Venus, planet of love
Was destroyed by global warming
Did its people want too much, too?
Did its people want too much?Nobody, Mitsky
Quando eu era adolescente (eu, pelo jeito, venho pensando muito nisso, não sei dizer por que, a memória funciona de formas estranhas, etc, etc) a maior certeza que eu tinha sobre mim mesma é que eu queria demais e de alguma forma isso seria minha tragédia.
Eu não acho que eu sabia o que essa certeza realmente significava, ou como ela ia acabar aparecendo na minha vida. Com certeza, aos 16, 17 anos, eu não sabia o que era uma tragédia pessoal, eu só estava pensando em termos dramáticos porque eu era uma pequena existencialista entediada que tinha descoberto as drogas. Mas eu ouvia minhas amigas falando das coisas que elas esperavam da vida, de seus relacionamentos, de suas carreiras, e eu só queria Mais.
Minha melhor amiga da época (com quem eu rompi alguns anos depois em uma briga que certamente foi dramática) queria muito passar em um vestibular concorrido e falava muito de como, uma vez na faculdade, ela nunca mais ia se esforçar tanto. Eu, que queria ir aprender a ser artista e consegui uma bolsa para isso meio por acidente, pensava que faria exatamente o contrário. Que uma vez que eu estivesse na faculdade, aprendendo coisas que me interessavam, eu iria viver para o trabalho intelectual, eu seria a melhor aluna, um gênio, o que quer que fosse.
Judy was a teenage rebel
She did it with a boy when she was young
She gave herself to books and learning
She gave herself to being number oneJudy and the Dream of Horses, Belle and Sebastian
Eu não sei quando eu decidi que eu queria escrever, mas eu lembro da primeira vez que eu disse isso em voz alta. Era tarde da noite, eu estava encolhida no canto de um sofá na sala da casa de um amigo meu, o espaço à meia luz. Meus amigos estavam espalhados por aí, no chão e em outras poltronas, todo mundo sussurrando e bebendo escondido enquanto os pais dele dormiam. Eu estava conversando com um menino que não bebia por convicções políticas e que eu já conhecia, mas não tinha prestado atenção até aquela hora. Ele perguntou o que eu queria. Não fazer. Não como profissão. Só assim, o que eu queria. Eu disse que queria escrever.
Ele tirou uma foto minha em que eu apareço rindo, a luz avermelhada por causa do flash da câmera digital, meu cabelo descendo pela borda debaixo da foto e a coisa toda dá uma impressão de que eu era uma hippie nos anos 70 em Londres. Foi minha foto preferida por anos. Ele foi minha pessoa preferida por anos.
Eu disse que queria escrever e que queria ser famosa. Não rica, eu esclareci, porque ele era comunista e eu estava tentando impressionar. Mas famosa. Eu queria que meu trabalho fosse algo grandioso e eu queria morar em vários países e ter vários relacionamentos. Eu me apaixonei por ele de uma forma que na época eu achei que era o tipo de conexão de almas que as outras pessoas não experimentam, que era algo maior e profundo e completamente definidor da nossa existência (bom, a última parte, talvez fosse mesmo).
Eu não sei por que tenho pensado tanto na minha própria adolescência, mas eu sei por que voltei para essa ideia, essa vontade descabida e fome do mundo que na época me pareciam tão inadequadas. É porque nos últimos anos eu voltei a sentir essa inadequação e mais recentemente eu me vi diagnosticando a origem dela em muito do discurso da internet onde passo tempo demais.
Eu não vou voltar no “todo mundo na internet de repente é chato e quer viver uma vida pequena”. Eu já escrevi sobre isso, é o texto de maior sucesso dessa newsletter de muito longe e segue recebendo respostas mesmo que já tenha quase um ano. Mas eu quero voltar na minha relação pessoal com esse discurso e nessa sensação adolescente que eu tinha que, de alguma maneira, querer demais estava me condenando a alguma coisa.
Porque a verdade é que sim, estava. Querer como eu queria, quero ainda, me condenou muito cedo a uma insatisfação constante e ao confronto com a minha própria incapacidade de dar o que eu mesma desejo. Eu posso querer ser uma ganhadora do Nobel de literatura o quanto eu quiser, eu ainda não sou capaz de fazer isso. Eu posso querer uma vida que seja absolutamente intensa e cheia de possibilidades o tempo todo, mas eu ainda tenho que pagar minhas contas, e resolver burocracias de MEI e fazer escolhas e no fim e querer dessa forma é sim se condenar a uma insatisfação eterna.
Mas ainda assim. Ainda assim, eu sinto um deslocamento que não acho que precisava sentir.
