Eu abri meu primeiro blog em 2003. Era um wordpress que eu configurei no computador desktop, aqueles com uma CPU imensa, que ficava no meu quarto de adolescente. Eu usava um fundo de tela todo cheio de estrelas cor-de-rosa, conseguia ver o playground do prédio pela janela e passei os próximos três anos acordada nas madrugadas, iluminada pela luz azul de um monitor abaulado e escrevendo na internet.
Esse blog tinha um endereço vergonhoso e uma barra na lateral cheia de gifs piscantes. Ele era uma espécie de blog diarinho, o que eu fiz no meu dia e tal, mas não era meu diário. Eu tinha um diário de verdade, um caderno onde eu despejava as coisas que não cabiam em mim sem me preocupar com escolha de palavras, ou se estava claro de quem eu estava falando. O blog era um passo além, ele tinha uma certa ficcionalização dos meus dias, quase sempre alguma tangente reflexiva a respeito do que tinha me acontecido. Um pouco depois eu iria abrir um Fotolog (sim, eu sei) e embaixo de fotos do meu pé, ou selfies distorcidas feitas com o timing da câmera, eu deixava textos metafóricos e enigmáticos que, assim achava eu, comunicariam exatamente o que eu estava sentindo para aqueles que fossem especiais o suficiente para entender.
Eu já queria escrever. No final desse mesmo ano, espremida em um canto escuro da casa de um amigo, conversando com um garoto por quem eu começava a me apaixonar, eu disse que queria ser escritora. Os olhos dele brilharam, ele assentiu. Até a gente se perder da vida um do outro, o que só aconteceu muito mais tarde, ninguém nunca acreditou nessa declaração como ele. Talvez, até hoje, ninguém mais acredite.
Eu tive outros blogs depois desse primeiro. Quando eu tinha meus vinte e dois, vinte e três anos, estava absolutamente louca da minha cabeça e fazendo muito esforço para entender como ser uma adulta nesse mundo, um deles fez um relativo sucesso. Alguns ensaios sobre se relacionar e contos fragmentados que tentavam dar conta de uma perda de mim mesma que eu estava só aprendendo a nomear encontraram ressonância e me transformaram em uma “pessoa que escreve na internet". Uns anos depois, eu passei três meses na Europa e escrevi uma coluna com ares de correspondência retrógrada. Pequenas crônicas do lado de lá. Quando eu voltei, pessoas em festas de editora elogiaram minha sensibilidade, meu humor. Eu senti que tinha valido a pena perder meu passaporte.
Desde que eu fiz meu primeiro registro no wordpress, eu escrevi no Tumblr, no Medium, em pelo menos três sites coletivos diferentes. Duas plataformas de newsletter. Alguém me disse vinte anos atrás que a internet era um lugar onde eu poderia escrever, então eu fui e fiz isso. Eu não pensei para onde isso ia.
Porque eu quero - porque a adolescente que eu fui queria - ser escritora, é claro que essa escrita nunca foi sem propósito. Eu sempre quis ser lida. Todo mundo quer. Mesmo hoje, eu não sou imune ao sucesso delicioso que tem sido essa newsletter, eu às vezes abro as estatísticas e fico ali, incrédula, só pensando que 4500 pessoas (4500!!!) querem ler o que eu escrevo. Ninguém vem na internet escrever pro vazio, é lógico, mas existe uma diferença entre querer se comunicar e querer números e parece que boa parte das pessoas nesse site específico esqueceu disso.
Todo dia eu abro meu Substack e encontro algum post no notes de um coitado choramingando que se esforça tanto (esforça mesmo?) com sua newsletter e só tem 20 assinantes. Que ó, como é cruel esse mundo em que só quem já tem um público segue tendo público, ninguém me lê, eu que sou tão genial, que escrevo textos tão bons e ninguém me lê, que amargura, que tristeza, sou tão tadinho. Me leiam porque eu me dei ao trabalho de vir aqui escrever e como assim eu não vou ser recompensado por ter dado esse presente ao mundo? Como assim eu fiz um mínimo esforço que é costurar palavras uma depois da outra e nem todo mundo parou pra ver?
Que ele começou a fazer isso ontem e as pessoas com público estão fazendo há vinte anos ninguém pensa. E, ainda assim, nem é isso que me incomoda nessas reclamações.
O que me incomoda é uma inversão da coisa: as pessoas não escrevem porque querem escrever, o ato da escrita não é o que centra o impulso dessa galera de ter uma newsletter. O que eles querem é ser lido. E quando não são lidos, escrever não vale a pena.
