A Substância começa no dia em que Elisabeth Sparkle, personagem de Demi Moore e uma atriz decadente já há anos confinada em um programa matutino, faz 50 anos e, por conta disso, é demitida de seu emprego. Enquanto engole cabeças de camarão em um ângulo que talvez me deixe repensando meu amor por frutos do mar, um Dennis Quaid absolutamente nojento explica que, veja bem Elisabeth, ninguém quer coisa velha na TV. É tão clichê quanto brutal, filmado de uma forma em que essa platitude se torna ainda mais violenta, especialmente porque todos nós sabemos que ela é absolutamente real. Mas para mim não é aí que o filme estabelece sua premissa, não é a demissão que me faz entender o que está em jogo e do que vamos falar.
Algumas cenas adiante, Elisabeth está sozinha em um bar chique, tomando martinis usando um vestido de costas abertas. A câmera se afasta lentamente dela, abrindo o plano, e você vê as costas de uma Demi Moore de 61 anos. Costas flácidas, uma pele com textura áspera, o efeito geral longe do sexy sutil que um vestido desses deveria produzir.
O filme segue nesse exame implacável do corpo de Moore, alguém que eu até hoje nunca tinha pensado em termos que não fossem “uma mulher muito linda” e eu acho que ela se prestar a essa revelação é de uma coragem absurda. Porque a câmera desliza pelas manchas em seu rosto, as rugas em volta dos seus olhos, a bunda murcha e caída, as pernas que já não são aquela coisa. E o que me parece genial e violento é que essa câmera não representa um olhar externo, ela não é - como depois vai ser, quando Sue entra em cena - o olhar masculino do desejo. Ela é o olhar da própria Elisabeth.
A Substância é um filme de terror sobre aquele dia em que você se olha no espelho e nota uma ruga que não estava lá antes. O dia em que a luz bate diferente e você vê seus pés de galinha. Que você sai em uma foto e nota a flacidez do seu pescoço. Sobre o processo lento, angustiante e íntimo de observar seu corpo deixando de ser o que ele era e saber que cada marca nova é a perda do poder que esse mesmo corpo costumava ter. Sobre o pavor que é um dia ser chamada de uma mulher linda "para a sua idade".
Eu sou uma grande fã de body horror no geral porque o que me interessa no terror enquanto gênero é a capacidade que ele tem de revelar coisas sobre a sociedade através dos nossos medos. O terror, por meio do exagero e da dramatização, da concretização em monstro, fala daquilo que nós tememos e aquilo que nós tememos revela muito sobre a organização de uma sociedade e as coisas que podem esfacelá-la. O body horror é uma das manifestações mais interessantes dessa ideia porque ele localiza os medos dentro de nós, ele diz que aquilo que nós mais tememos somos nós mesmos.
O que, quando você viveu a vida inteira em um corpo feminino, não é nenhuma surpresa. Todo corpo me parece uma máquina absurda e fascinante, mas o feminino te confronta com o funcionamento dele todo mês e com a precariedade dele toda vez que você caminha por uma rua escura a noite. Carrie é uma história sobre menstruação, Alien não deixa de ser um filme sobre o absurdo de ter outra pessoa crescendo dentro de você. Ambos dirigidos por homens, o que é assunto para outra newsletter, mas enfim. O corpo feminino, pela sua biologia, mas principalmente por seu status social é um objeto constantemente monstruoso, lugar de perigo e cujo valor está condicionado a tudo isso.
Porque o corpo feminino desejável é o corpo imaculado. Pela idade, mas também pelo desejo, pela sexualidade. É o corpo para ser visto e consumido por homens, mas nunca um corpo que vive, nunca um corpo que, como em uma expressão inglesa que eu gosto muito, guarde o histórico.
Porque a ideia de um corpo que guarda o histórico requer um corpo agente, vivo. Meu corpo guarda o histórico das drogas que eu usei, dos amantes que eu tive, das viagens que fiz. Ele é menos imaculado porque eu desenhei nele com agulhas de tatuagem, porque eu tomei sol, porque eu não vivo a salada, peito de frango e água das montanhas. É possível envelhecer menos, manter por mais tempo os traços da juventude, mas isso quase sempre requer viver menos, dar para o corpo menos do prazer que significa estar no mundo e fazer escolhas como pessoa e não só objeto.