Parece um pouco estranho dizer isso, ainda mais para qualquer pessoa que já entrou em uma farmácia norte-americana, mas o capitalismo é uma ideologia de escassez. Ou uma ideologia de valorização do acúmulo, que é algo que só pode fazer sentido diante da falta. E quando ele dita nossa experiência íntima, que é sempre a intersecção que me interessa, isso se torna uma imposição de escolhas que nos parecem binárias, mas não precisariam ser.
Quando eu fui ver a Fernanda Montenegro ler A Cerimônia do Adeus ano passado (bom, esses ingressos de fato uma experiência da escassez) se sentaram ao meu lado umas três mulheres de seus cinquenta anos de idade. Elas não pareciam, pela minha leitura dos signos da moda, leitoras da Beauvoir, mas parte do público que estava lá pela Fernanda Montenegro e em diversos momentos do texto, especialmente aqueles que falam sobre os muitos relacionamentos da autora, elas riam com aquele tom de quem diz “que doidinha ela, que exótico".
Eu gosto muito dos textos autobiográficos da Beauvoir e minha coisa preferida neles é como eles expressam que uma escolha política e filosófica se refletiu sempre na maneira como ela vivia a vida. É linda a frase “viver sem tempos mortos", mas é mais que isso. É tentar, e às vezes conseguir, às vezes não, recusar o modo de vida binário e a submissão da experiência à produtividade. O capitalismo é escasso porque todas as coisas que falam da vontade, do desejo, da libido, de excesso te tiram da produção. Ou da versão capitalista de produção.
I saw my life branching out before me like the green fig tree in the story. From the tip of every branch, like a fat purple fig, a wonderful future beckoned and winked. One fig was a husband and a happy home and children, and another fig was a famous poet and another fig was a brilliant professor, and another fig was Ee Gee, the amazing editor, and another fig was Europe and Africa and South America, and another fig was Constantin and Socrates and Attila and a pack of other lovers with queer names and offbeat professions, and another fig was an Olympic lady crew champion, and beyond and above these figs were many more figs I couldn't quite make out. I saw myself sitting in the crotch of this fig tree, starving to death, just because I couldn't make up my mind which of the figs I would choose. I wanted each and every one of them, but choosing one meant losing all the rest, and, as I sat there, unable to decide, the figs began to wrinkle and go black, and, one by one, they plopped to the ground at my feet.
The Bell Jar, Sylvia Plath
As mocinhas leitoras da internet tem adorado postar esse trecho de A Redoma de Vidro e eu lembro da identificação nos meus ossos que eu senti quando o li da primeira vez, aos 17 anos, quando eu era essa adolescente que se acreditava trágica por querer demais. Essa metáfora era exatamente como eu me sentia: querendo tanto, mas tanto, que qualquer escolha parecia uma perda impossível e no fundo eu estaria condenada a não ter nada. Ou a viver com a consciência de tudo que eu não tinha escolhido. Trágico de qualquer forma.
Mas isso foi antes da Beauvoir, que eu li não como quem acha tudo muito exótico, mas quase como um manual, um guia de como viver a vida. Ela não foi feliz ou satisfeita a maior parte do tempo, mas existe uma recusa tão violenta das constrições da ética burguesa que parecia que alguém estava me abrindo as portas do paraíso. Ela não se impôs a escolha entre ser uma mulher erotizada e intelectual. Uma ativista ou uma escritora. Entre homens e mulheres. E nem mesmo a um tipo de amor, uma forma de relacionamento. Ela escolheu ter o amor longo e muitas paixões.
Vai dizer no Twitter que essa é uma escolha que você pode fazer.
E aqui a gente chega nas coisas que voltaram a me causar um incômodo que eu não sentia há muito tempo e talvez seja por que eu estou conectando todas essas linhas nas quais ainda não tinha pensado
mas, precisamente para impor alegremente a mim mesma semelhante esforço, era necessário que o estudo não representasse uma distração e sim a minha própria vida: as coisas de que falavam no meu meio não me interessavam. Não tinha ideias subversivas; na realidade, não tinha muitas ideias acerca de coisa alguma. Mas exercitava-me o dia inteiro a refletir, a compreender, a criticar, a interrogar-me; procurava a verdade com precisão: esse escrúpulo tornava-me inapta às conversações mundanas.
Memórias de uma moça bem-comportada, Simone de Beauvoir
Porque muitas das pessoas que eu vejo todo dia, na internet e fora dela, defendendo que a vida é feita dessas escolhas estreitas se acham de esquerda. Feministas. Uma meia dúzia é até tão sem repertório a ponto de se achar revolucionária. E ainda assim nenhuma dessas pessoas parece entender que a forma como elas vivem a vida, transam e se relacionam atende diretamente às demandas desse sistema que elas odeiam.