De novo, eu não vou fingir que não gosto de ser lida, que não fico derretida quando recebo emails ou comentários dizendo que o que escrevi tocou algo na pessoa, que não conto para todo mundo quando sou reconhecida na rua (acontece, eu juro!) por algum leitor da newsletter. É maravilhoso. Mas eu estaria aqui sem isso, só porque a ideia de não escrever não existe para mim. Eu escrevo porque sou escritora, porque sem isso as ideias engarrafam dentro de mim, tomam espaço, consomem meu ar e eu não consigo existir ou trabalhar direito enquanto essa coisa não sair de mim.
Lógico que se fosse tão para mim mesma assim, eu não escrevia nada fora do meu diário, mas o diário é um monólogo, um espelho. Sábado passado, um pouco doente, um pouco deprimida, profundamente desorganizada por dentro, eu sentei para escrever nele. Eu estava frustrada com ter caído do meu próprio cavalo, me sentindo um pouco Ícaro que voou alto demais e acabou com a cara na lama e disse isso para mim mesma. Então escrevi três páginas quase automáticas, um despejo sem ritmo ou refino de todas as possibilidades, todas as coisas que eu não sei, todas as que eu sei. Quando acabou, eu me sentia melhor. Nenhum desses sentimentos tinha encontrado seu lugar, mas eles estavam fora de mim. Escrever acomodou um pouco a bagunça, mas não me exigiu ordenar nada. Porque era só um diário, eu não precisei achar uma linha de raciocínio, fazer sentido, procurar lógica.
Aqui é diferente. Para cada texto dessa newsletter, eu tenho só um começo. Uma ideia que vem me assombrando, um filme sobre o qual pensei coisas, um livro que tocou algo profundo. Eu tenho um tema, mas nunca sei exatamente o que acho dele, que tipo de comentário maior ou raciocínio vou tirar dali. Porém, porque essa newsletter é pública, porque eu preciso me fazer inteligível, me comunicar com vocês e entregar um texto coerente, eu começo a encontrar tudo isso. Eu não posso só pular de ideia em ideia, elas precisam se encadear. Não posso só jogar coisas que acho, preciso explicar de onde elas vêm. Preciso convencer meus leitores do meu ponto de vista. Preciso dialogar.
E então, no processo de construir um texto que vai ser lido, minhas ideias se organizam. Eu encontro o que penso, meus argumentos se fortalecem, eu olho para meu objeto de diversos ângulos. Deve ser meu exemplo mais batido falar que escrever um ensaio é como pegar um assunto nas mãos e girá-lo, examiná-lo por vários lados, sentir seu peso, sua temperatura, seu cheiro. A cada newsletter, eu estou fazendo isso com alguma ideia, o que eu não faria se estivesse escrevendo só para mim mesma. Eu escrevo porque preciso me achar no mundo e às vezes só é possível fazer isso quando você se explica para o outro. Mas no fundo faz pouca diferença quantos são esses outros, o motor é essa possessão.
Umas semanas atrás, eu tive duas conversas diferentes sobre a newsletter. Em uma, alguém que não escreve perguntou se os temas mais quentes iam melhor. Eu disse que sim, mas que eu não me preocupava com isso. Eu sei que os temas de comportamento viralizam, eu disse, mas às vezes eu só quero escrever sobre o Wong Kar Wai, então eu escrevo. Na outra conversa, eu estava ajudando um amigo a pensar a newsletter dele e falei que sentia que era bom eu escrever sobre um livro, ou filme quando a coisa ainda estava sendo falada, mas que no fundo a vida de todo texto era muito longa. Que às vezes, do nada, eu recebia um comentário maravilhoso em um texto de mais de um ano atrás. Se você faz algo que as pessoas querem compartilhar, elas vão começar a postar em todo canto, eu contei, compartilhar citações, mandar pros amigos, mas eu não tento prever como isso vai acontecer, quem escolhe sobre o que eu vou escrever — e eu usei exatamente essa imagem — são as vozes na minha cabeça.
E claro, quando um texto vai bem, quando eu recebo comentários longos, sensíveis, quando leio emails de gente dizendo que eu dei palavras para algo que a pessoa sentia, mas não tinha conseguido articular, é uma delícia. Eu sinto que fui bem-sucedida em algo. Mas é menos o número de likes e mais o elogio intelectual de ter captado algo importante, de ter construído um raciocínio atraente, de ter ajudado pessoas a pensar.
Todo mundo escreve pra dizer algo, mas ser lida é diferente de se comunicar. E se comunicar requer sair do seu próprio umbigo. O que me leva a meu segundo incômodo com os tadinhos do notes: as pessoas reclamam de não serem lidas, mas muitas vezes só escrevem textos ruins.
