma frase perfeitamente natural pronunciada por pessoas desde que o mundo é mundo, eu digo:
“Mas claro! A gente se segue na internet desde sempre, eu adoro ela!”
Ou seja, eu estou num diálogo com um amigo feito da forma mais concreta e tradicional possível (inclusive, nós dois temos twitter, a gente não se segue, melhor manter as doenças mentais de cada um fora do ambiente de trabalho) em que eu digo conhecer uma pessoa que na verdade eu só sigo em três redes sociais diferentes. Mas eu afirmo que conheço. E ele não discorda que eu conheço. Nós prosseguimos com o diálogo como as duas pessoas de trinta e poucos anos que somos e para quem não existe diferença entre o que eu sei a respeito das pessoas que eu sigo na internet e o que eu sei dos professores do sexto ano com quem eu só cruzo no banheiro.
Há muitos anos, quando nossa geração ainda era jovem e os velhos estavam escandalizados com a internet, era muito comum artigos que nos acusavam de nos entrincheirar em um mundo virtual, como se isso fosse uma recusa de enfrentar a realidade. Olhe esses adolescentes que não fazem amigos na escola, mas passam horas conversando no MSN com gente que eles nunca viram na vida, veja essa recusa de participar do mundo “real”(material, concreto) em troca de uma existência “virtual” (falsa porque não concreta). Eu sempre me incomodei com essa separação, uma vez que quem digitava mensagens no MSN era eu e as pessoas com quem eu falava existiam para minha subjetividade e também de verdade, concretamente, só em outro quarto e talvez em outra cidade. Eu não estava fingindo viver aquilo, eu estava vivendo.
Boa parte dos meus amigos de hoje eu fiz em uma mistura completamente inseparável de internet e vida real e eles se fizeram em um fórum de Senhor dos Anéis vinte anos atrás. Eu tive meu coração destroçado por um homem que eu comecei batendo papo no twitter. Esse ano uma pessoa que eu seguia na internet há milênios disse “vamos tomar um café” e nós instantaneamente éramos amigas em uma relação que não estava começando ali, mas tinha começado no dia que nenhuma de nós sabe qual é em que nos seguimos no Instagram.
Eu não estou dizendo que não existe uma ilusão muito específica da internet que faz nossas ações nela parecerem mais concretas do que são. Afinal, eu passei 2020 inteiro começando conversas com “porque em ‘O Eu na Internet’, a Jia Tollentino…” e não tem um bar em que eu não bata na mesa e diga que o problema da esquerda hoje é que as pessoas confundem postar sobre algo com fazer algo. Existe, é claro, uma ilusão do enunciado que o online nos permite: você diz e imagina que sua palavra é como a palavra divina, algo que fabrica o mundo. Não é. Por outro lado, relações são algo fabricados unicamente no tempo e na palavra, duas coisas que não existem na internet de forma menos real do que fora dela.
Eu comecei a estruturar essas ideias quando a Amanda, com quem em qualquer dia da minha vida eu estou tendo pelo menos duas conversas diferentes em dois meios digitais diferentes, começou uma reflexão sobre um nicho específico da nossa geração de mulheres. Nós que amamos Sally Rooney, Taylor Swfit, Fleabag e rimos de nós mesmas por sermos tão clichês de mulher básica millenial. A gente conversou um pouco sobre as origens disso, mas eu fiquei pensando. Primeiro em como essa falta de originalidade não é vista como defeito, nós fazemos graça, mas nos sentimos abarcadas e acolhidas por esse rótulo de mulher básica. E depois como esse nicho inclui todas as minhas amigas de internet e muito poucas das pessoas que eu conheço totalmente fora da internet. Em como de certa forma eu sinto haver uma experiência mais compartilhada na internet do que fora dela.
Explico.
Uns meses atrás, estou eu no fumódromo do trabalho (sim gente, o que essa newsletter diz é que eu só tenho amigo offline se for no trabalho) quando começa uma conversa sobre “e essa série Succession, outro dia alguém mencionou, será que é boa?” Uma conversa da qual várias pessoas estão participando, nenhuma delas alguém que viu a série. Isso deve ter sido uma ou duas semanas antes do último episódio, quando para mim parecia absurdo que alguém não estivesse vivendo pelos domingos a noite ou ao menos ciente de que estava perdendo o maior evento cultural da década (antes de Barbie, é claro). Mas aquelas pessoas estavam. E então me bateu que embora elas fossem as pessoas com quem eu mais convivo concretamente, nós éramos de certa forma de círculos diferentes. Círculos de gosto, círculos culturais, não sei bem. Mas eu circulava em um ambiente de produções que elas não circulavam.
