A Educação Sentimental
Um ensaio sobre a minha geração e nossa obsessão com ler sobre nós mesmos
Como uma pessoa que fala de livros no instagram a recomendação que mais me pedem, de longe, é “uns livros assim tipo Sally Rooney". Eu mesma, sou uma grande culpada disso e vivo passando na frente da minha lista qualquer coisa que me prometa ser remotamente semelhante a Pessoas Normais (eu também vivo atrás de qualquer coisa que chegue pelo menos perto da sensação de ler A História Secreta, mas essa é outra newsletter), qualquer romance urbano com personagens millenials em que muito pouca coisa acontece. E eu venho pensando em por que essa busca tão sem fim e também por que boa parte deles me deixa com um gosto de decepção.
Em 2019 eu morava em Los Angeles e estava lendo Conversa Entre Amigos pela primeira vez. Eu estava maios ou menos na metade do livro quando peguei um podcast do New York Times Review of Books quando ele ainda tinha uma parte final em que os críticos do jornal comentavam o que estavam lendo. A editora, uma mulher de seus 50 anos, dizia que estava lendo Conversa Entre Amigos, mas não conseguia entender qual era o apelo, por que aquilo fazia tanto sucesso. Ela não soava ofendida, nem parecia estar criticando o livro ou os fãs, ela só queria genuinamente entender. Então, uma colega de 30 anos diz “é porque ele fala de como millenials vivem e se relacionam” e elas então tiveram uma bela conversa sobre literatura que reflete nossas experiências e o valor disso.
Eu não acho que identificação com a literatura é algo tão simples quanto “esse personagem tem as mesmas características de idade, raça e classe social que eu". Eu, por exemplo, me identifico com uma série de jovens homens do século XIX que desejam abrir seu lugar no mundo se livrando das amarras sociais e subindo a hierarquia econômica. Ou com um agrimensor que simplesmente não consegue chegar no castelo onde deveria trabalhar. Ou com o Philip Roth. As coisas que nos movem e as parcelas de nós mesmos que a literatura reflete de volta têm a ver com algo mais profundo, mais humano e em parte a beleza da ficção é essa sensação de que existe algo de universal nos tornando humanos, algo que permite a identificação através do tempo, do espaço e do nosso lugar do mundo.
Por outro lado, quando eu tinha 17 anos e li A Redoma de Vidro foi como se o céu se abrisse e eu adquiri uma clareza sobre minha própria experiência, sobre ser eu mesma, que eu não tinha até ali. E eu acho que é isso que nós seguimos perseguindo nesses livros: um retrato das nossas próprias vidas porque nós não sabemos como viver.
Eu não digo isso como crítica ou de forma derrogatória em nada. Ao contrário, eu acho que esse não saber, essa deriva que uma parte da minha geração se encontra é libertadora e algo que nós deveríamos olhar como possibilidade de criatividade e reconstrução ao invés de atraso. Nós não sabemos ser adultos como ser adulto foi imposto e eu acho isso ótimo. Mas entendo que seja também angustiante.
O primeiro motivo para isso ser angustiante é que uma fonte importante dessa nossa deriva é a economia. Nós crescemos acreditando em uma escada do progresso econômico que boa parte dos nossos pais subiram e essa escada se esfacelou debaixo dos nossos pés. Eu não faço ideia de como vai ser para gerações seguintes, mas uma parte do sentimento de inadequação dos millenials vem da expectativa de que aos 30 e poucos anos você deveria ter carro e casa e uma certa estabilidade financeira que é impossível. E sim, é qualquer coisa menos libertador perceber que oportunidades e conforto só não estão ao seu alcance.
Mas existe uma outra parte do esfacelamento dessa escada que nós mesmos fizemos, por querer ou não. As vezes eu olho para o que gente da minha idade fala na internet e me parece uma galera que quebrou todos os móveis da própria casa e agora tá “ah, meu deus, mas eu não tenho onde sentar". Não tem, mas o seu sofá era horroroso e desconfortável para começar.
Me explico.
O foco da própria Sally Rooney e da grande maioria de genéricos de Sally Rooney que eu li são os relacionamentos interpessoais. Amorosos, mas também de amizade e familiares. E a trama se move porque o personagem não sabe o que fazer com esse relacionamento. Não sabe se seu amor é correspondido, ou não sabe o que a pessoa que corresponde quer desse relacionamento, não sabe os termos de uma amizade, não sabe mais estar com a família. Nós, em muitos sentidos, só não sabemos mais nos relacionar e isso é com frequência tratado como uma infantilização ou uma incapacidade. Eu não acho que é. Eu acho que nós não sabemos por que nós finalmente paramos para pensar sobre isso.
Na verdade, a primeira obra de ficção sobre ser parte da minha geração que eu encontrei não foi Conversa Entre Amigos, mas Girls. Quando a série estreou, em abril de 2012, eu tinha 23 anos e estava solteira. Ao longo das cinco temporadas da série eu iria defender um mestrado, mudar de apartamento, ter dois relacionamentos sem nome bastante longos (alô situantionships), um negócio que não era um relacionamento e correu paralelo até eu mandar um nude que ficou sem resposta porque o cara tinha começado a namorar e esquecido de me avisar, entrar no doutorado, dar aulas particulares de francês, começar um freela como tradutora, começar um relacionamento que só foi ganhar nome quando já estava fazendo quase um ano e ainda assim, mais porque não ter estava começando a dar trabalho demais do que porque eu via qualquer coisa significativa na palavra namoro. E sei lá, mais coisa. Tanta coisa que parecia perfeitamente plausível que a vida de qualquer mulher de 20 poucos anos morando na cidade desse uma série.