E por ruins eu nem quero dizer com palavras mal escolhidas. Pode até ser isso, mas não é meu ponto. Meu ponto é que boa parte do que eu leio no Substack é uma informação, um algo que a pessoa conta. Outro dia eu estava na padaria e um velho me disse uma coisa. Semana passada eu fiz carinho em um cachorro na rua. Aprendi a tricotar. Levei um fora. Entrei na internet.
Tudo bem, mas e daí?
Um ensaio é, nas palavras do Montaigne, um pensar na página. Você pega o tema e pensa sobre ele, explora as possibilidades, investiga o que pode sair dali. Um ensaio pessoal é a mesma coisa, mas você parte de você mesmo, de algum episódio individual, ou sentimento seu, ao invés de uma ideia filosófica externa. Contudo, o princípio segue o mesmo. Você precisa pensar na página. Investigar a coisa, revirá-la, examiná-la. Se seu tema é você mesmo, o que você encontra aí dentro? O que essa interação que você está me contando te faz pensar, o que ela revela sobre o mundo? Por que ela é interessante para outra pessoa?
Se você escreve e quer ser lido, então o texto é um diálogo. Meu diário não é interessante para mais ninguém, exceto eu e talvez as poucas pessoas que se relacionam comigo de forma íntima o suficiente para serem personagens nele. Mas nem sei se para elas. Essa newsletter, por outro lado, eu suponho que seja interessante para 4500 pessoas, uma vez que elas se inscreveram para recebê-la toda semana. O que torna um assunto interessante para mim, ou para o outro, não é igual. O que move o impulso de escrever algo que não vai ser lido ou vai não pode ser igual.
Eu sei que comecei dizendo que escrevo porque eu estou possuída por uma ideia e é verdade. Mas também disse que o processo de escrita da newsletter é tirar essa assombração de mim e passá-la para frente e para isso eu preciso que ela se torne atraente para o outro. O que essa minha obsessão diz do mundo? Ou o que eu vejo quando olho para fora e por que isso me perturba tanto? Eu estou falando algo que você pode entender e sente vontade de responder? Isso é uma conversa?
Boa parte das newsletters aqui não são uma conversa, elas são um monólogo. Elas são um derramamento de si que não convida o outro, que não diz nada para ele. É óbvio que tudo que me acontece é relevante para mim e eu vivo interações banais como significativas, mas eu não sou a medida de todas as coisas e para se escrever algo que vai tocar o outro é preciso, exatamente, sair de si mesmo, estender uma mão, fazer um convite.
Escrever é um impulso paradoxal. Eu escrevo porque as coisas me assombram, porque eu sou obcecada, porque não sei existir de outra maneira. No entanto, se eu quero ser lida eu preciso transformar isso que é profundamente pessoal em diálogo, em algo universal e significativo. Por outro lado, se eu quero ser lida, mas escrever não é uma necessidade que parte de mim, a coisa vai ser só frustrante. O trabalho tem que ser a recompensa, tem que haver prazer nele porque a conta da recepção não vai fechar mesmo, nunca.
Eu amo que hoje essa newsletter tenha o público que tem. Que ela esteja me dando visibilidade e até mesmo uma renda significativa. Mas não foi por isso que eu comecei. Eu comecei porque eu não consigo não escrever e eu não consigo pensar sem escrever coisas que eu acho que vão ser lidas. As pobres das minhas amigas sabem da minha obsessão com fazer sentido de tudo, da quantidade de vezes que eu conto a mesma história iludida que o processo de narrar vai me fazer entender algo que não entendi antes. Essa newsletter é isso, mas para as coisas que todo mundo pode saber. Dar forma inteligível ao que está me perturbando, torcer para que chegue em alguém.
E chega. Aos poucos. Eu escrevo na internet há vinte anos, eu tenho essa newsletter há cinco. Os números não vieram do dia para a noite e hoje eu escrevo muito melhor do que quando comecei. Porque escrita é prática também, é constância. Nisso os tadinhos do notes não pensam.
Eu escrevo porque eu sempre escrevi, porque eu não sei ser de outro jeito. Eu tenho pouquíssimas esperanças que essa conta vai fechar um dia. Se você faz questão que feche, sei lá, acho melhor ir fazer outra coisa.
Disse tudo! Simplesmente não dá os textos onde sai apenas relatos específicos do que aconteceu na vida, fico exatamente assim, tá, e daí? Ok escrever algo que aconteceu na sua vida, mas preciso de algo que aconteceu na minha tbem, e que esse texto exista entre nós, e não exista apenas para você emoldurar na parede virtual e colocar número 524ª newsletter antes do título, e depois reclamar que não te leem. Se não é pra escrever com gozo, só escrever pra ter número, nem escrevo.
Amiga obrigada você é tudo ❤️