Bastante tempo atrás (em uma outra vida, em vários sentidos) eu e uma amiga tínhamos O Clube do Livro Erótico, um projetinho que começou com uma lista do Flavorwire de 10 romances eróticos clássicos. A gente lia e comentava (em vídeo, risos) o que nós duas definimos como literatura erótica: obras em que o tema e o eixo central fosse sexo. E assim, um dia, nós chegamos em A Entrega, talvez meu preferido de tudo que a gente leu nessa época.
Ele foi também um dos mais peculiares da nossa lista. Não esquisito como obras que exploravam tesão em sujeira embaixo da unha, fetiche com batidas de carro ou um homem que parava o tempo para fazer mulheres gozarem (tudo coisas que lemos), mas particular, o livro de memórias de uma mulher que atingiu uma espécie de iluminação espiritual através do sexo anal. Ao longo do livro ela conta, em uma escrita excelente, toda a jornada interior que a levou a um relacionamento poliamoroso e a uma prática sexual que ela antes receava e tudo que foi libertador nesse processo.
Eu fiquei encantada. Ali era um livro em que sexo, identidade, curiosidade e trabalho interior se uniam. Uma mulher que explorava a si mesmo pelas coisas que ela tentava explorar na cama. Eu achei revelador e me lembro com clareza de contar isso animada, falando com as mãozinhas, para um ex que adorava literatura e de quem na época eu estava tentando ser amiga (eu fui bem-sucedida, mais ou menos, apesar do que vem a seguir). Em um diálogo que minhas amigas nunca vão esquecer enquanto todas nós estivermos vivas, a resposta desse homem ao meu monólogo sobre sexo e auto-descoberta foi “mas quando eu pedi você não quis fazer".
O que ele não entendeu, e que me deixou olhando um pouco fixamente para esse homem, me perguntando o que eu tinha visto nele e também me libertando dos últimos fios do que eu sentia por ele, é que o que me encantava em um livro a respeito de uma prática sexual que eu tinha rejeitado não era o ato em si, era o que o ato significava para aquela mulher, naquele livro. Era o corpo como mecanismo de conhecimento. Era alguém escrever sobre isso. Era tudo que ela falava sobre aprender a aceitar a falta de controle sobre esse corpo, algo que é assustador e quase alienígena. Mais ainda quando eu descobri que essa autora, Toni Bentley, era uma ex-bailarina.
Se você sabe qualquer coisa sobre ballet clássico, você sabe que é uma arte do controle. Do controle corporal extremo, da consciência que comanda da ponta do seu dedo do pé ao final da mão estendida acima da cabeça. O ballet é em muitos sentidos a arte final da dominação humana sobre a natureza, a nossa própria natureza, a beleza conquistada a partir de um atravessamento do desconforto físico extremo. Quando eu descobri isso, A Entrega me pareceu um livro ainda mais memorável e esse ano, finalmente, eu li Winter Season, os diários de Bentley desses anos de bailarina.
Se A Entrega é uma história de libertação, Winter Season é precisamente o relato de tudo que ela precisava se libertar. A narradora, uma Toni Bentley muito mais jovem, com apenas 24 anos, quer alcançar o controle total, o que ela sabe, e está aí a tensão do livro, que só pode vir por uma abdicação da vida.
And then something happened: life. I had had no impositions from this culprit. I was not stupid. When he beckoned me, I laughed and said no. I didn't want life. I wanted to dance.
A Bentley jovem quer ser uma bailarina de sucesso, mas ela sabe que o que a impede não é exatamente uma limitação física, mas interna: ela ama o mundo demais. Ela quer controle e sabe que isso a retira dela mesma. Como uma boa escritora, ela sustenta essa ambiguidade por todo o livro.