Ainda assim, embora Girls tenha sido reavaliada como um dos grandes momentos da televisão, na época boa parte das críticas chamavam a série ou de superficial e sem sentido ou confundiam a Lena Dunham com a Hannah de uma maneira impossível. Por que a Hannah era autocentrada e sem noção de como se comportava no mundo, as pessoas imaginavam que a Lena Dunham também fosse. E porque velhos adoram se sentir superiores, uma série de textos foram escritos dizendo que no geral os millenials também eram. Mas eu te pergunto: como alguém incapaz de se enxergar escreve uma série em que os defeitos de quatro mulheres são tão revirados assim? Girls é a primeira ficção millenial não só em sua temática, mas em sua forma: essa auto-análise obsessiva das maneiras que não conseguimos nos encaixar na escada da vida adulta. E um lamento por isso.
Eu detesto o final de Girls, em parte porque acho mal construído, mas também porque eu acho que ele serve para a própria Lena Dunham trabalhar algumas dessas ansiedades millenials de um jeito que não faz sentido, mas que é nostálgico quando não deveria ser. Eu entendo, mas me parece covarde essa ideia de querer colocar sua personagem na esteira tradicional e dizer “olha, mas ela está criando o filho com a amiga". Médio. Mas isso é uma questão da série em si e não o ponto desse texto.
O ponto desse texto é que nós enquanto geração viramos adultos diante de um grande abismo. Os marcos materiais de “ser um adulto” não estavam mais ao nosso alcance e os marcos afetivos não nos interessavam da mesma maneira. Eu acho engraçado que só esse ano o inglês tenha criado a palavra “situationship” porque em português nós já tínhamos, ficante, peguete, o que quer que seja. Ainda assim, quando eu encontrei essa palavra pela primeira vez eu sabia EXATAMENTE do que ela estava falando. Era 2013 de novo e eu estava na casa dos amigos desse cara com quem eu saia sem saber o que eles sabiam de mim, o que eu poderia pedir, vivendo um relacionamento cujas regras nenhum de nós tinha certeza.
Nessa época eu vivia tendo uma conversa exasperante em que eu reafirmava que não ter rótulo ou não namorar não era uma questão para mim, que o que me angustiava era não saber o que ele sentia por mim. Uma amiga minha da época (que ainda bem não é mais minha amiga, livramentos, etc) insistia que era a mesma coisa. Um dia, já muito irritada, eu respondi “você tem um namorado e parece que não gosta dele, então não é não". Eu não sabia na época, mas hoje eu consigo formular que meu incômodo não era porque a gente não cabia em uma série de regras sobre exclusividade, rótulos e conhecer a família. Era porque nós estávamos falhando em inventar algo novo.
De certa forma, a angústia de toda uma geração.
Nós lemos obsessivamente esses livros porque uma vez que as regras, de um jeito ou de outro, foram explodidas, o que fica ali? É um pouco aquele papo de que no fundo a anarquia não é um sistema de bagunça, mas a mais sofisticada das propostas políticas porque explodir tudo requer um nível de imaginação criativa e proatividade imenso. É preciso construir algo no lugar. Ninguém sabe o que.
Mas a literatura ajuda. O Baldwin tem aquela frase maravilhosa que nos lembra que na juventude todo mundo acha que é um cristal especial de sentimentos. Mas aí você lê. E descobre que o que você sentiu já foi sentido antes. Quando adolescentes, nós ouvimos músicas tristes sem parar porque parece que podemos morrer de coração partido e queremos ser assegurados de que outras pessoas já viveram isso e não morreram. A gente quer saber que alguém já passou por isso. Mas a ironia é que meio que ninguém passou e nós estamos todos aqui, escrevendo juntos sobre não sabermos como ser adultos, sobre não ter mais as marcas.
Todo mundo procurando um guia. Mas todo mundo também meio com medo de pensar mais radicalmente em só viver outras coisas.
Eu (GenX) tenho essa piada de que o jovem acha que inventou tudo, incluindo sofrer. Pro bem e pro mal. Por ter ideias "ah! já sei!" pra (anos?) depois descobrir que já tinham feito isso. Ou também para dizer "hoje em dia a gente faz isso aqui errado" enquanto todas as outras gerações agiam do mesmo jeito.
Mas eu também tenho outra piada, a de que eu sou o millennial mais velho do mundo, por sofrer com essa quebra da escada que você falou, por não querer me submeter às regras das gerações anteriores (incluindo as da minha geração).
A gente fica insatisfeito, quebra o sofá, fica desesperado que não tem onde sentar, pesquisa sobre novos sofás, junta um dinheiro, passa o tempo e aí descobrimos que o novo sofá tem muito do sofá antigo, porque foi entendendo do que mais importante do que ser bonito no Pinterest ele tem que ter um tecido que não estraga quando você derrubar água ou seu gato subir em cima. (ok, maltratei a analogia do sofá, desculpe)
Tudo isso pra dizer, obrigado pelo texto, que bom ver que a internet voltou a ser um lugar assim.
Delícia de texto, vontade de rever girls, vontade de rever esse sentimento universal de deriva adolescente (agora que sou adulta e não compreendo a juventude da minha enteada). A Redoma de Vidro também me contextualizou em mim, mas me adoeceu fisicamente, ora, que livro brilhante e poderoso, né? .