Não é a toa que Sue, a versão mais jovem e melhorada de Elisabeth, se move um pouco como as atrizes em Barbie (uma escolha da Margaret Qualley que achei genial) e eu suspeito que eles aplicaram o mesmo tipo de maquiagem corporal nela. Também não é a toa que toda vez que a câmera desliza pelo corpo dela é representando um olhar desprovido de desejo sexual, asséptico e distanciado. Porque o sexo de verdade exige dois indivíduos agentes e exige também sujeira, suor, a possibilidade de marcas, caras esquisitas, respiração pesada, expressões que você não controla. Sue não é feita para nada disso. Desejada, sim, mas não como mulher. Mais como uma Ferrari ou um Rolex. O olhar do desejo, sim, mas de consumo, não do sexo.
De todas as referências, uma das mais claras em A Substância é O Retrato de Dorian Gray, escancarada quando Sue enfia Elisabeth em um armário escondido. Embora o conhecimento comum diga que esse é um livro em que um retrato envelhece no lugar de seu dono, a verdade não é bem essa. O retrato de Dorian não exatamente guarda os anos de seu duplo, mas o histórico de seu corpo. Ele não envelhece visivelmente a cada aniversário, mas a cada corrupção moral do protagonista, tornando-se uma representação visual da alma do personagem, enquanto Dorian vive como alguém que não viveu. Alguém preservado na ausência de vida que pode, talvez, preservar por mais tempo uma juventude intocada.
Essa exata relação é reproduzida e espelhada em A Substância uma vez que Elisabeth envelhece visivelmente cada vez que Sue decide não trocar, não deixar de existir por uma semana para que sua matriz possa se regenerar. Essa escolha é, o filme diz com clareza, moral e corrupta. Todo o ponto do filme é que o desejo pelo corpo de Sue - de possuí-lo, de vende-lo, de se-lo - é a corrupção moral, a vontade que vai condenar a todos.
Mas como fazer uma escolha diferente? Como pedir a Elisabeth ou Sue que façam a escolha moralmente correta quando são elas também as vítimas? Cada vez que a voz misteriosa da empresa pergunta à Elisabeth se ela quer parar, ela diz não. É claro que não. Porque lembrem, a câmera lá do início, a que sabe de cada defeito, cada problema, cada perda desse corpo, é ela e não outro.
Eu tenho várias questões formais com esse filme, todas elas resumidas em: com 1h40 ele já tinha tudo que tinha pra dizer, mas só acaba com 2h30. Tudo que acontece da briga que as personagens têm no apartamento para frente é uma explicação desnecessária da temática que trata o espectador como burro. Principalmente porque essa espécie de coda transforma Sue-Elisabeth em um monstro efetivo, perdendo a lição que deveria ter tirado de Dorian Gray. Você não precisa da aparência monstruosa para isso, o retrato não é o monstro. Dorian é o monstro. Sue, em seu gloss Dior e collant cor de rosa, é ela o monstro.
Porque se um filme de terror é a dramatização daquilo que nos assombra talvez o que A Substância realmente diz é que não é virar Elisabeth que tememos, mas o fato de que é cada vez mais possível permanecer Sue. O medo é o ozempic, os procedimentos, o que quer que seja. A sociedade que permite corpos que não guardem o histórico, um corpo feminino que é, como um carro, melhorado a cada ano.
E isso não é um julgamento moral da escolha por procedimentos (que eu super faria), porque de novo, como Elisabeth pode escolher parar? O monstro é a possibilidade apresentada pelo capitalismo que nos quer produto. É o prazer, ironicamente, de um anti-corpo oferecido por ele.
Que falta fez alguém falar “minha filha, seu filme acabou 25 minutos atrás”. Dito isso, achei brilhante até o nascimento do monstro.
Muito bacana seu texto, Isadora! Gostei muito do que você apontou sobre o corpo que guarda histórico, e toda a relação com monstruosidade. Você conhece uma autora chamada Margrit Shildrick? Ela fala de temas muito próximos do que você escreveu