Elas seguem, em diversos âmbitos, rejeitando a ideia de que talvez, só talvez, a gente possa ter tudo que quer. Talvez eu tenha voltado a esse sentimento de adolescência porque desde muito cedo eu fico esperando que as minhas vontades vão fazer cair um raio sobre a minha cabeça. Que as minhas vontades ou estão condenadas à insatisfação ou vão me cobrar um preço muito alto. O que não é irreal, eu paguei, sobretudo nos últimos anos, o preço de querer as coisas que eu quero, quase sempre na forma de um julgamento muito duro de onde eu me deixei acreditar que ele não viria.
Tem esse livro que eu ainda não li, mas está na minha lista há um tempo chamado More: A Memoir of Open Marriage e embora curiosamente não seja um assunto que guie minhas leituras, o nome do livro me chamou a atenção. E quando eu ouvi uma entrevista da autora em um podcast muito do que ela fala vai nessa direção: uma recusa de abrir mão das coisas. A ideia radical de que ela só podia ter mais.
E ainda assim, tanta gente que quer se crer radical politicamente todo dia recusa essa possibilidade.
Parece que esse é um texto falando apenas sobre não-monogamia, mas não é isso. É porque acho que talvez seja o ponto mais fácil de identificar onde a ideia de que é sempre preciso viver na falta é popular e falsa. Sendo que veja, é claro que a falta é a maior das condições humanas, é claro que a gente sempre vai estar insatisfeito e desejando, o contrário disso é a absoluta morte. Mas existe uma diferença entre a falta inerente a todos nós e a imposição de que é preciso querer o mínimo possível.
Esse texto é mais sobre uma certa sensação que tenho tido de que querer demais, seja sexualmente, profissionalmente, socialmente, é hoje em dia um pouco gauche. Um pouco brega. Todo mundo é clean girl, toda estética é minimalista, todo mundo quer ficar em casa, achar um amor mais ou menos e transar mal o resto da vida. Todo mundo quer evitar desconforto, todo mundo quer evitar a consciência da falta.
Porque no fundo é meio isso. Querer descabidamente e aceitar a possiblidade de se ter o que quer é também aceitar a possiblidade de não ter. Se eu posso ter, se me é dado em termos morais, políticos, se é uma das versões do universo, isso não quer dizer que eu vou conseguir. E não ter quando você poderia dói muito mais do que se interditar o querer. Já dizia a Fiona Apple “hunger hurts but starving works”
Achei esse texto confuso e considerei refazer mais centrado no ponto que eu deixo no final, mas em respeito ao Montaigne, à tradição do ensaio, a ilusão que tenho de mim mesma como ensaísta, decidi deixar assim. Eu tento voltar nessa ideia com mais clareza outro dia.
Vista da Semana
É difícil cair quando se está de quatro: essa resenha da
para De Quatro, da Miranda July, toca em vários dos mesmos temas dessa newsletter, embora a gente vá pra caminhos diferentes, eu acho.Did a Best-Selling Romantasy Novelist Steal Another Writer’s Story? Não sei se o que me fascinou mais nessa história foi a treta ou a ideia de todo um gênero de livros sobre sexo com gárgulas
E de coisas que vi e não vão parar aqui: assisti Conclave, amei, cristãos são inexplicáveis, cardeais tudo fofoqueiro, o negócio é um thriller político, mas imagina se fosse o papa e se um dia eu me ver em situação de ter que defender cristianismo vai ser os católicos porque a estética é imbatível.
Amiga, me pegou fundo aqui haahha porque eu quero demais muita coisa mas também tenho medo do que será cobrado, e mais medo ainda do fracasso. Ai desde adolescente tento baixar minha bolinha pra decepção não ser grande. Felizmente, no âmbito relacionamento, querer o básico nunca foi uma opção. E vejo que muita gente quer só esse básico, só o imprescindível pra performar a imagem de pessoa que entrou nos trilhos da vida — e aí se contenta com qualquer coisa, sem querer mudar em nada um arranjo que nunca foi perfeito.
tendo sido eu também uma criança e uma jovem de muitos quereres, mas que precisou aprender a domar a fera para poder sobreviver nesse mundo, por questões principalmente sócio-econômicas, eu digo com quase certeza que muitas das pessoas que ficam por aí falando que querem o básico (em todos os âmbitos, nem tou falando aqui só no campo afetivo e sexual) ficam dizendo isso para convencerem a si mesmas de que isso é o suficiente, já que elas nunca vão ter tudo o querem e não podem enlouquecer a essa altura do campeonato.