Eu sou, e essa informação não é nova para absolutamente ninguém, uma pessoa cronicamente online. Eu passo mais tempo do que deveria na internet desde que, em 2003, quando eu entrei no ensino médio, minha mãe instalou um computador com Speedy no meu quarto. Eu fiz amigos na internet, gente que eu levei para vida real, e eu encontrei minha comunidade ali de uma forma que me tornou o maior exemplar da minha geração: a pessoa que revira violentamente os olhos quando alguém fala mundo “virtual” ou “real” ou menciona que de qualquer maneira o que acontece na internet não é parte da vida que a gente vive.
É claro, como alguém que teve boa parte do derretimento mental promovido pelo Twitter, eu sei que existem dinâmicas próprias de certas redes. Assim como existem dinâmicas próprias dos espaços sociais que frequentamos. Eu sei também que, assim como (quase) ninguém é tão doido fora do Twitter quanto é nele, ninguém sai na rua com as estéticas do TikTok. As vezes a internet é um ambiente específico que a gente frequenta, com atitudes que não acontecem fora dele, mas as pessoas frequentando esse ambiente não são diferentes das que saem na rua e vão ao shopping.
Estou falando isso porque essa newsletter parte de algo que eu vejo com mais clareza na internet, mas que nela me parece só a materialização de uma mentalidade que existe fora. Porque afinal dentro e fora da internet é algo que deixou de fazer sentido uns 20 anos atrás e nossa existência ali é também a existência real. E, portanto, a tendência que me incomoda quando abro o Instagram e o TikTok é a tendência em muitos sentidos da minha geração, é só mais fácil apontar o dedo quando ela aparece na forma de videozinhos bem editados.
E essa tendência é aquela ideia de que aos 30 você virou um “adulto de verdade” e portanto qualquer motivação para uma vida social morreu, os prazeres da carne te abandonaram e sua maior felicidade é comprar roupa de cama nova.
Todo dia, quando eu abro qualquer um desses apps, eu sou inundada por piadas que não são tão piadas assim em que uma pessoa da minha idade posta que antes as sextas a noite eram no bar e agora são limpando a casa. Ou uma mulher dizendo que o ápice da empolgação na vida dela é sair para jantar, pedir um único drink e estar na cama as 9 da noite. Ou alguém dizendo que “protegeu sua paz um pouco demais” e agora passa o sábado a noite vendo Emily em Paris.
Eu sou uma pessoa festeira, mas meu problema com essa tendência nem é que as pessoas gostem de ficar em casa, ou a valorização de coisas como assistir filmes e ler. Eu amo essas duas coisas, como vocês bem sabem. Inclusive tem um outro tipo de vídeo que meus apps me entregam com frequência que é das meninas “romantizando” a própria vida, tratando coisas mundanas como se fosse uma aventura, buscando o máximo de prazer no cotidiano. Isso eu acho bem bonito.
O que me incomoda em todos esses posts sobre viver 30 anos como se você tivesse 130 é que o que eles propõem não é apenas uma virada para o caseiro. É um encolhimento. Das sensações, das experiências, de tudo. Da própria vida.
Eu quero começar com essa ideia de “proteger a própria paz". Proteger de que, exatamente? Qual paz, aliás? Eu entendo que a ideia original é colocar limites em gente que te consome ou invade um espaço que você não deu. Até aí tudo bem. Mas um proteger a própria paz que termina com a pessoa sem amigos (“meus únicos contatos são meus pais” diz um dos vídeos) e trancada em casa todos os fins de semana é uma proteção que me levanta questões.
Isso porque é impossível estar no mundo e viver completamente em paz. É, mais do que isso, impossível se relacionar com quem quer que seja e estar completamente em paz. Qualquer relação sua com outra pessoa está sujeita ao imprevisto, ao fato de ninguém é perfeito, de que as pessoas se machucam e se decepcionam as vezes, mesmo nas amizades. Se relacionar amorosa ou sexualmente então é sempre correr o risco de que essa pessoa não queira a mesma coisa, ou alguma hora não queira mais, ou vocês busquem ritmos ou sonhos diferentes. Dividir qualquer parte de você com outra pessoa é correr o risco de bagunça, de caos e sim, de alguma medida de sofrimento.
O que eu vejo nessa tendência de internet (que, de novo, é mais fácil apontar e transformar em texto usando isso, mas eu vejo na vida também) tanto da minha geração quanto da mais nova é uma necessidade estranha de controle. Os milhares de vídeos de rotina, os perfis de agência de comunicação que fazem posts de auto-ajuda coloridinhos celebrando voltar mais cedo do aniversário da amiga porque “amanhã cedo você vai treinar", a redução da existência cotidiana ao acorda, trabalha, volta, assiste algo que também não cause nenhuma movimentação interna e dorme.
Claro, alguns de vocês já estão gritando comigo que vivem assim porque o capitalismo suga toda sua alma e vontade de viver. Que o trabalho é exaustivo e o dinheiro é pouco e portanto você precisa viver a menor existência possível, a que só da conta das obrigações porque só isso é possível. Eu não discordo nem por um minuto que é isso que o capitalismo quer da gente: uma existência em que toda energia é voltada para o trabalho e a produção de riquezas para outra pessoa e todo prazer existe numa lógica de consumo rápido e descartável que mais uma vez gera riquezas para outras pessoas. É claro que é isso que ele quer. Meu problema é com a facilidade com que entregamos isso a ele.