Mas há mais um paradoxo aqui, já que Bentley não era apenas bailarina profissional. Ela era uma bailarina no New York City Ballet do Balanchine. Se você nunca viu um ballet do Balanchine, eu não tenho certeza se consigo te explicar a questão aqui. É clássico e não é. Um termo é chamar de neo-clássico, já que ele ainda usa os movimentos do ballet tradicional, mas em coreografias distintas do do repertório. A linguagem do clássico para uma obra contemporânea, vamos fizer assim. Porém, se a gente pensar por outro lado o Balanchine é na verdade o único coreógrafo realmente clássico. Porque o que nós chamamos de ballet é uma invenção dos séculos XV e XVI, portanto renascentista. Claro, a ideia é olhar para os ideais de beleza pré-medievais, para a luz e a limpeza e todas essas coisas. Mas se você assiste Giselle ou Copéllia e depois Serenade fica claro como o Balanchine é apolíneo, como as linhas são retas, como tudo é branco como o Parthenon como existe um culto da fisicalidade.
O Balanchine é clássico como um grego ou um romano. O corpo de um bailarino dele como uma estátua do período mais clássico, antes daqueles bombadões do helenismo. Corpos esguios, ágeis, de asas nos pés. Todo bailarino do Balanchine é um Hermes. E na cabeça dele, que era russo, todos os seus bailarinos são americanos, essa gente sem história nascida do progresso. Eu amo o Balanchine e esse idealismo e condescendência dele em relação aos Estados Unidos como pouca coisa nesse mundo.
Eu, por minha vez, entrei em uma sala de ballet pela primeira vez quando tinha cinco anos de idade. Ninguém me forçou, minha mãe não sonhava com uma bailarininha. Eu quis ir, eu sonhava com ser uma bailarininha e esperei ansiosa por não sei quanto tempo (quanto tempo pode ter sido também) meu aniversário de cinco anos, quando eu teria a idade mínima para ser matriculada em uma turma de baby class. Nessa primeira aula eu vestia meia-calça cor-de-rosa, um collant também rosa com babadinhos, meu cabelo comprido preso em um coque com redinha. E então eu passei vinte anos da minha vida em uma variação dessas roupas.
É engraçado hoje, quando eu conto que dancei por tantos anos. As pessoas se surpreendem, acham curioso que eu tenha realmente investido tanto tempo nisso, que eu tenha girado piruetas e subido em sapatilhas de ponta depois de adulta, mas pouca coisa moldou minha personalidade como esses dias infinitos em estúdios de ballet. Dessa primeira aula aos cinco, eu segui ininterrupta até meus 17 anos, embora os dois últimos tenham sido acidentados e eu tenha faltado tantas aulas quanto ido e tenha jogado dramaticamente as sapatilhas de ponta no lixo da minha casa mais de uma vez. Só para resgatá-las arrependida um pouco depois.
Nessa época eu tinha descoberto ao mesmo tempo o feminismo, a política e o desejo e tudo isso me colocava em contradição com o exercício de passar uma hora e meia, três vezes por semana, perseguindo uma técnica rígida e linhas claras. Eu sentia naquilo uma antítese do que eu tinha descoberto serem meus valores e ao mesmo tempo o prazer era tão intenso que eu passei dois anos em um vai e volta, irritada com a minha professora, abstinente quando não ia. Tal qual a Toni Bentley, querendo viver e me libertar desse gosto do meu corpo.
Aos 17 anos eu entrei na faculdade, mudei da cidade do interior onde eu estava para São Paulo e parei. Eu dancei em baladas nas noites de segunda-feira, eu troquei os cigarros cor de rosa com gosto de cereja pelos marlboro lights que eu fumo até hoje, eu morei com um homem e coloquei ele pra fora de casa. Quando eu fiz isso eu descobri que eu tinha deixado nessa relação quase tudo que era eu e, em um esforço talvez um tanto óbvio e clichê de reconstrução, eu voltei. Eu tinha 22 anos e frequentei aulas de ballet adulto por mais 8, quando entendi várias coisas que eu não poderia ter entendido antes.
