Eu já disse em outras ocasiões que essas newsletter costumam surgir de obsessões, de ideias que ocupam um lugar na minha cabeça e eu passo um bom tempo revirando e examinando. Se depois de semanas eu ainda não estou satisfeita com o lugar que essa ideia ocupa dentro de mim, ou o que acho dela, então eu escrevo sobre.
Alguns amigos meus acham engraçado que quando chega o email para eles eu estou discorrendo sobre coisas que eles já me ouviram falar mil vezes. Outros ficam confusos de se eu falei algo pessoalmente ou se leram aqui (normalmente é os dois). Uma amiga que eu às vezes sou relapsa em atualizar me manda áudios que começam com “eu li na newsletter que…”
Eu gosto mais de quando essa ideia me consumindo - e irritando meus amigos - por semanas sai de um livro ou filme. Eu gosto menos de quando ela sai da quantidade exagerada de horas que eu passo no meu celular. Mas bom, a vantagem de ser uma pessoa cronicamente online e de achar quase todo mundo nessa internet que eu passo tanto tempo burro é que pelo jeito nunca vai me faltar assunto. Ou, pelo menos, nunca vai faltar um ângulo para eu vir aqui dizer como as ideias que as pessoas fazem de relacionamentos e intimidades são absurdas e pioram cada vez mais.
Dessa vez, a coisa que meu explorar do Instagram (sempre ele) tem entregado com frequência são vídeos satirizando os “homens de 30 anos". Veja, uma amiga já definiu meu gosto para homem como “sarjeta da FFLCH”, eu tenho um ex cuja incapacidade de comunicação é the gift that keeps on giving e homens de mais de 40 anos que eu já conheci são vistos por aí com estagiárias de 23. Longe de mim defender a socialização dos homens em assuntos amorosos, ou dizer que eles não merecem a humilhação pública de vez em quando. Vários merecem. O problema é que esses vídeos apontam para alguma coisa que não é, ou pelo menos não deveria ser, uma questão.
O crime maior dos homens satirizados nesses vídeos que me aparecem é “não estar pronto para compromisso". A crítica não é porque eles não comunicaram isso direito, porque deram a alguém a impressão de que um relacionamento era uma coisa que ele não era, mentiram ou foram insensíveis. Eles só disseram que não queriam um compromisso, ou relacionamento estável. Mas porque eles têm mais de trinta anos, isso é motivo de denúncia e ridículo.
Porque a lógica é que eles deveriam querer. Que chega um momento no desenvolvimento humano em que o único caminho de amadurecimento e existência aceitável é o desejo de estabelecer um relacionamento estável monogâmico. Tudo bem você não ter um, essas mesmas mulheres que apontam essa falha moral gravíssima nos homens reconhecem que é difícil achar (provavelmente por causa dessa falha masculina, a gente volta nisso), mas você tem que querer, você tem que estar buscando. Ou se parou de buscar não é porque descobriu que esse tipo de relacionamento não é algo que vai te satisfazer, mas porque a busca se tornou frustrante demais.
A julgar por esses vídeos, em voz alta que você não acha que um relacionamento estável monogâmico é algo que você quer para sua vida, assumir que esse arranjo não te satisfaz e talvez você esteja feliz com a possibilidade de encontros casuais é o equivalente moral de matar um gatinho. Considerar que o caminho traçado e padrão de “amadurecimento” não é exatamente como você quer viver sua vida e considerar que, precisamente, ser adulto é a possibilidade fazer outras escolhas é algo quase obsceno.
Esses vídeos tem um parceiro, um outro formato comum no qual uma moça ri de si mesma por ainda estar solteira. O mais frequente desses - e que mais me dá arrepios - mostra uma garota no início de uma escada e cada degrau corresponde a um estágio (“solteira”, “conversa", “ficar", “namorar", “casamento", coisa assim). Uma legenda diz “pessoa normal” e aí a moça sobe a escada. Em seguida a legenda diz “eu” e aí a moça senta no degrau que diz “solteira” e fica ali. Tudo bem, ela está rindo de si mesma, mas é um riso que tem cara de autodepreciação. De que é mais fácil fazer piada com essa deficiência sua do que sofrer por ela, mas não se engane, ela é uma deficiência.
Eu conheço esse tipo de humor, eu sou capaz de contar a coisa mais traumática que aconteceu comigo e fazer uma mesa inteira rir e, bom, essa newsletter existe. O impulso dessas meninas de fazerem humor com seu incômodo não é o que me dá calafrios. É a escadinha, literal, do relacionamento. É a ideia de que subir essa escadinha muito literal é o normal e ficar no primeiro degrau um encolhimento da vida e da experiência. Uma sala de espera da vida, não a vida em si.
Só existe uma maneira de se viver a vida: entrar em um relacionamento estável monogâmico. Se você não quer isso, você é uma pessoa imatura digna de ser ridicularizada. Se você não consegue isso, melhor fazer piada dessa tragédia pessoal.
Em uma década de um relacionamento estável, mas não-monogâmico, eu encontrei muitas vezes a ideia de que alguma hora eu ia cansar. Que alguma hora o desejo sexual aleatório e a paixão casual seriam coisas que eu iria deixar para trás. Às vezes isso me foi dito dessa forma mesmo, em outras a pessoa me contou a própria experiência em tom de evoluído: “ah, eu costumava gostar disso, mas uma hora fica velho, sabe? Eu já tenho mais de trinta anos".
Não, eu claramente não sei, já que você é uma alma reencarnada muitas vezes na escala da iluminação budista e eu pelo jeito ainda estou voltando como barata do Kafka.
Eu vinha pensando nesses vídeos há muito tempo, mas não conseguia me convencer a escrever porque eu não conseguia achar o ângulo para pensar sobre isso. Então duas coisas aconteceram.