Muitas das pessoas que fazem esse argumento, de que vivem uma existência controlada e mínima porque é isso que o capitalismo deixa, acreditam que essa é uma afirmação política. Que elas estão sendo militantes e conscientes ao diagnosticar a abdução da nossa alma promovida pelo sistema. Mas que diferença faz um diagnóstico sem ação? Quanto existe de político em saber que algo é assim e só se conformar a esse fato?
Essa é uma questão maior do que só esse ponto aqui. Há anos a “esquerda de internet”, que é também a esquerda fora dela, confunde apontar o dedo com agir e ter consciência dos problemas com ser contra eles. Se você apenas sabe que um sistema é uma merda, mas pessimista, dá de ombros e diz que é assim mesmo, eu sinto mutissimo (na verdade não sinto) te informar que tudo que você está sendo é conservador. Nem quando eu era uma jovenzinha acampando no Fórum Social Mundial há cinco dias sem lavar o cabelo eu acreditava na revolução armada ou em qualquer possibilidade de derrubarmos de uma vez e conscientemente qualquer sistema que seja. Mas eu estava lá porque eu acreditava em alguma mudança. Você tem que acreditar em alguma mudança para ser um ser político, acreditar na possiblidade de que nem tudo vá ser sempre assim. Acreditar que o sistema não vai te vencer o tempo todo. É preciso ser um pouco otimista. É preciso ser um pouco resistente.
E sim, meus amores, isso exige esforço. Exige juntar uma energia que talvez não seja imediata. Exige bagunça. E talvez um pouco menos de paz.
Esse texto começou a nascer na terça-feira de carnaval, quando depois de três dias de “excessos" — vamos colocar assim — eu decidi que chega, eu precisava desacelerar e fui a uma sessão de Pobres Criaturas. Eu saí completamente encantada com todas as coisas, mas mais do que tudo com como o filme é uma proposta filosófica a respeito do que nos torna humanos: uma busca infinita por novas experiências, uma curiosidade desmesurada, pelo bom e pelo ruim.
Um dos meus momentos preferidos do filme é quando Bella, a protagonista, vai parar em um bordel e a cafetina diz a ela algo nas linhas de “sim, eu sei que é repulsivo, mas se você quer conhecer o mundo é preciso conhecer também essa parte". O filme é uma fábula em que a experiência da prostituição aparece menos como ela em si e mais como metáfora para um mergulho no asqueroso da natureza humana, mas o ponto segue: não existe conhecimento e, portanto, não existe formar-se enquanto pessoa, tornar-se humano, sem o conhecimento do ruim. Não existe isolar-se dele e ainda viver. Se quisesse ficar em paz, Bella nunca teria saído em jornada nenhuma, mas permaneceria isolada e presa na casa de seu criador. Ninguém pode argumentar que lá ela não estava em paz.
Em outro momento, uma mulher convida Bella para “dançar na cidade", ao que a personagem responde “sim, porque eu nunca fui dançar na cidade". Esse diálogo poderia ser o resumo dos meus 20 anos. Por tempos tudo que eu fiz foi de certa forma motivado pelo fato de que eu nunca tinha feito antes e eu estava ansiosa, sedenta e desesperada por me tornar uma pessoa. Aos vinte e poucos eu queria saber do mundo, saber de mim, dos outros. Eu queria poder ser mais velha e dizer numa mesa de jantar que eu tinha experimentado de tudo o que, óbvio, significaria que parte dessas coisas eu não ia gostar. Mas o custo de não sofrer era não experimentar nada. E o que você vira numa vida sem experiências?
Meu ponto, nessa associação de vídeos do TikTok, pensamento de esquerda e Pobres Criaturas é que a vida é diametralmente oposta à “proteger sua paz” e que o capitalismo é contra a possibilidade de vida para quem não está no topo dele. Dizer que o sistema não te deixa energia nenhuma não é resistir a ele, é se conformar, é cumprir seu papel de proletário domesticado e fazer sua parte para a manutenção de todas as coisas. O que eu acho que é uma escolha possível, não to aqui para dizer que ninguém tem que tomar a mesma atitude política que eu, mas é uma escolha muitas vezes disfarçada em uma ilusão.
Porque essa paz que te isola, ou esse “auto-cuidado” que te faz abrir mão do seu tempo em comunidade pelo aperfeiçoamento do corpo nada mais é do que liberal, uma vez que é a promoção de uma satisfação tão individualizada que não permite qualquer engajamento com o outro. O que é uma visão de mundo. Mas o perfil de posts coloridos que exalta você sair mais cedo do aniversário pela academia se acha super resistente.
Eu penso por fim na Trilogia das Cores, do Kieslowski, em que ele pega conceitos aparentemente positivos — Liberdade, Igualdade, Fraternidade — e os leva ao extremo. Por aí, o que seria preciso para uma paz extrema?
Porque a existência é uma bagunça. Se relacionar como quer que seja, se apaixonar, criar uma criança, criar arte, sair pro mundo, fazer sexo, tudo isso é bagunça. Tudo isso é qualquer coisa menos sossegado.
MEUDEUS Isadora, que presente esse texto foi. não sabia o quanto precisava dele – obrigada ♥
texto muito bom! pensando pensamentos...