Quando eu era nova, eu nunca fui boa bailarina. Eu era graciosa e bonita, tinha as linhas, mas não a técnica. Eu era avoada, sonhadora, presa demais na minha cabeça para prestar atenção quando a professora passava uma série ou para me lembrar de uma coreografia. Eu nunca fui posta para dançar na linha da frente no fim do ano, sempre posicionada onde eu poderia colar e evitar o desastre. Eu era preguiçosa também, pouco disposta a levar meu corpo além de onde ele naturalmente queria ir. Mas eu tinha um ouvido perfeito, era incapaz de sair do ritmo e também era pequena, leve e a leveza é a maior qualidade de uma bailarina, a aparência de flutuar. Eu não era boa, mas eu era boa suficiente para sobreviver esquecida no fundo da sala e tirar daquelas aulas o que eu realmente queria, uma hora e meia de presença profunda no meu corpo, três vezes por semana.
Que era isso que eu queria eu descobri só adulta. Quando eu voltei, eu era boa porque a maior parte das pessoas nessas aulas começa tarde, quando o corpo já é menos maleável ao formato impossível exigido pelo ballet. Eu era também mais centrada, perfeitamente capaz de decorar uma sequência e disposta a escapar dos meus pensamentos contando tendus.
Um tempo atrás eu descobri que a mãe da namorada de um amigo meu foi minha primeira professora nessa volta. Ele perguntou se ela lembrava de mim e a resposta foi que sim, que eu era particularmente elegante, particularmente presente para uma aula de ballet adulto. Eu acho curioso esse adjetivo, elegante, que já me apareceu em outros contextos, mas eu gostei de ouvi-lo em relação a minha presença em uma aula de ballet e me fez repensar essa ideia do corpo, da concentração, do escape.
Quando eu larguei de vez o ballet eu comecei a fazer yoga. Eu vou na academia como uma pessoa normal, mas na yoga eu encontro essa mesma ideia de que a coisa é tão difícil, ela exige tanto que eu habite nos meus músculos, nos meus tendões, que a minha cabeça para. As duas atividades me permitem sair do lugar onde eu mais vivo, quietar uma mente que nunca para e perseguir a beleza de uma forma totalmente distinta daquela que eu busco quando trabalho, a beleza da escrita. E ao mesmo tempo o que eu busco na minha escrita senão que ela seja encarnada pelo meu corpo?
Tudo que eu sei sobre o corpo, esse meu tema inesgotável, eu aprendi pela primeira vez no ballet. Eu aprendi a me maquiar, a aplicar o batom vermelho impecável que eu hoje apareço usando as 7 da manhã. Eu aprendi a arrumar meu cabelo, as tranças elaboradas que usei em certo tempo. E eu aprendi sobre atração. Em camarins apertados, onde meninas suadas corriam de um lado para o outro, a parte de cima de seus tutus dobradas para que o suor não os manchasse antes da hora. Um camarim de ballet é um universo densíssimo de tule, peitos de fora e cheiro de spray karina.
E também dedos sangrando, deformados. Eu deformei os meus. Eu enrolei neles camadas e camadas de esparadrapo e eu fiz isso pelas minhas amigas. Eu passei uma agulha no fogo e furei a bolha de outra garota, alguém arrancou minha unha com um puxão, uma intimidade visceral que eu nunca mais vivi. Por anos uma das minhas unhas do pé não vingava, só crescia para cair de novo. Quando eu usei uma sapatilha de ponta pela primeira vez depois de cinco anos paradas, essa mesma unha imediatamente ficou preta e caiu e eu me senti reconfortada que meu corpo não tinha esquecido de nada. Que ele sabia de alguma coisa.
Tal qual a Toni Bentley, o que eu almejo enquanto artista é um paradoxo: a intelectualização da experiência radical do corpo. A escrita, ato abstrato, mental, sobre ser um corpo que está no mundo. A beleza que atravessa sangue e fluídos. A linha apolínea do desejo.
dica de livro anotada, fiquei muito interessada em A Entrega!
Eu adoro o seu projeto de pensar corpo e literatura, mais ainda porque leva a dança em consideração. Quando o Cortazar disse que a última fronteira da literatura é o corpo e que o Henry Miller de certa forma liberou, me incomodava que a dança era deixada de lado, geralmente pra privilegiar o erótico. Acho que memórias e diários (especialmente o diário, uma forma bem próxima do corpo) de dançarinos são um bom lugar pra começar, mas tem muito mais. Excelente resenha-ensaio, sempre bom ver suas recomendações de literaturas do corpo.