Eu venho observando isso desde então. Um certo descompasso na estética e nos gostos entre meus amigos da internet (feitos nela ou não, mas gente que eu sigo em todas as redes) e meus amigos de fora dela. Eu penso na pontada de ansiedade quando alguém novo do trabalho me segue na internet e na fala da minha amiga de “twitter quando ninguém da sua vida real estava lá". Eu não tenho medo do que eu vou postar, eu tenho alunos, tudo que é inapropriado tá no close friends, mas eu tenho um certo receio de que ali nós não falemos a mesma língua. De que online nós vivemos em países estrangeiros.
E aí a gente cai de volta no twitter. Porque vinte anos atrás, quando adultos que não sabiam de nada me falavam que a internet não era o mundo real o que eu responderia era que ela era apenas um outro espaço do meu mundo real. Hoje eu acho que elas são muitos espaços.
Uma coisa que as pessoas da minha geração falam muito quando pensam a internet é que nós tivemos a experiência muito específica de viver a internet pré-algoritmo que era guiada pelas coisas que você queria ver. Por gostos e senso de comunidade. Por afinidades. Eu acho que isso enquanto característica do online foi dizimado, mas não enquanto busca das pessoas presentes ali. Cada um de nós abrindo a página de explorar do Instagram ainda quer ver isso: pessoas que gostam das mesmas coisas que você. Um espaço, por assim dizer, demarcado não pelos limites do físico, mas dos gostos e da personalidade. E nesse sentido o Twitter era absolutamente um espaço.
Nós conhecíamos pessoas pela arroba delas, que as vezes viravam o apelido fora dali. E existe toda uma linguagem da comunicação que sim, é ditada pela forma da rede e provavelmente vai se sustentar fora dali e que sim, virou a própria linguagem dos assistentes de satanás nos últimos anos. Mas é um espaço. E embora eu vá seguir para o BlueSky existe uma dinâmica específica desse espaço virtual que não vai ser carregada, mesmo que as pessoas sejam.
Um pouco como quando eu terminei a oitava série e mudei de escola. Uma série de amigos meus foi comigo, mas a dinâmica entre nós não era mais a mesma. Porque o tempo, porque outras pessoas e porque cada relacionamento é também específico ao espaço dele. Se nós somos a geração que primeiro acabou com a separação entre “virtual” e “real” isso vai pros dois lados.
Nós carregamos as relações da internet pra vida e nós carregamos a dinâmica da vida para a internet. É mais um espaço. E eu gostaria de tirar um minuto pra gente apagar as luzes dele antes de seguir em frente.
Como mulher millennial cliche, me vi muito no seu texto. Passo muito tempo na minha bolha on-line e quando faço um comentário animado sobre algum trending topic em grupos da vida real e ninguém reage, perco um pouco o brilho tanta coisa que é óbvia pra mim e não furou a bolha daquelas pessoas que muitas vezes tem um alto grau de intimidade comigo, mas que frequentam outro círculo, outro nicho. Se eu citar fleabag nos círculos de amigos “presenciais” garanto que eles nunca ouviram falar. Arrisco dizer que eles não gostariam. Isso diz também que nossos vínculos são construídos em cima de muitas variáveis e que isso pode mudar de acordo com o espaço. Amei a reflexão!
Nossa Isa, você conseguiu articular aqui várias coisas que eu penso muito, sempre, mas acho muito difícil colocar em palavras, justamente porque é uma experiência tão específica para quem tem o nosso dano cerebral específico das redes sociais (e acho que foi isso que mais me encantou no ensaio da Jia, a habilidade dela de descrever o funcionamento das redes sociais, com suas dinâmicas tão próprias).
Hoje em dia vivo uma situação bem parecida com a sua, tirando meu pequeno grupo de amigos da escola, todas as minhas amizades começaram na internet, em especial no Twitter e nos blogs antigos. Eu conheci meu namorado no Twitter. Até pro trabalho carreguei amizades virtuais, porque já levei duas amigas de blog/twitter pra firma. Meu trabalho é 100% remoto, mas tem uma salinha no Wework que uma galera vai de vez em quando e quando tô em SP tento ir pelo menos uma vez na semana. Numa dessas saímos pra almoçar e rolou o mesmo papo de Succession: "E essa série aí hein, então falando que é boa" e eu só consegui reagir dizendo "ELES SÃO MEUS FILHOS". Em outro momento, falaram da turnê da Beyoncé e eu comentei que fiquei vendo a live do primeiro show dela em Estocolmo e me dei conta que esse comportamento fora da internet não é normal. Enquanto isso, entre minhas amigas, estávamos conversando pelo chat da live e até hoje damos risada do momento em que todo mundo começou a falar que o segurança era gostoso. Momentos né.
Enfim, muitas coisas, muitos pensamentos, adorei o texto (e obrigada por me indicar na sua listinha de recomendações <3)