Primeiro, semana passada, eu estava jantando com duas amigas e defendendo Paixão Simples pela milésima vez (era isso ou eu estava fofocando) quando a
me virou e disse, não sei se exatamente com essas palavras, mas algo assim: amiga, o que você acha de paixão?E eu, meio de brincadeira, meio não, respondi: a maior resistência contra o capitalismo que existe, já que ela é anti-produtiva, você não quer trabalhar, só ficar transando; anti-família, já que você não quer pagar conta e ter filhos, quer só ficar ali vivendo aquela coisa, aquela pessoa. É um sentimento em si mesmo, ela não vai para lugar nenhum, ela é destrutiva, você só quer viver aquilo e se consumir na outra pessoa e é isso.
É claro que eu não fui tão articulada assim numa noite de terça depois de dois drinks, mas o espírito era esse. E a gente seguiu com as relações entre atração, paixão e aquelas amizades obsessivas de meninas adolescentes. Mas eu fiquei pensando nessa minha definição.
E aí, essa semana, eu comecei a ler De Quatro, um livro que eu ainda preciso terminar e que provavelmente vai aparecer de novo aqui, mas que deu a chave final desse texto. Acho que a essa altura todo mundo já sabe, mas a protagonista do livro começa um caso sexual, mas não consumado, com um homem muito mais novo e se apaixona por ele. Então, em certa altura, a melhor amiga pergunta se ela pensa em trocar o marido por ele e ela responde que não, claro que não, que ela não quer dividir uma vida com esse cara, ela o ama com um “amor de amante”.
Eu ri da construção de frase e entendi o que ela quis dizer. Há um aspecto de auto-engano no que a protagonista está dizendo, especialmente nessa passagem, mas eu sei também (não terminei o livro, porém amo um spoiler) que ela não larga o marido no final. Que de certa forma, apesar de toda a crise, ela considera a possibilidade de acomodar as duas coisas. Porque às vezes realmente, você se apaixona por alguém com um “amor de amante", de uma forma que não quer ir para lugar nenhum, que só quer se consumir ali. Até porque, dividir um vida é, em muitos sentidos, antitético a esse tipo de paixão. Pergunta pra Annie Ernaux.
Porém, nós vivemos em uma sociedade que não tem o vocabulário para sentimentos que queiram ir para outros lugares, ou lugar nenhum, e esses vídeos que me irritam tanto demonstram que a gente não está no caminho de melhorar.
Nessa mesma conversa sobre paixão, a
defendeu que é possível existir paixão, ou seja essa obsessão e desejo de se deixar consumir por um sentimento, sem que exista atração sexual. Que quase sempre isso ganhe o rótulo de amizade é justamente consequência da nossa falta de vocabulário para os sentimentos e as possibilidades das relações humanas: existe aquilo que conduz ao relacionamento estável monogâmico e aquilo que é amizade. Fim. E, ainda assim, a nossa experiência real escapa tanto e com tanta força das explicações que querem conte-la.Existe você amadurecer e entender que precisa encontrar uma pessoa para dividir a vida. Não querer dividir sua existência com ninguém, mas tirar satisfação de conexões mais rápidas, romances breves e sexo casual é imaturidade. É um absurdo que homens de trinta anos ainda queiram isso, eles deveriam saber que não só isso não é algo que você pode querer, quanto essa recusa deles de amadurecerem está atrapalhando o desenvolvimento normal de todas as mulheres que amadureceram e estão no caminho correto. Quem sabe se eles forem humilhados com alguns vídeos isso melhora.
Não me impressiona que seja homens a dizerem isso com tanta clareza e nem que eles sejam as vítimas dessa crítica. Ser uma mulher que não quer esse caminho tem seu peso, mas ele costuma vir com o rótulo de puta e uma ideia de que você está a margem da sociedade. É um problema, mas outro. Contudo, homens são seres socializados para viverem seus desejos de forma muito mais clara e, ao mesmo tempo, menos presos à ideia de que um relacionamento amoroso é necessário para sustentar a identidade deles , portanto, se eles não querem encontrar alguém e casar, eles só não fazem isso.
E, no entanto, como isso deixa o exército de mulheres pra quem foi ensinado, ainda, que o valor delas está em ser a escolhida por um homem? Ou ensinadas a investigarem muito menos seus desejos e vontades e, portanto, com menos clareza do que as satisfaz em termos de relacionamento ou não? E depois de tantos anos de gente da idade da minha mãe acreditando em amor livre e liberdade sexual a gente segue, ainda, insistindo que o amor é só uma coisa, que ele tem só um caminho e esse caminho é a vontade de dividir a vida com alguém. Qualquer outra coisa é imatura, qualquer outra conexão é inválida.
Sempre que a gente conversa e eu te leio eu fico pensando que tenho que tomar vergonha na cara e vencer a preguiça pra escrever sobre amizades. Porque, pra mim, é mt óbvio que a falta de vocabulário que temos pra falar de amizades é consequência da ameaça que esse tipo de relação é pra monogamia. E a própria invenção da melhor amiga é uma maneira de se ensinar monogamia antes das meninas sentirem atração sexual.
Enfim, é um longo papo, vamos ter que sair pra beber de novo. Mas você vai amar saber que me descobri não-mono por causa das minhas amizades, não das relações românticas e sexuais (e agora você diz em voz alta mas é CLARO que sim kkkk)
É um trabalho hercúleo, ainda mais pra quem é de uma geração anterior como eu, diferenciar o desejo genuíno de estar numa relação amorosa a dois do incômodo por não se encaixar num suposto padrão obrigatório. E o fato de não existirem PALAVRAS pra definir outras possibilidades explica mta coisa.